Bruxas, fadas e outros demônios
“Lendo conto de Rubem Alves de
título: Bruxas e vassouras, eu perdi o pudor de contar aqui também a minha
descoberta sobre elas, as mulheres, bruxas e fadas de minha vida, só agora,
após seis décadas, largando o medo de uma praga, um feitiço ou coisa qualquer”.
Esse era o início de uma crônica do
escritor Odlarniram Etiel Atsitab, Afegão
da província de Sameroc, ainda pouco
lido por aqui, prolixo, escreve nas folgas, entre uma explosão e outra pois seu principal afazer é a montagens
de artefatos explosivos para dilacerar seres humanos.
Na crônica
ele fala de seus medos e segundo entrevista dada a um jornal de segunda
categoria, disse o repórter na época, que nunca vira alguém tão engajado em
seus planos de destruir o mundo.
Ele conta do
medo horrendo que tinha das bruxas na infância, e sua escrita tem um peso
enorme quando fala das coisas mais banais, devido talvez ao desapego pela vida,
afinal, qualquer hora pode receber uma missão de se infiltrar entre os inimigos
e voar junto com a maior quantidade de pessoas em pedaços.
Sobre
as bruxas o caso ocorreu nos idos de mil novecentos e sessenta e quatro mais ou
menos segundo texto, ele tinha oito para nove anos, tinha medo de tudo e segunda
as próprias palavras “as bruxas andavam
soltas”.
Além disso, a internet andava somente
pelas universidades, a tecnologia capengava e o Google não havia sido criado
ainda, fato esse de sua total ignorância. “Eu era tão “cru” disse ele, que
achava que o sol girava em torno da terra, que o paraíso estava no céu e o
inferno no fundo da terra, que a mulher
era um ser perigosíssimo, que as vacinas vinham para dizimar as crianças,e que
vimos trazidos pelas cegonhas. Veja só”.
Diz também que transcreveu, sem edição
alguma, a escritura feita do próprio punho naquela época. Segue dizendo que
todos irão notar que é texto sem influência de qualquer natureza, pois até ali
só havia lido gibis, “portanto hão de desculpar não pertencer nenhuma categoria
ou escola, é texto de iniciação”.
Feito todos
os rapapés vamos aos fatos.
“Sameroc, província do Afeganistão, 26 de agosto, de 1964.
Manhã de segunda feira:
A casa estava silenciosa e lúgubre. Gosto da palavra
lúgubre. Tirei de uma revista de terror.
O desenho mostrava um cemitério esparramado num pequeno morro cheio de
cruzinhas de madeira. Todas as vezes que eu sinto solidão lembro-me dessa
gravura.
Eu acabava de tomar
o leite e olhava o resto de Nescau escorrer no fundo do copo esmaltado quando
mulheres da vizinhança invadiram a casa pela porta dos fundos, levando toalhas,
bacias e colheres enormes, encheram-nas de água e ficaram esperando a fervura.
Depois entraram no quarto grande, perto do corredor que ultimamente andava
sempre com a porta encostada. Eu sentia que minha mãe escondia algo, mas não
sabia o que era. Vi muitas vezes minha mãe
ajoelhada pedindo proteção.
A casa era uma construção antiga, toda coberta por telhas
nuas, o que deixavam passar a luz do sol e as estrelas pelas goteiras abertas.
Todo esse movimento aguçou a minha curiosidade e assim
fingia não ter terminado ainda de beber todo o leite, quando uma delas pegou do
copo, lavou-o antes de eu ter degustado o chocolate do fundo e ainda pediu
encarecidamente para que eu fosse brincar segundo as palavras dela: “ com os
amiguinhos no terreiro”. Só se fosse os imaginários, pensei, pois eu
era de poucos amigos. Já os imaginários pululavam em toda esquina.
Tentei escapar
correndo pelo corredor, mas ela era forte e quase me empurrou para fora,
dizendo que ali não era lugar para criança. Tentei usar meus super poderes, mas
nessas horas eu ficava lerdo como uma lesma. Aí o que me restou foi pegar
minhas bolas de gude e ficar embaixo da mangueira, até tudo terminar, tentando
a todo custo acertar os buracos, mas minhas mãos estavam trêmulas.
O silencio era quebrado pelo tilintar de panelas e portas
rangendo. Portas rangendo e panelas batendo, a noite, o medo é maior.
Olhei pelas frestas da janela, mas só vi uma nesga de sol
que ia até a parede carcomida e fiquei contemplando a dança do pó no facho de
luz.
Voltei aos buracos e acertei da primeira jogada. Foi
quando ouvi gritos vindos do quarto e fiquei apavorado. Corri para a janela e
subi no muro por cima dos cacos de vidro, onde o gato andava tranqüilo sem se
cortar e o que vi deixou-me em pânico.
A mulher que me empurrou para o terreiro pedia agora
quase gritando para que minha mãe fizesse força, como defecasse e ela fez,
gemendo alto, sua fronte suava em bicas e segundos depois que para mim demorou
uma eternidade, deu um grito medonho. Foi aí que a mulher puxou de uma vez só
de entre as suas pernas abertas, um ser enrugado, sujo e feio.
Nesse instante eu saltei da janela correndo e só parei
ante a fossa cavada no chão com ânsia de vômito. Tinha cortado o dedo e não
senti, tenho uma cicatriz que carrego comigo. Dali, escutei comovido o choro de
uma criança.
Só entrei no quarto, chamado pela minha mãe uma
eternidade depois. Ela estava pálida, em volta de lençóis brancos, apoiada em
dois travesseiros e um leve sorriso no rosto. Uma das mulheres tinha feito um
curativo em meu dedo que fiz de tudo para ficar maior e causar impacto. Ninguém
notou.
O que me restou foi aproximar-me no canto da cama desconfiado.
A bruxa sorria
descaradamente e pegou um embrulho pequeno e trouxe bem perto de mim.
-Sua
irmãzinha! Disse comovida.
Não sei o que me aconteceu. Só sei que algo subiu pelo
peito, fechou minha garganta, e caí em prantos. A bruxa ainda falou assim:
-Ai
coitadinho! Está com ciúme!
Eu tentei esmurrá-la e dar-lhes um bom chute nas canelas,
mas ela dava gargalhada.
Pegou do embrulho e colocou novamente no colo de minha
mãe. Foi quando ouvi algo sugando os seus seios como tivesse ali um bezerro. Aí
foi que eu gritei com ódio. Minha mãe perguntou por que eu chorava tanto e eu
respondi debatendo-me no chão e puxando os cabelos e gritando alto:
-Não
estou com ciúme! Estou desesperado porque não me chamaram para ver a cegonha!
Porque não me chamaram?
Todos caíram na gargalhada. Eu saí gritando e bati a
porta atrás de mim.
-Bruxas!
Bruxas! Bruxas!
“Assim foi a primeira bruxaria que eu vi”. Escreveu ele com letra de forma.
Dois anos se passaram. Como os da casa só tinham olhos
para o bebê, eu passava a maior parte do tempo no quarto dos fundos, quarto de
despejos onde ficavam todas as traquitanas imprestáveis da casa que um dia teve
uso e agora estava ali por defeito ou por antiguidade. Tinha de tudo. Ferro de passar roupas à carvão, uma máquina
de costura daquelas movidas a pedaladas, vários dedais, um rádio á válvulas,
uma TV preto e branco, vários discos de
vinil, camas desmontadas, bonecas quebradas e livros. Muitos livros. De todos
os tipo e grossuras. Romances, contos, científicos. Tinha um que nessa época era o mais folheado
por mim. Era um atlas a cores de
medicina deixado pelo meu tio que foi cortar as pessoas no hospital. Ele era
médico. Minha maior curiosidade nessa época era saber
as diferenças entre homem e mulher. Anotava
num caderno de rascunho. As figuras não ajudavam muito. Geralmente eram ossos e
órgão separados. Tinha também um esqueleto que ele tinha mandado o coveiro
limpar as carnes e músculos e agora ficava ali em pé atrás da porta sorrindo.
Um desenho é que mostrou a primeira diferença que eu
anotei como “essencial”. O homem tem algo como uma lingüiça e a mulher uma
pequena fenda.
Nessa época eu já colecionava gibis. E uma coisa que
gostava de fazer era trocá-las.
Estava eu na casa
de um amigo e tinha levado um saco lotado de revistas. Ele espalhara as suas no
tapete e eu notei que elas ainda não haviam perdido o cheiro de nova. O pai dele era dona da única banca de
revistas da cidade. Tinha coloridas, preto e branco, encadernações em
brochuras, álbuns grossos, todo tipo de papel. Eu estava extasiado. Uma coisa
que eu não sabia fazer naquele tempo era fingir e logo que vi uma que era de
meu total interesse meus olhos brilharam.
Eu estava folheando uma, lembro bem, era uma brochura, Moby Dick a baleia assassina.
O tempo na
infância são séculos demasiadamente lentos. Foi o que talvez eu pensasse quando Anita
entrou na sala com os longos cabelos em duas tranças amarrada as costas. Era a irmã de Ronaldo. Seu vestidinho florido
assustou-me demasiadamente. Minhas experiências com as mulheres eram por demais
receosas.
-Como
você chama? Ela disse.
-Oldlaniram eu disse.
-Ai! Que
nome porreta ela gritou, sentando-se no tapete. Eu corei.
Ronaldo empurrou-a para um canto e disse:
-Fica
quieta aí! Não está vendo que estou fazendo negócio?
Engraçado que ele trata a irmã de um jeito particular.
Ela ficou ali observando.
Eu logo vi o interesse dele. As duas revistas de zorro a
número 6 e 7. Vi seus olhos não sair da capa.
-Eu quero
esta! Mostrei a grande baleia.
Anita se intrometeu novamente:
-Vamos
brincar?
Ele a empurrou de novo.
-Mãinha!
Ronaldo está me batendo! Uma voz lá da cozinha gritou:
Parem com isso se não ponho ambos de castigo!
“Troco as
duas aqui do zorro nessa da baleia eu disse”.
-Vamos
brincar? Anita falou novamente.
-Tá feito
ele disse.
-Nã-nã-nã
–nã-nã-nã! Disse Anita balançando a cabeça. Esta aí é minha, painho que trouxe
e só troco depois que brincarmos. Ela falou assim mesmo, a conjugação verbal. Elas
sabem liderar uma situação.
E aí não teve outro jeito. Brincamos de policia e ladrão,
passa anel, dominó, baralho, xadrez, e agora corríamos para os esconderijos eu
e ela enquanto Ronaldo contava até trinta.
Corremos quase aos trombos e quando chegava ao vinte e
oito eu ainda não tinha escolhido um local quando ela puxou-me para dentro de um guarda roupa. Bem
providencial, pois ouvimos Ronaldo passar por ali correndo. Ficamos um tempão quase colado a respiração
dela soprava meus olhos cegos pela escuridão. Jamais esqueci o cheiro de
naftalina. Ali dentro a escuridão não era
total , por um orifício entrava um pouco de luz. Nós estávamos bem assustados. Eu
principalmente. Agora sei por que tive tanto medo na época. Aquela proximidade
era alarmante para mim. Foi quando ela pegou minha e colocou sobre seu peito
dizendo:
-Olha
como está batendo forte!
Realmente batia igual o coração de um animalzinho
assustado. Aí ela fez uma coisa que eu nunca mais esqueci. Chegou mais perto e beijou-me
molhando minha boca com sua saliva. Eu não tive dúvidas. Sussurrei no seu
ouvido:
-Bruxinha
linda!
Nosso negócio floresceu bastante. Eu te dou essa revista se
você me deixar eu vê isso. Ou, se você tocar aqui dou toda minha coleção. Também
trocávamos constantemente de revistas. Algumas coisas anotadas.
Mais uma diferença essencial:
-A mulher aumenta os seios com o passar do tempo, e são
macios e fofos e quando tem nenê sai leite por ali.
-A saliva é gosmenta, mas quando acostumamos vicia.
-A mulher é algo extraordinário e tem muito mais para se
descobrir.
-Por último e mais importante: Alice não era bruxa! Pois segundo Rubem Alves em sua crônica, “As
Bruxas verdadeiras usavam a vassourinha de pelos macios para umedecer as mucosas das regiões entre as
pernas, genitais. Assim, vinham-lhes deliciosas alucinações e elas voavam,
montadas na vassourinha...
-Alice não tinha vassoura.
Esse comércio durou uns dois anos ainda. Até ela me dizer chorando um dia que os pais
iam mudar para longe, para o sul e queria por que queria entre juras de amor eterno que usasse minha chave na
fechadura. Ela explicou tudo tim- tim -por tim-tim mas na hora não aconteceu nada.
Quando ela se foi tornei-me um solitária, vivia enfiado no quarto dos
fundos. Por isso eu tinha a pressa de ser gente grande, crescer e viajar pelo
mundo. Aí voltou novamente a total imersão nas histórias em quadrinhos. Horas a fio em companhia de heróis e vilões de
toda espécie.
E por falar em vilão, essa tarde eu me senti um, quando
passei pela sala, escondendo no meio dos gibis uma revista proibida chamada de
"catecismos" de Carlos Zéfiro. Essas revistas vinham do Brasil,
cruzava mares e montanhas e chegava em minhas mãos através de moleques de rua.
Tendo uma, eu corria ao quarto e lia deliciando-me com as
gravuras. Um homem abraçado a uma mulher
e o texto dizia: “Muito afobado, beijando-me descobriu-me um seio, e suas mãos
ansiosas, repuxavam a minha calcinha e seus dedos esfregavam a minha fenda. Eu
estava muito nervosa e lhe pedi para deixar-me tirar a roupa. Ele consentiu e
dirigi-me ao banheiro”.
Alucinado pela gravura e as frases intensas dita pelos
personagens eu estava apalpando a varinha de condão, quando a terceira bruxa em minha vida apareceu
subitamente, parada na soleira da porta do quartinho, com um sorriso no rosto,
sem comentar o que eu estava prestes a fazer:
-Prazer!
Eu sou a nova empregada! Já me apresentei a todos na sala só faltava você meu
rapazinho! Ela dava a mão para eu pegar. Assustado retirei a mão do calção e
apertei a dela timidamente.
Lembro bem desse dia, pois a Rússia tinha acabado de nos
atacar com muitos tanques e aviões. Ela disse muito tempo depois que viera com
os soldados.
Eu fechei rápida a revista e levantei da cama num pulo.
Minha mãe entrou logo atrás, estava dizendo que agora
aquele quartinho seria de Margarida dali por diante e que eu tirasse meus
pertences.
Para encurtar a história, depois que Margarida entrou em
minha vida conheci à última bruxa da infância.
Um belo dia acordei com ela em frente ao espelho e
comprovei que mulher, especialmente as russas, são bruxas e fadas.
Bruxa, pois levam uma vassoura de pelos macios no meio
das pernas e quando as usa voam alto no firmamento. E Fadas, pois quando tem uma vara de condão
nas mãos fazem mágicas miraculosas.
Enceto retirado do caderno “ultra secreto” de
Odlarniram Etiel Atsitab, o pequeno Afegão.