A sombra
Angel,
inquieto, observava as folhagens. O vento chacoalhava forte e levavam as folhas
e as nuvens para longe. O dia claro. O céu límpido, de brigadeiro. Todas as
manhãs ele era posto a brincar ao ar livre, cuidados da mãe, para crescer com
saúde e bons ossos. A mãe o tinha
lavado, penteado e vestido.
De modo que essa
manhã corria de um lado para o outro, com um avião de papel cruzando mares e
montanhas distantes. Os mares eram poças da chuva que caíra de madrugada. As
montanhas um entulho de areia e pedra, restos de uma construção.
Parou no
final. Olhou os paralelepípedos brilharem ao sol. Depois de observar um tempo
talvez chegasse à seguinte conclusão: não era lá uma rua, porque tinha só
quatro casas. A dele, azul com varanda e caixa de correio, a da viúva Dona
Joaquina, com a goiabeira que servia de poleiro para os passarinhos, a de Celso,
um sobrado imponente e frio e uma quarta recém construída novinha em folha. Do lado direito, um terreno baldio.
Angel estendeu
o braço e jogou-o pela enésima vez: “com a força dos trovões”, gritou e
observou admirado, o voo silencioso e acrobático da aeronave se aproximar do
meu rumo, passar próximo da janela e depois de uma curva bonita no ar, pousar em
perfeita aerodinâmica a seus pés.
Ele, Angel
estava excitadíssimo. Quem seriam os novos moradores, tentasse assim adivinhar?
Hoje usava cabelo de franja na testa,
bermuda de linho cinza, camisa de marinheiro e uns sapatos pretos engraxados,
até o brilho máximo. Soube que apertavam-lhes
os dedos, era do ano anterior, ele disse.
Pegou a
aeronave e observou se havia algum dano. Nenhum. As asas perfeitas, o bico incólume. O piloto
ileso. Após uns segundos inertes, pareceu que notou algo admiravelmente
estranho, pois andou de um lado par o outro.
-Que incrível! Dissera. Aprendera
essa palavra com seu pai, quando o homem pisou pela primeira vez na lua. E ele
a repetia agora. –Incrível! Incrível! Tanta complexidade!
Analisou que
a seus pés algo se mexia. E o que fosse
aquilo, o imitava descaradamente. Seriam extraterrestres que após o bisbilhotamento do homem a lua veio investigar-nos?
Juntando-se essa
nova, mais o ímpeto infantil, dizia-se dele hoje, sem dúvida nenhuma, uma
espoleta só, no frenesi das mariposas em voo para a luz.
Nisso parou
do outro lado, mais atento.
Então,
balançou o braço esquerdo e observou que a coisa também. Depois o braço direito, as pernas e foi
dificultando para desmascarar o imitador. Assim deram algumas cambalhotas e incrédulo
ao perceber que a coisa o seguia em todos os movimentos, nos mínimos detalhes,
mesmo os mais difíceis.
Acenou-me. Acenei de volta com o dedo polegar em riste, para
que ele não pensasse que estava ficando “biruta”. Pois quem o olhasse, pensaria
no mínimo que ele estaria em apuros, fugindo de abelhas ferozes.
Pelo
contrário ele se divertia a “bessa”.
Corria, gargalhava, se equilibrava no meio fio.
Passou a
manhã inteira assim. Em êxtase. É sóbrio dizer que não há felicidade completa.
Há uma incompletude nas coisas.
De
tempos em tempo a mãe o olhava pela janela e sorria. Abanava a cabeça como quem
dizia:
-Ah! As
crianças! Que mundo mágico o deles!
Quando na
mesa para o almoço talvez contasse a novidade para a mãe. Talvez ela sorria e
dissesse:
-Ah! Angel!
Angel! Você é um sonhador.
Deve ter
comido as carreiras, pois logo apareceu. E quando saía a mãe pediu-lhe para
voltar e escovar os dentes. Fez isso sem discutir. Comeu também todo o legume
com gosto de mato. Tudo. Mostrou para a mãe o prato limpo.
Angel foi
andando e a coisa o seguindo e quase esbarrou na menina que apareceu de repente
ao seu lado. Ele ficou um pouco desconcertado eu sei. Mas fingiu bem.
-Oi! A
menina disse. Ela segurava uma boneca
pela perna e os cabelos loiros tocavam o chão. Fiquei curioso.
-Oi,
respondeu Angel. E completou: -Ufa!
Quase te atropelei!
-Por um
triz! Ela disse sorrindo. Era uma menina dos seus nove anos.
Os olhos
dela era tão azul que confundia com o céu.
-Você é a
nova vizinha? Angel perguntou.
-Sim! Em
carne e osso. Ela tentava agora se equilibrar no meio fio.
Eu sorri no
meu canto.
-Eu sou
Angel, - aquele acolá É Celso. Quis esconder-me, mas depois acenei. Entrei sem
querer em cena. Ela acenou para mim também.
-Maria
Isabel Ptolomeu, mas pode me chamar de Bel. Ouvi-aela falar bem explicado.
Ela
sentou-se ajustando o vestidinho às pernas brancas que nem cera. A boneca no
colo. Disse:
-Vamos
brincar?
-De que?
Respondeu Angel. Eu fiquei calado. Não tem muita brincadeira que eu goste. Só
se for passa anel, ou adedanha. E tem que ser com perguntas difíceis.
Mas ela
gritou:
- Esconde esconde!
-Epa! Foi a
exclamação de Angel.
Desci. A
empregada empurrou-me até a rua. Aqui está bom, disse. A menina olhou-me de
cima a baixo. Parece até que ouvi falar: “Mas e ele assim...”. E não é que
Angel parece ter dito algo como, “pois é, mas a mãe dele quer que, a todo modo que
ele brinque, para socializar e divertir”.
A menina
olhou para o alto. Depois falou:
-Ok! Mas quem
conta primeiro?
-Meu amigo
ali o Celso.
Logo concordei.
Não tive escolha. Afinal o diferente era eu.
Antes de
começar ela queria saber tudo. Por que eu não andava, qual o problema.
-É de
nascença eu disse, para acabarem de vez as especulações.
Ela olhou
para mim. Fiquei no canto da parede e comecei a contar. Achei engraçados, uns
pontinhos de suor no nariz dela.
Comecei a
contagem. 1, 2, 4, 3, 7, 10, 90... Não sabia contar direito.
Eles
correram. Virei-me e fui à caça.
Os
paralelepípedos eram pontudos, fazendo-me chacoalhar na cadeira. Sem demonstrar
fraqueza fui galgando uma a uma. Alias estou ficando perito em ser forte. Forte em não demonstrar meus verdadeiros
sentimentos. Cheguei frente ao muro da dona Joaquina, uma lagartixa correu
assustada, parou na frente e ficou me olhando. Balançou a cabeça duas vezes. Olhei através dos tijolos vazados. Gritei:
-Angel! Atrás do pé de goiaba!
Nisso Isabel apareceu correndo do terreno
baldio. Tocou no poste atrás de mim. Ela tinha se salvado. Na corrida o vestido
subiu um pouco a cima dos joelhos. Agora eu tinha que correr até o poste
também. Assim com furor, puxei as rodas violentamente. Não podia perder essa. Quase
caí para trás. Seria uma fatalidade. Um menino quase imobilizado cair da
cadeira de roda de pernas para o ar. A cena seria grotesca demais eu pensei. Eu
tinha que chegar primeiro. Angel saltou o muro e veio correndo como um cavalo
louco. Dei tudo de mim. Os rolamentos rangeram em velocidade. Parecia que eu remava contra a correnteza.
Toquei no poste primeiro. Ufa! Foi por pouco!
Olhei a rua.
A palma da mão doía. Via tudo como se olhasse para um abismo. Mas pensando bem, sobre o abismo pode-se voar.
Era só criar asas.
Agora era
Angel quem contava. A brincadeira continuou até quase anoitecer.
Podíamos
brincar mais uma vez até o sol se pôr. Isabel contou. Eu corri para um
esconderijo que só eu sabia. Correr era metáfora. Minha mãe adorava essa
metáfora. Perseguia-me nos passeios dizendo, corre, corre corre. E eu ria
muito.
De onde eu
estava dava para vê-los tranquilamente sem ser visto. Angel foi para o mesmo
lugar. Vi quando Isabel aproximou-se dele, conversaram alguma coisa, ficaram
bem próximos, acho que Angel afagou-lhe seu rosto e beijou-a rapidamente. Mas
ela não gritou. Pensa bem, quando Isabel
viu Angel era para ter gritado que o tinha achado. Assim eu gritei:
-Parei de
brincar disso!
Isabel era muito curiosa. Por exemplo: queria
saber de tudo, de minha vida particular. Queria saber como eu fazia pipi, se eu
nunca ia andar, nem correr. Mas tirei essas perguntas difíceis de letra. Fingi
que tudo era igual. Que minha casa era apropriada. O vaso era mais baixo, tinha corrimão em
todos os lugares. Depois queria dirigir minha cadeira. Até correu comigo. Tive
que usar os freios. Ela queria até trocar de lugar comigo, para ver como era
andar de cadeiras de rodas. Depois a convenci que não era necessário. Era só usar
a imaginação.
Comecei
brincar com ela de quem pisca primeiro.
Ficamos
assim olho no olho. Ardia pra “chuchu”. É lógico quem piscou foi ela. Usei o
truque de ficar concentrado numa pintinha que ela tinha bem embaixo do queixo. Entre
a covinha. Ela tem o nariz um pouquinho, só um pouco arrebitado. Descobri que ela era teimosa como uma mula. Confesso:
Ela me fazia perder o fôlego. Quando estávamos assim no bem bom, eu descobrindo
ela pelos seus olhos, Angel mudou de assunto.
-Agora que somos íntimos, vou contar
um segredo! Disse ele.
-Certo! Cada um conta um! Entrei na
brincadeira.
-Mas tem que ser aquele segredo que
te dá arrepios! Disse Isabel com sua eloquência.
Assenti em
silêncio.
-Olha aqui!
Angel pediu
para olharmos para ele. E ficou feito
bobo balançando os braços. Pergunta:
-Não
observaram nada?
-Não!
Dissemos eu e Isabel em uníssono.
Ele balançou
a perna direita.
-E agora?
Ficamos
olhando para ele calados.
-Aqui seus
burros, não vêem? Apresento para vocês o meu mais novo amigo. Vejam! Tudo que
eu faço ele faz também.
-Ah! Que
legal! Eu tenho também! Gritou Isabel. Olha! Correu pela rua.
Eu não
estava bom com eles não. E aí gritei:
-Dois idiotas!
Os dois são idiotas! Não vêem que isso, que nos imita, que não larga da gente é
simplesmente uma sombra! Que todos têm! Aliás, toda matéria tem. As pedras, as árvores...
Tudo.
Eles ficaram
um pouco chateados. Aí Isabel para não ficar envergonhada disse:
-O vento não
tem!
-Claro que
não! Continuei. Existem coisas que não vemos, mas sentimos!
-E as nuvens
têm? Angel mostrou uma nuvem com a forma de um touro.
-Tem.
Fraquinha, disse Isabel. Quando está pesada de chuva. Aí sim tem.
Nesse
momento parecia que Isabel olhava para mim. Os olhos pequeninos, azulzinho, miúdos.
Já conhecia os olhos dela quando ficavam assim miúdos. Disse ela:
-Ah! Agora
já sei! A sombra é a cópia do corpo. Apontou com o dedo. - Veja a sua. Parece uma cadeira ambulante.
Fiquei
pálido. Mas já sabia fingir. Movimentei a cadeira. Fiquei por trás dela. E
disse:
-Veja! Estou
te abraçando! E alongava minha sombra sobre a dela.
-Tá nada! Ela
disse se encolhendo.
-Agora estou
te beijando, veja! Continuei a brincadeira.
Aí ele me
cortou gritando:
-Tá nada ela
disse ainda, quase chorando. Como não sinto?
Eu
destilando minha raiva.
-A sombra é
assim mesmo sua tonta! Não a sentimos, não tem cheiro, mas existe.
Angel
Observou:
-Sabia que depois
do meio dia ela só vai crescendo, ficando comprida até desaparecer?
-Claro! Até
o sol se pôr. Angel disse. – Veja a cadeira como está comprida. Apontou para
mim.
Aí eu
gritei:
-E você, é
uma besta quadrada! Achava que a sombra
era uma pessoa! Que imbecilidade!
Depois ficamos
um tempo calado.
Aí Angel
deu-me o avião. Joguei com força. Fez uma curva aberta, subiu e veio embaralhar
nos cabelos de Isabel. Caímos na gargalhada.
-Bem feito.
Eu disse. Ela pegou o avião e o rasgou.
-Agora conta
o teu segredo, falou Isabel olhando para mim.
Eu olhei bem
dentro dos olhos dela e disse:
-Meu sonho é
ser escritor, eu disse.
Ela corou.
-Grande
coisa, disse ela. Vai ser um pedinte. Escrever
não dá dinheiro! Embora tem muitos que...
Não
completou. Alias Angel não deixou:
- Fala o seu
agora, queremos saber!
-Então tá,
ela falou. Olhou para o céu, depois para o chão e disse:
-Eu estou
apaixonada!
Ficou
cutucando o chão com uma varinha. Naquele tempo paixão era uma palavra. O
significado não levava a ação. Sabia-se apaixonado e só. Não se beijava nem se
abraçava. Era uma coisa distante como o sol. Estava lá em cima. Intocável.
Rimos.
Falamos na mesma hora.
-Que
coincidência!
Ficamos os
três olhando para o chão. Ela falou:
-Sabia que a sombra nasce com a gente e só nos larga quando morremos?
- Quando meu
avô morreu não prestei atenção! Angel disse.
- Será que
tem um mundo só das sombras? Disse Isabel pensando.
Deve de ter,
eu pensei. Achei Isabel um pouquinho fria, uma personalidade pedante.
Aí Angel
contou a surpresa:
-Sabia que
hoje é meu aniversário? E que vocês
estão convidados?
Os dois ficaram correndo em volta de mim até
cansarem. Rimos muito.
*
Meu
pensamento divagava, longe nessa história singela. Fazia na mente o mesmo que
pescadores experientes fazem. Usam e abusam de engôdos diversos para ludibriar
suas presas. Difícil escapar, pois os peixes morrem pela boca.
Depois de
estudar por anos a estrutura, nos diversos livros que falam da poética, ainda
não achei por assim dizer, o graal, isto é a estrutura que dê ao texto,
simplicidade, autenticidade, compreensão, forma, para atingir o ápice.
Copiei,
copiei e copiei. Criei pouco ou quase nada. Como disse o velho Mago do morro do
livramento, “Há histórias que não pertence ao autor nem o título...”
Eu queria
usar essa história como isca, não importando os personagens que são meros
coadjuvantes, nem a história que é banal, mas uma frase que a personagem
feminina disse e a levei para toda a vida:
“A sombra é
cópia do corpo!”.
Nesses anos
todos, já se passaram quarenta anos, construir um catálogo de obra razoável. Tenho vários romances depositados em
bibliotecas pelo mundo a fora. Outros tantos dormindo numa pasta esquecida do
computador. No início eu queria só a glória, ser reconhecido, ser eterno.
Mas
verdadeiramente escrevia para uma única pessoa. Isabel. Mas era indescritível a
dor da incerteza. Queria que por acaso uma das obras minhas tivesse caído em
suas mãos e ela ao ler desse um suspiro. Mas isso é um sonho impossível.
Um ano
desses, chamaram-me para uma mostra em minha cidade natal. Relutei. Não me
achava preparado. Arrumei uma desculpa qualquer, estaria escrevendo um novo
título, e assim não parava nem para comer. Uma mentira razoável. Soube que tem
escritores que agem assim. Deixaram-me em paz, portanto.
Um ou outro
livro meu, os críticos deitaram algumas vezes o olhar. Se, gostaram não sei,
mesmo por que, isso perdera a importância. Entre tantos títulos houve alguns
Best-Sellers que entupiram minha conta. Foi uma época de orgias e prazeres.
Mas só de sexo e comida não vive o homem.
Principalmente quando a fama e dinheiro vêm desses romancezinhos que escrevemos
de um fôlego só: raso, entupido de sexo e ação. Mas que o grande público adora.
Não cuspo no
prato que comi isto não, pois essa fase ajudou-me, na jornada. Afinal foram
esses textos que pagaram minhas contas, viagens, mulheres, bebidas...
E a história
de um escritor não é nada mais do que, a jornada do herói. Assim devemos colocar todos os elementos inerentes
na estrutura para que a vida seja aprazível.
Porém são
essas nuances que me deixavam na maioria das vezes constrangidos, pois parecem
imitações baratas.
Nesse afazer,
“solitário”, o escritor é a soma de tudo que viu que leu que viveu que
sentiu...
Desses atos
acima acredito piamente na leitura. Pois
a respeito da vida, vive a vida dos outros. A leitura essa sim é: salvação e perdição.
Muitas vezes
somos criticados por criar, meros pastiches. Acredito que sim. Todos esses anos
tento livrar-me dessas influências, e até empaco como burro frente a uma lauda,
e nesses dias de sofrimento, as páginas são só preenchidas após muito suor e
lágrima.
E são nesses
dias dolorosos que me vem a frase dita por uma criança pura, mas que parecia um
corvo, o mesmo que assombrou outros escritores. Pois estaremos sempre andando
em direção ao abismo. E o corvo piando.
Quarenta anos
se passaram. E a frase martela dia e
noite em minha cabeça.
Um belo dia
recebi um e-mail que dizia:
“Sr. Celso
Furtado da Silva, convidamos o estimado escritor, para participar do primeiro
numero de nossa revista de arte”.
Com o
objetivo de criar, como dizia o texto, o enlace harmonioso autor/leitor,
era o principal motivo para o lançamento da revista, a “pro - letras”, e dizia em seguida que eram
para abrir espaço para literatura, artigos sobre educação, política, saúde,
notícias, vídeos, imagens e artes diversas, em português e outros idiomas.
Para aguçar
a curiosidade, dizia ainda, “a revista, apesar de recente, já conta com autores
conhecidos, e de renome mundial” e citava alguns nomes. Uns conhecidos e outros
nem tanto. Enfim avisava que, “para escrever na pro - letras é
necessário fazer a inscrição e aguardar um e-mail de aprovação, mas que meu
nome já tinha sido aprovado pela diretora e produtora Dr. Isabel Ptolomeu.
Bem antes
desse e-mail, soubera por um conterrâneo, (temos esse terrível defeito de
querer saber da vida dos amigos, no intuito de medirmos as vitórias e também os
fracassos) que Angel se tornou piloto de caça da força aérea. Que também adorava esportes radicais.
Já Isabel tinha
se tornado uma médica super reconhecida mundialmente e pelo que sabia até ali
tinha mudado para São Paulo. Até aqui
morreu o neves, eu disse. Nunca mais nos vimos.
Tenho montanhas de anotações. Essas anotações
estão numa pasta que a denominei de secreta. Que antes dessa correspondência,
não tinha ideia de editá-las e muito menos publicá-las. Pensava: essas jamais vão brotar. São sementes
podres. Jamais serão romances. Jamais será algo. Não pela qualidade.
Mas por que
fiz a vil promessa, de escrever uma lauda diariamente, sem usar nada conhecido,
nenhuma estrutura que seja, a não ser, o inconsciente. Isso por que meu sonho
era escrever uma obra maior, sem interferência externa, vir de um embrião sem
pai e sem mãe.
E tais
anotações foram-se se acumulando, num espaço dedicado ao entulho. Mas o pandemônio
do tempo é estarrecedor. Vem como uma máquina fora dos trilhos. E assim escravo deste monstro que criei, todo
dia, tal autômato, vou dedilhando as teclas, e estas formando palavras, frases,
orações, parágrafos, numa loucura inimaginável. Imagine alguém que se furte a
vida inteira a amontoar pedras a beira de um caminho. Formará uma montanha
sólida, mas amorfa. Foi o que aconteceu comigo.
E os anos
foram passando um a um. Lia dez vezes mais do que escrevia. As coisas iam ficando inacabadas. Acumulando, criando mofo, perdendo as cores.
E aí surge
esta oportunidade de cuspir tudo para fora. Colocar tudo e talvez conseguir o
reconhecimento de Bel. Meu Bel de outrora.
Queria
provar que ela estava errada.
E assim dia
e noite fui tirando da pasta secreta um por um e editando-os (o trabalho prazeroso
dos cortes), pra que o texto fique o mais enxuto possível.
Em seis meses
ficaram prontos. Justo quando dei por
acabados uma notícia estarrecedora: Isabel tinha morrido num acidente, voltando
para casa. Quem me contou disse ainda: Um acidente bobo, perto de casa.
E agora como
eu ficaria? Como a responderia?
Meu luto foi
curto. Lembro que fiquei atarantado uma semana. Sem comer e nem sair. Depois já estava comendo, bebendo e fazendo sexo
normal.
Os escritos
é que submergiram.
Tudo foi
jogado numa gaveta e esquecido por um longo tempo.
Só hoje
quando completaria dez anos de seu falecimento pude reler alguma coisa.
Sou categórico
em dizer: Nessa vida somos tudo: Puta, bandoleiro, cafetão, jornalista, poeta,
dentista, médico, empresário, juiz, mocinho, bandido, ditador, médico etc. e
etc. Tudo o que queremos ser.
Tinha a ideia
megalomaníaca de ser Deus. Um deus à beira do abismo. O olhar no vazio. Um olho no inferno outro no
paraíso.
Esse tempo
todo na lida, copiando,estudando diversos autores para melhorar os textos. Meu sonho era escrever “O Romance”. O grande
texto. Assim enquanto escrevia
amenidades, Li o sistema de Stanislavski: Em que diz: O primeiro aspecto do
sistema é colocar o inconsciente para trabalhar. O segundo é: Assim que se
inicia, deixe-o de lado (leave it alone).
Ele dizia
que o subtexto é tudo aquilo que o ator ou personagem, diz, não com as palavras,
mas com o corpo. E é justamente aí onde se encontra o graal.
Aí eu passei
a anotar as falas de pessoas comuns. Nas ruas nos bares, em casa. O que interessava mesmo eram as ações. Na face está o que não se diz. A verdade crua.
E acredito que o ator completo, é aquele,
que além de falar o texto, passa o que está nas entrelinhas. “O que vem para a face, estão nas dobras do
texto”. Um personagem pode dizer: Eu te odeio, e transparecer para o público:
Eu te amo! E vice e versa.
Assim foi
quando, há exatos oitenta anos aquela menina, Bel disse:
-As sombras
são a cópia do corpo, a sua se assemelha a uma cadeira!”“.
E só agora depois de longos anos tenho a
coragem de respondê-la:
“As sombras
sim, existem. Falo agora categoricamente. Mas só do corpo. A alma é
transparente. E ela a sombra, nas nos abandona na morte. A alma sim”.
Digo mais:
“A
sombra, a terrível sombra que todos temem, é somente cópia do corpo, não da
alma”.
Brasil, 29
de Dezembro de 2016