Assim e assado
Já fazia um tempão que eu vinha matutando o assunto. Aliás, foi desde que me entendo por gente. A cidade que eu nasci foi propícia para isso.
Era uma cidadezinha pacata, interiorana, as duas praças viviam lotadas principalmente de crianças jogando o pião, a bola ou a barra bandeira e os maiores rodando o coreto atrás de namoradas.
Isso tudo claro, aos olhos das mães que ficavam sentadas nas calçadas e dos pais a maioria pitando o cigarro de palha.
Lembro quando dei meu primeiro trago. Estava saindo do cinema, tinha passada um filme com Gregóry peck um bang bang dos bons e aí deu vontade de fumar igual ele. Do outro lado da rua, bem em frente da sorveteria,meu pai me olhava . Rápido eu joguei a binga no chão e pisei com o sapato de bico fino. Quando cheguei em casa ele falou uma vez só:
-Se eu te pego com aquela porcaria de novo na boca eu faço você engolir a brasa!
Foi a primeira e última vez.
Isso tudo era motivo de contentamento. Mas o sino da torre da igreja era meu pesadelo. Naquela hora morta que o sol estava à pino vinha as doze badaladas. Os sinos vieram da Holanda com os dois padres. Tocava nas datas festivas e nas mortes.
Quando ouvíamos um toque solene vinha a pergunta: Por quem os sinos dobram?
Foi o filho de fulano que morreu!
Foi o pai de sicrano! Diziam.
O toque de bronze tocou toda a minha infância.
O que eu mais via era o cortejo lento com os homens suados de chapéu na mão e as mulheres se abanando com o leque e na frente o morto carregado para o cemitério municipal ao som das badaladas.
As andorinhas aproveitavam o voo e sobre o cortejo despejavam uma saraivada de fezes.
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No meu aniversário de seis anos ganhei um relógio. "O ponteiro menor marca as horas o grande os minutos!" Disse minha mãe colocando no meu pulso. Diacho! Ficou folgado! Tem que tirar um elo disse minha mãe!
Meu pai providenciou na hora e assim saí todo orgulhoso pela cidade, esperando o primeiro me perguntar as horas.
Foi com esse relógio que marquei quatro minutos cravados debaixo d’água. Era uma aposta. Quase morri sem fôlego.
Gostávamos de ficar no limiar entre a vida e a morte.
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Mudamos para a capital.
Aqui fiquei mais escravo do tempo. Um despertador tocava todo dia as cinco horas, para eu pegar dois ônibus para a faculdade.
Formei. Continuei escravo do tempo. Tudo era agendado. De Segunda a domingo, de janeiro a dezembro.
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Agora resolvi cortar o tempo pela raiz. A primeira coisa que fiz foi jogar todos os relógios fora. O da sala foi o primeiro. Um carrilhão de madeira escura. Depois os de pulso.
Sem relógio mudei drasticamente. Agora sou acordado pelo canto do galo, levantava-me ao canto dos bentevis, tomo o café quando os canários descem para catarem as pedrinhas e durmo com as galinhas.
Sobre o clima aprendi a observar os sinais: Uma brisa gelada, um vento constante, umas nuvens pesadas, uma chuva de molhar bobo, um frio de enrijecer o costado do cachorro, um calor sufocante, um céu de brigadeiro. Tudo diz algo. A natureza comunica o que vai fazer.
No inverno a chuva, no verão o calor no outono o vento, na primavera as flores.
Ano após ano sem começo nem fim.
E se por acaso perguntarem a minha idade eu respondo: depende do curioso.
E vou vivendo. Mais leve.
Afinal o que vale é o que nos resta para viver.
Como Mário Quintana bem disse:
"Se me fosse dado um dia,outra oportunidade, eu nem olhava o relógio."
Estou assim e assado.