A iniciação
Desde menino, quando ainda morava no norte eu lido com
barro. Lembro quando trabalhava numa olaria, fazendo tijolos. Porém esse
trabalho é chato é repetir a mesma coisa diariamente, embora sabendo que as
construções aqui se ergueram devido aos tijolos que eu fiz. Conseqüentemente ficava
triste quando via a obra pronta e meu trabalho escondido sob argamassas. Aí larguei esse trabalho injusto.
Depois para viver comecei a copiar santinhos. Foi a pedido
de um padre. Conheci dessa maneira uma
infinidade de santos. Deve de ser porque os pedidos de compaixão são muitos. Mas
santo daqui tem pouco ou nenhum. Até questionei o padre sobre isso. Ele
respondei evasivamente, uma questão de educação ou fé não entendi muito bem, fiquei
matutando. Depois deixei pra lá que essas coisas de pensar ficam para os
sábios. Um sábio que nem Platão que eu li num livro que achei.
O santinho que vende mais é Santo Antônio. O Santo
casamenteiro. Vende que nem água. Parece que as mulheres vivem atrás de homem
para casar. O outro é São Judas Tadeu, o santo dos desesperados. Tenho um
desses na cabeceira da cama.
Mas o homem, principalmente o artista nunca está satisfeito.
Embora as vendas fossem boas e dava para se viver tranquilamente com esse
comércio, eu andava triste, sorumbático. Lembram da história dos tijolos que
ficam por baixo da argamassa? Os santos eram a mesma coisa. Quem bate os
joelhos no chão para rezar não quer nem saber quem fez. Se alcançada a graça
compra até uma réplica. E afinal eram cópias e o que eu queria era criar uma
obra com pouca interferência ou nenhuma. Eu queria ser eterno.
Mas ser eterno para
mim não era viver para sempre, Deus me livre e guarde! Isso não! Isso eu não queria. Sei que essa
vida de dores e tristeza tem que um dia ter fim, Deus é que põe e dispõe. Quero
ter isto sim, a imortalidade dos poetas e artistas em geral. Eis o meu sonho. Por
isso aquele dia usando a razão que todo homem deve ter, veio-me a ideia da obra.
Seria uma obra maior. Algo que todo artista sonha em fazer,
não os mequetrefes que existem por aí aos montes que não sabem nem fazer uma
concordância das partes ao todo. Ou esses que escrevem em revistas ou blogs de
quinta categoria.
Tem muito artista de
povoado de fim de mundo que não chega aos pés dos grandes mestres de outrora.
No início também senti muita dificuldade. Todo artista púbere deve se sentir assim.
Depois descobri que para criar é preciso primeiro copiar, copiar e copiar. Todos
fazem. Alguém disse não me lembro quem, que não há um livro sequer de um só autor,
e sim que todo livro tem muito de outros autores, às vezes um parágrafo, outras
vezes um capítulo e tem uns acreditem, que do dono só o título. Ou o cúmulo do absurdo: Nem o título. Isso não
é demais?
Embasado nisso comecei a copiar. A imitar mesmo. E de tanto
imitar a coisa começou fluir. É como um jogo de espelho, muitas vezes a imagem
é melhor que o verdadeiro, podendo afirmar que a imagem é original, mas
invertida. Inversão da verdade.
E eu nunca fui bobo. Eu pegava a obra de um e mesclava com
outros e nessa mistura nascia muitas vezes algo novo. Mas sei que inovação no mundo não existe. Pura
utopia. Tudo vem de um mesmo filão.
Não ria de mim! Fica aí olhando em volta com essa língua pra
fora esses olhos estúpido! Vem cá! Vem cá! Pega!Pega! Isso! Isso! Muito bom!
Agora olha pra mim com esse focinho preto!Vou falar bem dentro dessa orelha
peluda. Essa obra vai ser de arte viu? Não esses santinhos aí cheios de
pecados. Não saia correndo assim! Vou
criar sim hum! hum!
Eu ouvia minha própria voz e achei-a meio soberba. Estaria
louco? Que importa? A maioria dos artistas ou são loucos ou tem alguma tara. Desconfiei
que Dostoiévski fosse pedófilo. Que
Kafka era o homem mais estranho do mundo. Mas e daí? O que importa é a obra,
não o homem. Agora já não tenho tanta
certeza. Eu não sou louco. Se for tara querer se sobressair dos outros então
sou tarado.
Saí para o lado do oitão onde tenho um belo barranco onde
posso retirar a matéria prima para minha obra- Barro vermelho-, pois até DEUS usou
desse artifício, não é mesmo.
Bem cedo coloquei a mão na massa, digo no barro. E mãos a
obra. Com a ajuda de um velho carrinho desses usados pelos pedreiros, indo e
vindo debaixo de um horrendo sol, que me fazia gotejar o suor do corpo, separei
num canto tudo o que precisava. Foi quando ao levantar a cabeça, quando enxugava com um
trapo velho a testa enrugada, de soslaio, vi o sol descer por detrás da serra
do pica pau. Vixe! Escureceu sem eu perceber.
Juntei as ferramentas, guardei-as no paiol, tomei um banho
refrescante e fui dormir. Mas quem disse que preguei o olho? Fiquei foi olhando
pela janela o negrume da noite, os sons, os cheiros, suas nuances de claro
escuro, aturdido com o pensamento em turbilhão, naquelas horas quando ficamos
pensando no que trará o futuro, ou mesmo a nossa, a minha criação.
Só quando o galo cantou três vezes, e o vento da manhã
sacolejou as ramas do maracujá é que consegui tirar um cochilo, tão na
superfície da consciência que qualquer barulho que fosse me acordaria,como um
lago quieto que se atira uma pedra.
Lembrei-me do trabalho e levantei-me de um pulo.
Assustei o amigo, o velho cão, que saiu de debaixo do fogão
de lenha, sacolejou as costas, esticou-se se espreguiçando, e com a língua para
fora tentou abocanhar alguma moscas que voejavam ao redor e balançou a calda
para saldar-me. Bendita sua inconsciência.
Passei batido,
atravessei a coberta onde as ramas do maracujá pendiam suas flores amarelas e
com uma lata busquei água do velho barreiro onde criava algumas traíras.
Assim reiniciei o trabalho de preparo do barro, adicionando
água e amassando a argila até esta ficar compacta e sem bolhas alguma enquanto
o cão que eu o chamava de Platão, ah! Esse nome eu gostei muito, foi alguém muito
importante, esquecido agora momentaneamente pelos jovens.
E mais um dia se passou e novamente só cochilei pela manhã.
Não sabia que a arte sufocava assim, era
como as sanguessugas do velho barreiro quando saia de lá, com o corpo todo
dolorido e cheio delas esgotando quase toda a minha força, mas sei também que
quando terminamos, quando cai o ponto final, sentimos como um expurgo, uma
catarse nos sentindo livre e leve de qualquer culpa.
Platão nesse ínterim conforme eu pensava, observou-me e
creio que via um homem de pele marrom, mãos cheias de calo, rugas pelo corpo, a
ossatura aparecendo sob a pele flácida e solta, e os olhos brilhando como se
aquele trabalho fosse o mais importante da vida. É óbvio que ele não pensava
tudo isso mesmo chamando-se Platão, mas sei que existe animal que só falta
falar e ele era um desses.
A prova é quando eu esqueço alguma ferramenta e Platão nota
logo e levanta-se das patas traseiras corre até o alpendre e a trás na boca
como se fosse um osso. Ou nos dias tristes de total melancolia, pois existem
esses dias mesmo trabalhando-se manualmente de sol a sol, e nesses dias ele
sobe calmamente até o morro do juazeiro. Há ali uma pequena cruz, onde enterrei
um de seus filhotes e ele fica um tempão uivando ao vento. E esses uivos para
ele é a catarse, como poesias trágicas de tempos remotos. Ou quando chega
alguma visita e ele abana o rabo para quem deseja e ladra para os que não foram
convidados.
Eu afinal já tinha criado o tronco e a cabeça e parei para
observar as formas daquilo que viria a ser minha obra, se estava como que eu sonhara
isto é, me encontrava no limite que as dúvidas aparecem, principalmente se não
existir um esboço ou um escopo predeterminado ou algo para seguir. Não acredito nas obras que saem no “estalo” como
num passe de mágica e fiquei dias e dias de tal modo com o olhar vazio das
pessoas insanas.
Foi quando me lembrei dos livros que estavam sobre a mesa, no
quartinho de despejos. Corri, peguei e
abri sobre a mesa na página onde tinha uma gravura de um homem em pé e de
braços abertos e dentro de um círculo escrito embaixo: O homem vi-tru-vi-a-no. Eu lia mal e devagar, soletrando as palavras:
Ali naquele pequeno livro estava a cópia
do que eu queria fazer.
Assim usando uma régua fui dimensionando aquele corpo de
argila da melhor maneira possível. E quando dei por terminado notei que a
criatura não era parecida com ninguém da região. Quem era então? As mesmas
perguntas seculares. Quem somos, de onde viemos e para onde vamos?
Nesse dia encontrei-me mais angustiado ainda. “Raimundo!
Raimundo! Eis um problema, não uma solução!” As coisas não se encaixavam, parecia
que eu não criara nada de novo, eram somente sombras do passado. Não preguei o
olho e todo vozerio que vinha da escuridão me assustava até a hora em que
realmente ouvi um sussurro. Não é possível pensei. Moro a seis léguas da
cidade, e nesses confins que estou, a essa hora o que se escutava era tão
somente minha respiração ofegante e as batidas do coração. Além do mais se
houvesse algo estranho Platão seria o primeiro a ouvir, e o que vem até meu
pavilhão auricular agora eram as lambidas que ele dava quando abocanhava algo
ou deglutia a água da tigela de barro.
Mesmo assim levantei-me com dificuldade, as juntas estalaram,
e bamboleando atravesso o corredor e de olhos fechados para acostumá-los na
escuridão, abro-os devagar no momento em que entro no quartinho de despejos e
vejo um homem enorme uma mão passando uma página de um livro e a outra
brincando com Platão deixando esse ao nível de brincadeira, mordê-lo ao dedo
mínimo.
Tomo um susto. O homem vira o rosto para mim e sorri, ainda
acariciando Platão e esse se levanta nas quatro patas para rosnar quando me
reconhece e vê meus olhos e boca arreganhados. No momento em que olhava para
Platão e para o homem uma idéia clareou meus
pensamentos e gritei:”O homem de Virtrúvio?”
Ele olhou nos fundos dos meus olhos e o que vejo é um olhar
pueril. Levanta-se devagar e sua cabeça quase bate na cumeeira do telhado. Quem
sou eu pergunta-me. Eu não sei o que falar. Até ontem ele era apena uma
idéia. Depois argila na mão de um artesão. Ouvi um gemido.
Eis o meu drama. O que respondê-lo se não sabia nem de mim?
Depois ele colocou a mão no rosto e vi “O pensador” de Rodim
e ficou assim por horas. Parecia que eu estava num grande teatro e que todas as
formas passavam pelos meus olhos cansados. E todas as estátuas que eu já
fizera, desfilava para mim cantando um hino religioso.
Abateu sobre mim uma tristeza. Quando me dei conta que o que
eu criara poderia ter vida própria, e logo pensei aturdido: um novo Frankstaim!
Ele me caçaria até a morte? Sentimentos
os mais diversos passaram pela minha cabeça.
Cheguei a uma terrível conclusão. Eu não poderia cair nos
mesmos erros. O que faria? Estaria eu cometendo um pecado mortal na arrogância de
criar algo, mais perfeito do que Deus?
Bom, pensei com meus botões. O primeiro quesito: A criatura
teria auto-suficiência em respeito à
alimentação, pois sei que as maiores divergências no mundo ocorrem pela busca
desta. Observe a natureza. Por que o leão acorda cedo e vai à beira do rio
esperar o alce? Para passear? Não! Vai à caça. E ai dele se não conseguir até o
final de um dia um alce inocente. É a lei da sobrevivência filho. A natureza é
cruel.
Segundo quesito: teria que ser assexuada ou hermafrodita.
Pois a segunda causa de brigas é devido ao sexo oposto. Briga entre mulheres,
entre homens quantos crimes vieram na esteira do amor?
Terceiro quesito: Jamais proibir o homem a não experimentar da
árvore do conhecimento. Esse foi o erro. Mas tudo que é proibido não é
melhor? Pelo contrário ajudá-lo-ei nessa
busca oferecendo-lhe todos os elementos para tal. E com certeza sem a as duas
preocupações anteriores, o homem poderá assim exercer toda a sua capacidade
mental e ser feliz.
Assim peguei todos os livros que eu tinha e despejei sobre a
mesa. Ele me olhou como uma criança sem saber o que fazer e fomos soletrando
juntos. Parece que tinha o dom, pois olhava extasiado para as figuras e às
vezes sorria. Acredito que o homem só
será livre quando possuir todo o conhecimento para fazer suas escolhas.
Ele apontou um livro que tinha uma gravura. Meio que
gaguejando falou:
-Fêmea.
Eu peguei o livro e troquei a página. Ele balançou a cabeça.
Achou rapidamente e repetiu:
-Fêmea! Quero fêmea!
Tentei passar para ele tudo que sabia ou não sabia sobre a
fêmea, mas era em vão. Ele batia o pé como uma criança grande. Fiquei puto com
a insistência. Disse que ia pensar no
caso e fui dormir.
Antes de o galo cantar ele tocou em meu braço.
- Fêmea hoje. Apontou o barro ali junto. Amassado e pronto
para o uso.
Dessa forma pus mãos à obra. Ele ficou por ali, ora rindo
ora sério. Como uma criança na véspera do natal. A meia noite a obra estava
acabada. Faltava o sopro da vida. Fomos dormir. Sabia que algo, uma aragem
matinal, o clarão da lua tinha dado vida ao meu primeiro projeto e não seria
diferente com esta.
Tive um pesadelo. Chovia que nem um dilúvio. A escuridão era
cortada por flashes de raios. Um casal de mãos dadas andava de costas para mim abraçado
e de uma nuvem aberta em céu tenebroso saia uma voz estupenda e gritava: “Fora!
Vocês não merecem o paraíso!”.
Uma angústia abateu-se sobre mim. Minha culpa, minha máxima
culpa eu gritava, mas minha voz não saía e uma dor terrível apertava meu peito.
Acordei sobressaltado. Olhei em volta e reinava o silêncio.
Levantei-me de um pulo. Vi pegadas em direção a cachoeira.
Quando cheguei às pedras o casal se banhavam e riam de suas brincadeiras. Pareciam
felizes. Tinham o essencial: A natureza em volta e um ao outro. O verdadeiro
Éden. Ele alisava os seios dela rindo e ela por vezes segurava seu membro nas
mãos e caía na gargalhada quando o membro intumescia.
Veria eu de camarote o que acontecera a mais de um milênio
no paraíso? Encostei-me numa pedra ali perto, na sombra e fiquei observando
entusiasmado. O que aconteceria dali para frente? Ambos sabem zero de sexo.
Como seria a coisa. Para quem já sabe é como olhar uma tomada na parede e ligar
qualquer aparelho elétrico. Enfia-se a tomada no buraco e pronto. Mas, e quem
jamais teve experiência alguma?
Eu vivi em fazenda e nós aprendemos na maioria das vezes
sobre sexo observando os animais. O galo
no terreiro. Corre atrás da galinha belisca na crista e trepa nela. Leva alguns segundos. Os porcos. Tenho uma curiosidade em relação aos
porcos. O orgasmo do porco dura meia
hora. Soube isso recentemente. Morri de
inveja. Vi jumento também. É o mais prendado. Quase toca no chão. Vem com a
estrovenga dura, morde no pescoço da fêmea dá umas cinco mexidas de vai e vem e
goza.
Aprendemos também com as brincadeiras de criança. Médico,
papai e mamãe, de se esconder, pêra, maçã ou uva, tudo isso servia para a nossa
prática no futuro, embora essa época aprendemos mais acerca de odores. Era
cheiro de peixe, de urina de fezes.
Já a especialização acontece na rua. As descobertas, as
punhetas memoráveis. Eu tinha uma lista das escolhidas. Completei o abecedário.
Toquei prá todo mundo. Nem as freiras escaparam. “Cuidado que nasce pelo na
mão!”, “Vai ficando amarelo até ficar fraco e morrer”! “É pecado mortal”. E
quem disse que eu parava. Houve tempo que eram duas por dia.
Depois mais velho
usei muito no meu aprendizado os filmes de sacanagem. E até hoje, creio que não
sei fazer direito.
Mas voltando ao casal veio a dúvida. Como farão se não tenho
nenhuma criação por perto, a não ser um velho cão para observar. Livros com
esse assunto não tenho, se tivesse pelo menos aquelas revistinhas de sacanagem!
Teria todo ser um instinto tipo um software instalado e é só
iniciá-lo e seguir um tutorial? Ou temos que dotá-los de conhecimentos? Se
assim como explicar os homossexuais? O tutorial teria sido trocado? Ou para
cada um existe um tutorial e a escolha é subjetiva? Muitas dúvidas! Dúvidas
seculares.
E a respeito de Deus. Acreditarão que eu sou seu pai e seu
deus? Acho que não. Aquele criador onipotente e onisciente ficou para trás.
Agora o personagem é dono de seu destino e da sua história.
Vamos observá-los.
Ele primeiramente ficou olhando as curvas da mulher. Depois
a tocava com as pontas dos dedos. Ela enrubescia tentava se cobrir, mas depois
ficava rindo apontando as coisas dele balançando. Ele da sua parte olhava
aquela fenda escura sem entender.
Ate chegar ao
kamasutra pensei, demorarão uma eternidade.
Mas isso é bom.