Um Click
Mario enfim acordou. Ressaca braba.
Cansado. Coou o café. Tomou. Pelando. Na cabeça a ideia roendo como rato no porão. Como
ferrugem comendo o ferro. “Tenho que acabar com isso!”. Chega de sofrimento! Fitou a janela. A cena de
todos os dias, as pessoas passando ao sol implacável e incandescente da rua,
dos passeios sujos das fezes dos cães e pombos. Cospe em cima da marquise.
Vai ao quarto e pega uma caixa sobre
o guarda roupa. Bate o pó e tira as teias de aranha. Tosse seca. Toma um gole de café. Embrulhado
em um pano azul a arma. Do tempo que trabalhou como segurança na firma de
pneus. Olha-a bem. O metal escuro e frio. Pega um a um os projéteis e vai colocando
no tambor. Lembrou de um filme que o mocinho fazia aquilo. Colocava um e rodava,
colocava outro e rodava. Dava uns estalos secos de metal. Até encher. O chumbo pesa. Fecha um dos olhos
e fica um tempo olhando a mira. Reta e certa. Senta á beira da cama. Planeja o
local onde cairá. Não quer se machucar. Se tudo correr bem vai cair sobre o
velho colchão.
Vestiu-se com uma calça jeans, uma
camisa de manga comprida e fez questão de colocar uma cueca nova comprada no
dia anterior. Ouviu no ônibus duas
garotas conversando: Uma dizia: A roupa de baixo tem que ser nova. Se por acaso
a gente der um troço na rua e precisar ser levada para um hospital, você sabe
que lá nos põe quase pelados, e imagine menina, - dizia a mulher mais nova, para
a outra que segurava com força o ferro para não cair nas curvas, - imagina a
vergonha de está com uma calcinha ou cueca rasgada? Riram até se fartar. Ele olhava nesse momento
os postes passando rápido num frenesi louco. Ele não esqueceu.
Agora pensava desse modo. Domingo é um bom dia. Todos ficam em casa com
os seus. Ele morava sozinho. Olhou-se fixamente para o espelho, vê seu rosto
amassado, barba por fazer, olhos quietos nas órbitas. Tenho que escrever algo,
pensa. Todos escrevem algum motivo. Ele
não tem um em particular. As pessoas se ligam mais na explicação que na morte. O
que explicaria uma morte assim? Uma fuga? A perda de um amor? O sofrimento? A
covardia? A coragem? Ou não tem explicação palpável?
A vida é tudo que temos. E a morte é a
única certeza que temos. Sendo certeza, antecipá-la seria um ato de coragem? O que dizem os
filósofos?
Segundo Schoppenhauer a pior coisa que pode acontecer a alguém é
nascer. Sêneca dizia que era uma vantagem dos homens sobre os demais animais: a
possibilidade de, metaforicamente, ir embora da vida. Já Nietzsche pregava a morte livre, sem
sofrimento e pecado.
Mário escreveu faz tempo seu recado. Era curto. Levava-o sempre consigo, no bolso
da camisa.
Foi ao
dentista ontem. Um dente do ciso não lhe dava sossego. E mandou colocar também
a coroa que faltava na frente. O
dentista falou para ele: Sr Mauro tem que cuidar mais dos dentes. É nosso
cartão de visitas. Mandou arrumar tudo. O que os outros vão pensa quando o
acharem sem vidas. Coitado, era um desvalido, sem dente, banguela! Resolveu tudo
no mesmo dia. Parcelou de dez vezes. Quando chegou no consultório o dentista de
branco, uma barbinha ridícula, segurava-o a todo momento pelo queixo. Seria bom um implante aqui, umas
restaurações acolá, uma profilaxia, e ficará novo. O seu plano não cobre seu
Mário. Faria o que estava ao seu
alcance. Tirou o molde, e o dentista colocou uma prótese, cheia de metal.
Mandou olhar no espelho. Continuou o papo.
Depois você coloca algo melhor, uma fixa, ou um implante. Agora tudo
está mais fácil, divide-se em pequenas parcelas até perder-se de vista. Vou
fazer para o senhor na ficha mesmo, pois é meu paciente de anos, sempre pagou
certinho e não é dessa vez que não vai pagar não é seu Mário. Só se eu morrer
doutor, ele disse rindo. Não acredito
Mário. Está cheio de saúde. Nunca se sabe doutor. Basta esta vivo para morrer.O
dentista veio com o espelho. Sorria disse. Ele abriu os beiços para espelho.
Está bom. A secretária ainda o bajulou. Ficou ótimo seu Mário. Agradeceu.
Fugiu dali,
o mais rápido possível.
Sentiu o
envelope no bolso. Uma sonolência o
abateu e foi para casa e dormiu pesada a manhã inteira.
Agora frente
ao espelho. O braço direito ergue-se, a arma engatilhada, aponta para o céu da
boca. Liga o rádio. Um programa inicia-se. Segura o dedo.
O programa chama-se
“Histórias Divinas”. São aqueles que
enchem as rádios de conselhos, um padre atende as ligações dos ouvintes. A voz
é suave. Mário alivia a pressão no gatilho.
Uma mulher ao telefone. A voz desesperada. Soluços. O padre é calejado. Tem empatia. Como
à senhora chama, ele pergunta. Maria, padre, Maria Soledade!
Pois não
Maria Soledade conte sua história”. A voz impostada do padre.
“Padre eu
estou muito triste, pelo suicídio do meu tio padre! Faz seis meses que estou
tentando falar com o senhor...
O dia Chegou
Maria... Continue...
Pois então
padre. Esse meu tio tinha depressão. Aliás, a família toda tem. Eu mesmo depois
da morte dele, tenho andado muito triste padre.
Não esmoreça
filha... Mas me explique. Ele fazia tratamento contra a depressão?
Sim padre.
Mas às vezes ele largava os medicamentos para beber.
Entendo...
Ele era casado?
Sim padre.
Cinco filhos!
E na família
teve outros casos de suicídio?
Teve padre.
É o que está me deixando totalmente sem chão. Ouve-se Choro.
Chore filha!
Desabafe...
Uma música
suave de fundo.
Olhe Maria
Soledade... A senhora faz tratamento
contra a depressão?
Faço padre,
mas tem hora que jogo tudo para o ar.
Não faça isso minha filha! Olha, procure uma
igreja, aí na sua cidade deve ter, procure o padre da paróquia. Vá à missa.
Ore. Ore todos os dias e não largue o tratamento... Deus faz a parte Dele, mas
precisamos fazer a nossa também... Maria Soledade, você sabia que Muitas vezes
o que segura alguém de se matar é o temor a Deus?
Sim Padre!
Você teme a
Deus?
Sim Padre!
Vou fazer
uma oração para os desesperados e depressivos. Acompanhe-me, por favor.
Sim padre!
A música a Ave Maria de Gonor.
Mario aumenta
o volume. Olha pela janela os transeuntes apressados. Os olhos suaves, de paz.
O padre: “Liberta
Senhor, as pessoa de suas culpas, perdoa os seu pecados, tire senhor esses
pensamentos maléficos, cure-os, com a gota do redentor... Maria depois veja o
capítulo 16, versículo 6, dos provérbios, “Pela misericórdia e verdade a iniqüidade é perdoada, e pelo
temor do Senhor os homens se desviam do pecado”.
O padre
segue falando:
Meu Deus
estamos na vossa presença, para pedir humildemente, Que essa história familiar,
cesse, agora, que leve esse pensamento embora, Esses pensamentos negativos,
leve embora, que todas as famílias que estão passando por dificuldades, senhor,
os desempregados, os que estão em hospitais, os enfermos de qualquer natureza,
seja físico ou psicológico Amém!
Amém padre!
Como é bom
uma oração não é Maria Solidade! Dá uma paz!
Espere um
pouco no telefone, Maria , que vamos aos comerciais.
No comercial uma clínica de cirurgia plástica,Promete
milagres para as mulheres, milagres em suas aparências, Um seio perfeito, um
rosto sem rugas...
Mário, olha
para o espelho. A imagem invertida. Engraçado. Desse modo a arma parece na outra mão. Outra pessoa. O rosto magro. Olheiras escuras.
Um ser estranho,seria ele?
“Maria
Soledade!
Sim Padre.
Está mais
calma?
Sim padre.
Meu medo é depois, quando eu desligar o telefone, a solidão padre.
Não fique só
Maria. Alias nunca estamos sós. Você esquece que Deus nos guarda em todos os
momentos? Que Ele é onisciente e onipresente?
Vamos fazer
uma oração a todos os que suicidaram.
Uma oração
se desenrola sem interrupção. O pai nosso. Uma ave Maria.
Mário
acompanha a prece.
Por último o
padre diz: E que todos descansem em paz.
E Maria,
não esqueça que “O homem planeja seu caminho, mas é Deus quem dirige
seus passos!”.
Fique com
Deus Maria Soledade, e todos os ouvintes. Estaremos amanhã no mesmo horário.
A música
toma todo o ambiente, enche o quarto, sai pela janela rumo ao firmamento.
Ele se sente
dono dos seus passos. Incrivelmente poderoso com essa liberdade de escolha.
Tudo se encontra em suas mãos. A vida já não é arriscada. É como um botão de
liga e desliga.
Sente o
calor do sol quente lá fora.
O dedo está rígido.
O tato no metal é duro e frio.
O som do
rádio se foi. Um click seco.
O transito
na hora do rush. Cheiro de gasolina e
óleo diesel. Uma gota de suor desceu na fronte. Ardeu o olho. O cheiro de café
continuou no quarto.
-Ah! Essa liberdade.
Tanto poder dá ânsia. O livre arbítrio da escolha de vida ou morte.
Hoje
escolheu a vida; até quando não sabia.