As semanas que
antecedem uma eleição são assim mesmo. Aparecem candidatos coloridos,
arrogantes, humildes, ricos, pobres, tristes alegres, astutos, broncos,
inteligentes, verdes, vermelhos e por aí vai.
-Ufa! Foi a primeira
vez que escrevi tantos adjetivos juntos, sem, no entanto, acho eu, merecer alguma crítica.
Lição número um que vemos nalgum manual de escritor se
por acaso existisse um. Escritor é bicho difícil. Verdade. Diz assim: Não use o
adjetivo a não ser que seja para mostrar ou esconder o personagem.
Impressionante.
Não desligo a
televisão. Fico observando os tipos. Uma verdadeira fauna.
Lembrei-me de um dia
que meu pai me levou para escolher um pássaro como meu primeiro animal de
estimação.
Cheguei à feira, pois
lá no interior da Paraíba é assim. Mil gaiolas, pequenas, graúdas, de arame, de
palito, com duas janelas, com poleiros e
sem.
Assustei com tanta
possibilidade. Mesmo eu criado no mato, acostumado em pegar passarinho no
ninho. Criava desde filhote até adulto. Todos ganhavam nome mesmo. De gente
sim. E aí viravam membro da família.
Por isso falo que
seria o primeiro sim, pois não se contam aqueles que vivem como gente, tendo
sua própria vida, seu canto, e quando morria tinha o velório e enterro como
mandava o figurino. Lembro-me com saudade da gata Mimi.
Ela era um ser da
família. Mais até, pois era a única a sentar-se na cadeira de balanço de papai.
Mesmo sabendo que poderia acordar assustada com um grito. Era sempre ás seis
quando tocava a sirene do DNOCS. Tinha até uma brincadeira com essa sigla.
Falávamos: Deus não olha os cossacos sofrerem.
Continuando:
Nós mesmos, os
filhos, se por acaso, sentados, ao toque da sirene levantávamos sem demora,
para que o travesseiro esfriasse e ele não falasse assim:
-Diacho! Quem sentou
aqui com bunda tão quente? Não queríamos ter a bunda quente.
Mimi não. Ficava ali
balançando o rabo e de vez em quando abria os olhinhos e miava como se
sonhasse. Quando a porta abria saltava de um pulo e vinha esfregar-se em nossas
canelas. Uma vez. Duas. E voltava olhos
fechados alisando o pelo com prazer.
Depois ia para baixo
da mesa onde estava a tigela com seu leite. Dava umas lambidas e pulava a
janela para a vida do quintal. Uma vida
imensa. Era lá toda sua vida. Por baixo
das telhas, do pé de goiaba, do coqueiro que tinha rabiscado em seu tronco,
nomes, segredos nossos, que ela ia caçar os seus ratos.
Nesse ínterim papai
vinha do banho, cheirando a sabonete de coco, as chinelas batendo no cimento
liso e antes de sentar batia o
travesseiro, virava ao contrário, e ligava o rádio na hora do Brasil. Eram doze
olhos no escuro. Éramos seis. Meus irmãos e Mimi.
Hoje é que sei que
aquela música que tanta temia era de Carlos Gomes “O Guarani”. As notícias que
me fizeram tremer no fundo da rede quando eu principiava em dormir. Essas
notícias vinham sempre acompanhadas dessa música. Mimi também não gostava.
Eram como o estalo de
chicote no vazio.
“Assassinaram Kennedy”.
Numa voz fanhosa. Não tínhamos a menor ideia de quem ele era na época. Depois
soube que era presidente dos Estados Unidos, uma grande nação, essas bostas
diziam.
Eu achava que melhor que
o Brasil não havia. Era um país que não
tinha terremotos, vulcão nem grandes catástrofes. Somente algumas secas
avassaladoras, mas como dizia de nós, o nordestino é um forte. Pensava até que os
assassinos sempre têm seus motivos. E já sabia que tudo girava em torno de interesses.
Depois: “O primeiro
homem pisou na lua”. Grande merda eu
pensei na época. Eu já havia pisado em espinho de juá que dói tanto, dá até
febre, pisado em xique-xique, mandacaru, em bosta de cavalo que dava frieira
entre os dedos. Que glória tinha em pisar na lua?
Lembro-me de meu pai direitinho, dizendo:
-É tudo mentira
desses americanos pernósticos. Eu sei por que vi a cobra fumar. Eles inventam
porque são metidos a grande. Vivem colocando o dedo onde não são chamados. Umas
borras bostas isso é que são.
Ainda hoje tem muita
gente boa que não acredita que o homem foi na lua. Pergunte ao Manuel da venda.
Ele vem com mil impropérios.
Mas voltando ao
assunto, jamais havia visto tanto passarinho junto. Tinha azulão, sabiá, trinca
ferro, rolinha fogo- pagou, galo de campina, tiziu, coleiro, cancão, canário da
terra, pintassilgo. Muitos outros que não lembro agora. De todas as cores e
tamanhos. E a cantoria só vendo. Parecia a banda de música no domingo no coreto
da Praça de Santa Rita.
Ficava só ouvindo
apaixonado. Tinha louro também que falava. Só vendo para crê.
Mas isso são
lembranças. Preciso voltar ao tema. Como o pensamento voa, já disseram
acertadamente.
Tenho que falar das
eleições e dos políticos. Tantas cores. As vozes macias. Ficamos até
entusiasmados. Tanta lábia. Vão resolver tudo para nossas vidas. Até parece que
ficaremos em boas mãos. Papai falou: “Até mudinho uma vez ganhou.” E cumpria tudo, pois
não prometera nada para ninguém. Era surdo mudo.
Finalmente escolhi um de plumagem linda e
amarela. Levei para casa na mão mesmo. “Não carecia de gaiola, dissera meu pai.”
Desde esse dia andava a tiracolo com ele. Acompanhava todos os seus passos.
Colocava para dormir bem embaixo de minha rede. Até o medo de escuro eu perdi. Ele
ficava por ali catando algo pelo piso. Uma beleza só.
Ganhou nome,
chamava-se José, e quando virou adulto transformou-se num enorme frango.
A partir daí não tive
mais sossego. Primeiro foi meu pai que queria comê-lo. Chorei uma noite
inteira. Venci. Depois eram as visitas, não sei se faziam por gozação, mais era
só entrar na sala e falava: “Dazinha, quero almoçar esse frango”. Eu arrumava
um berreiro só.
Clarice passou por
esse perrengue também. Não. Não era minha namorada não. Até poderia ser se ela
quisesse. Achava-a fascinante. É. A Clarice Lispector mesmo. Apaixonei-me por
ela quando escreveu: “Sou como você me vê. Posso ser leve como uma brisa ou
forte como uma ventania, depende de quando e como você me vê passar”.
Minha mãe tentava
explicar que galináceos são criados para ser abatida, a mesma lenga- lenga de
sempre que desde a época de Cristo ou até bem antes, se falava, mas nada mudava
minha opinião.
E as visitas eram
daquelas pessoas que outro já falou. Como se diz delas. Lembrei-me. Recalcitrante.
O que é mesmo re-cal-ci-tran-te? Um belo conto. Leiam.
E eu argumentava que
tinha pegado amor por ele, essas coisas. Que José era da família já meu amigo
íntimo e tal.
E aí foi o dia que
quase fui político. Tentaram me comprar como fazem com eles. Prometeram-me coisas que sempre gostei como ir ao sítio de
meu avô nas férias, nadar no rio da turbina, acompanhar os “negros” ferrar o gado
de dentro do curral, pular da torre do açude essas coisas que sempre sonhei
fazer e nunca deixaram.
Sou sincero com vocês. Quase sucumbi. Minha mãe, ela própria, quando veio da
capital, fora visitar minha avó Maria mulher de seu Antônio meu avô, que estava
internada, trazia nas mãos uma revista de Tarzan. Jogou-a em cima da mesa
displicente.
O título baseado em “As jóias de opar” escrito
por Roy Thomas e Desenhos de
John Buscema by Edgar Rice
Burroughs ficou a minha frente como que piscando. A capa era Tarzan em segundo
plano pendurado no cipó, na mão empunhando o punhal, e em primeiro plano um
grande macaco fugindo com Jane em seus braços.
Sabiam meu gosto pela
leitura, e era fã número um dos quadrinhos e filmes de Tarzan.
Meus olhos brilharam
com ódio. Fiz beiços e corri para o quarto. Minha mãe foi atrás com as mesmas
ladainhas, e meu primo mais chato acompanhou-a justamente para saber o
desenrolar dos fatos.
Gritei encolerizado.
-Saiam daqui! Saiam!
-Mas filho, dizia ela
com a voz pastosa quando queria conseguir alguma coisa, - é somente um frango
que está ficando velho.
Com essa frase bati o
pé.
-Se matarem José,
frisei bem o nome, sumo daqui para sempre. E comecei a chorar copiosamente.
Parecia que a guerra seria perdida.
Meu primo sorriu.
Minha mãe arregalou os olhos.
-Esqueça filho.
Ninguém matará José só se passarem por cima do meu cadáver. E colocou aqui seu
ponto final. A família toda era
dramática.
-Tome a revista, ela
disse.
José morreu de velho muito
tempo depois. E foi enterrado embaixo da goiabeira. Fiz uma cruzinha de palitos
de picolé.
A revista eu li e
reli mil vezes. Lia apreciando o detalhe dos desenhos, as curvas de Jane em
horas solitárias, a ferocidade do orangotango.
Muito mais tarde
compreendi que o intruso era o homem branco, ele estava ali para desmatar a
floresta, tirar tudo o que ela tinha de mais sagrado, os animais, as plantas os
rios, e depois abandoná-la a própria sorte. Acho que essa revista, que quase
serviu como moeda suja, ainda existe e dorme tranquila em algum baú velho.
Voltando ao tema
principal que era a escolha de um candidato, - me perdoem, pois quando começo a
escrever perco-me em detalhes, que só me diz respeito e a mais ninguém, - um
conselho: Nunca escolha candidato pelas plumagens ou canto.
E principalmente
escolha finalmente um candidato, de forma que se não der certo em seu mandato, possa
ser abatido e assado num belo jantar.
28/07/2012