Aleatório
Já contei
das minhas andanças. Gosto de andar por aí nesse mundo de Deus. Não coleciono
fotos nem postais ou qualquer outra coisa dessa ordem. O que importa para mim
são as pessoas. Coleciono pessoas.
Nesse dia fui
a um enterro de um conhecido. É quando
perdemos amigos que pensamos na morte. Ela se aproxima nessas horas, toma café
conosco, até dorme na mesma cama, para de manhã, com o brilho do sol entrando
pela janela esquecermos outra vez.
Estava assim
meio sorumbático, observando o trabalho do coveiro, um trabalho meticuloso lacrando a tumba, tapando todas as frestas, ajeitando
as flores, jogando a última pá de terra, colocando a argamassa, alisando-a com
a colher num trabalho perfeito.
Seu nome vim
saber depois, era Sebastião mas conhecido por Tatão coveiro, veio do nordeste,
com a cara e a coragem disse-me.
Quando
cheguei aqui, dissera ele, corri todos os cantos dessa cidade como um louco,
para arrumar um trabalho e foi aqui nesse cemitério que me acolheram.
O trabalho
era simples disse o encarregado da prefeitura. Devia entender um pouco de
alvenaria e carpintaria e o principal era ter aquela coisa nobre perseguida
pelos escritores:
Muita discrição, descrição, ação, humildade, poucos
adjetivos, o mínimo de advérbios, olhar baixo e nunca, mais nunca mesmo
demonstrar sentimentos.
Observei que
com todo escândalo que a viúva fez, ele ficou calado, fazendo seu trabalho,
misturando a massa lentamente deixando dá o ponto, ou colocando mais terra ou mais água,sabia que os gritos aumentariam, quando se coloca a última pá,
última massa, a última frase...Era sempre assim.
A viúva em prantos
gritava para todos ouvir, que o mundo era injusto, que só morrem os bons, bom
pai, trabalhador, honesto...
Deu vontade
de ri. Não dessa cena. Meu amigo era homem bom mesmo. Lembrei da piada
do advogado que morreu e a mulher fazia esse mesmo discurso quando um bêbado disse:
-Uai! Acho que
errei de velório?Aqui é o velório do Doutor Alcebíades?
-Sim
respondeu a viúva chorosa! Ele mesmo! Um grande homem!
- Pelo que a
senhora falou aqui jaz um santo! E o Alcebíades que eu conheci, era um puteiro
de marca maior! Não faltava uma tarde no baile da Soninha! O baile dos casados!
Piadas a
parte depois do serviço feito ele foi tomar um café e a viúva ainda ficou em
seus prantos.
Eu o segui.
Ele atravessou as alamedas. Era sua paisagem de todo dia. Cruzes, choro...
Ofereceu-me
um café que eu prontamente aceitei.
-Coitada
daquela senhora. É sua parenta? Ele perguntou.
Talvez para
dá uma opinião sem risco de me ofender.
-Não eu disse.
O morto é que era meu amigo.
Ele tomou um
gole de café.
-Ela não
entende que dessa forma é melhor. A vida é bela por isso! Nossa existência é um
jogo.
-O que?
- A forma
como somos escolhidos...
-Escolhidos?
-Para
morrer...
-Ah!
-Eu acredito
que a existência é um jogo onde as cartas são retiradas aleatoriamente. Não
quero dizer com isso a não existência de Deus. Nunca! Jamais! Só quero dizer
que se as escolhas não fosse assim não haveria justiça, entendeu?
-Não, eu
disse secamente.
Quase
perguntei a ele se por acaso ele já viu algum espírito, algo diferente sair
daquelas tumbas... mas achei inconveniente. Afinal o espírito deve ser
invisível creio eu.
Ele
continuou.
-São mais de
cinqüenta anos nesse ofício e nunca vi ninguém sair daqui... Nada... Só o silêncio
impera aqui...
Ele acabou
me respondendo sem querer.
- Imaginamos isso porque achamos que a vida é um prêmio, e
que viver até os cem anos é prêmio máximo.
-Mas a vida
é bela eu disse.
-Mas, e se a
vida não é prêmio e sim um pagamento de pena? Observou? Muda tudo? Todo o conceito
entendeu? Toda criança quando nasce chora
não é? Não seria o recado de que viemos sem querer? Como disse o velho
Sócrates: vida é doença, vida é mal que se cura com a morte.
Admirei-me
com seu linguajar. Olhei sobre seu ombro e vi uma pilha de livros todos sem
capas. Não dava para saber os autores.
-Não é
difícil imaginar o que eu faço na minha hora de descanso não é? Leio. Leio
muito.
-Estou
vendo!
Deu vontade
de perguntar se tinha lido algo meu. Não perguntei.
-Todos os
dias nascem milhares de seres e morrem outros. É um ciclo. Agora imagine que lá
na chefia celestial, a morte, aquela donzela que a imaginamos de túnica negra
com capuz e foice na mão, com um bloco na mão todos os dias escolhendo quem vai
morrer, riscando o nome um a um. Como seriam essas escolhas, as justificativas?
Seria totalmente imparcial? Se fosse assim era fácil ser corrompida, receber
propinas... Essas coisas. Se fosse dessa maneira era fácil explicar as pessoas
que escuto aqui todo aos prantos:
-Por que
morreu tão jovem, na flor da idade, porque não escolheu um velho qualquer? Ou
aquele outro já está na hora de levá-lo, pois, já se encontra doente há vários
dias ou Vou levar esse por ser um assassino frio, ou levar aquele por não ter
ninguém...
Veja você
que se fosse assim os ricos e poderosos viveriam mais... Poderiam corromper, dá
propinas, agradar...
Mas, minhas
leituras me levaram a crê, vou contar aqui um segredo, as escolhas já não são feitas
dessa forma. Desde que Sísifo enganou a morte acorrentando-a e colocando-a numa
coleira conseguindo ludibriá-la, desde
esse dia que ela mudou o modo de escolha. Agora é de uma maneira totalmente simples
e nem um pouco original. Não tenho dúvidas quanto a isto.
-Como é
feito tal escolha, perguntei incrédulo.
-Independente
do que façamos, a escolha é aleatória. Não tem oração, nem propina. Nada.
-Como assim,
perguntei perplexo.
-Uma loteria.
A forma mais honesta de escolha. Ela vai tirando bola por bola. E aceitar isso nos torna mais leves. E como
disse no início, com um pouco de sorte nos livramos mais rápido de nossa pena.
Dito isso, saiu
para enterrar mais um.