sexta-feira, 28 de junho de 2013

O afilhado do diabo





Sente-se, por favor. Aceita um café? Não. O delegado sorveu de um gole a xícara branca com café preto. Olhou pela janela o sol quente e o vento balançar as folhas do coqueiro. O escrivão colocou papel na máquina Olivetti ajeitou as fitas e ficou de prontidão. Pode começar.
Não me canso de falar seu doutor. A verdade é uma só. O ponto de vista é que muda. Nesse sertão esquecido por Deus já vi de um tudo moço. Vi gente morrer de sede e de fome de morte matada ou morrida.  Um desassossego. Assombrações já não me metem medo. Sou um dos filhos mais novos, uma ruma, são treze ao todos do velho Amâncio, conhecido daqui, antigo morador do sítio “Doze porteiras”, sítio este, apanhado de finado Turíbio.
Escreva aí: Filho mais novo do Sr Amâncio de Souza Silva de nome Manuel de Souza Silva vulgo “Mané Branco”. O estalar das teclas era escutado longe. De hora em hora um jumento relinchava.
Pois!  O mesmo Turíbio que não aceitava ser coiteiro do cangaço. Era brabo? Vixe Nossa Senhora do Perpétuo Socorro! Uma caninana! Mas com Lampião o buraco é mais embaixo.  E o cangaço é mais forte de que o governo. Sempre foi.  E rouba menos. E o que roubava distribuía pros pobres, num sabe?  Pois então! Até um filho do velho que participou da revolução de trinta...  O que mancava da perna esquerda? O próprio senhor.  Levou um tiro, lá nele bem acima do joelho.  Andou com Prestes. Eu dizia que era melhor ficar do lado do cangaço num sabe, mas ele não, um teimoso, cabeça dura dos diabos.  Dizia que nunca gostou de comunistas e que um dia venderia tudo e ia embora. Não foi. Bateu as botas e está enterrado aqui, no cemitério de São Judas Tadeu, junto com a mulher, uma santa que Deus a tenha. Sei disso pelos outros daqui. Não vi. 
Meu pai apanhou o sítio do filho. Foi logo que o velho Turíbio se foi.  
Escreva aí: Profissão agricultor. As teclas estalaram. Puxou para o início da página. Um galo cantou no terreiro.
A primeira coisa que o filho fez, bem antes de enterrar o velho, foi vender para o primeiro que aparecesse. E esse um foi meu pai.  Dizem que saiu uma bagatela, coisa de tostão. Ninguém queria possuir. Tudo medo de lampião.
Depois eu vi com esses olhos que a terra há de comer, muitas vezes Lampião chegar aqui, baixar acampamento e ficar descansando. Diz que ele me pegava no colo, bulia comigo ate fiz um dia porqueira nas calças dele.
Escreva aí: Afilhado de Lampião. Tomou outra xícara de café.
O que ele pedia era de comer prá ele e seu bando e depois uma rede dessas de casal armada debaixo dos juazeiros. Bem ali defronte a casa grande.  Quando tava aquela quentura dos diabos, sem o vento nordeste assoviar nos angicos, ele ia lá prá baixo do pé de oiticica onde ficava um areal bom para se pisar descalço. Ficava assim pensando na vida, esfriava a cabeça, os pés. As rolinhas catando ali perto suas pedrinhas e cantando fogo pagou, fogo pagou, fogo pagou. Uma boniteza só. Essa cantoria delas mais as cigarras cantando mais a sombra fresca dava uma moleza, um sono bom, e eles dormiam de roncar. Só um capanga ficava de olho em pé que ele não era besta. Tinha muitos inimigos. E os inimigos não dormem num é?
Então seu doutor, era um sítio ajeitadinho, precisava vê. Ficavam as margens do açude grande. Tinha seu valor. Água naquela região é ouro. Atrás da casa tinha um serrote de pedras negras. Lembro-me como se fosse hoje, quando criança gostava de subir até o topo. Ficava olhando os carcarás voarem e nos períodos secos ver lá de cima, as terras as margens enrugadas e ressequidas. E o povo lá embaixo que nem formiga de miúdo.  
E a naturezas tem suas belezas e suas rudezas moço. Quando chove no sertão, essa terra fica bonita de se ver. As margens das rodagens ficam quaradas de rolinhas e a seriema canta em cima do cupim. A juriti pia bem cedo e os galos de capinas cantam tão alto e bonito que deixa até a gente besta.
Agora quando vem a seca, moço, dá dó de se ver. As aves vão pra longe, a criação morrem a míngua e a terra fica tão esturricada que qualquer vento levanta o pó vermelho. E foi esse ano moço, ano ruim que aconteceu toda desgraça.  Eu tava bem aqui escorado nesse moirão de amansar cavalo, fazendo um cigarrinho de palha, na hora de se pensar, pois ás vezes fica assim deslumbrado com tudo, com o verde, com a chuva, mas a gente sabe que Deus dá e Deus tira num sabe, foi quando deu aquele ventinho pra os lados do curral, e veio estralando madeira, as juremas, os angicos era trec -trec -trec e as rolas voando pra todo canto, misturadas com folha seca pó e papel, e quando chegou bem ali no meio do oitão formou aquele redemoinho de poeira e subiu as nuvens. Diz que o demo passeia ali dentro. E quem quiser ver o bicho, basta só jogar uma pitada de sal. E aí o vento, entorta, girando e torcido que dá medo. E naquele dia joguei moço. Joguei sal.
No início nada. Esperei o cheiro de alcatrão, porque o demo tem cheiro de coisa ruim. Até deu um ventinho assim brando, trazendo o cheiro de longe da aroeira misturado com marmeleiro quando raspamos as cascas para fazer cipó, num sabe. Cipó que usamos para fazer cavalo de pau. Esperei, esperei... O demo não apareceu.
 Eu devia ter na época uns dez anos mais ou menos, aqui não se conta o tempo de tanto trabalhar moço. O vento passou e eu esqueci.
Passou-se oito anos. Um dia bem cedo eu tava trabalhando. Eu já tinha apartado os bezerros, soltado os cabritos, catado gravetos para o fogo e tirado o leite. Aí a porteira rangeu. Eu vinha subindo os degraus do alpendre e meu pai coava o leite com um saco de estopa, e enchia as garrafas para serem vendidas de tardinha no povoado, quando olhamos juntos. Daqui vi que meu pai afastava os mosquitos com o chapéu de couro.
-ô de casa, gritaram.
Nem deu muito tempo de ver quem era os de fora visse!  Vi de supetão assim num sabe, que era um homem de seus quarenta anos mais ou menos carregava uma sanfona, outro com o triangulo na mão, mais outro com a zabumba. E mais uma mulher jeitosinha, com trança comprida. Só deu pra ver isso.
Escreve aí: três homens e uma mulher.
E só vi porque quando eles passaram a porteira da frente, deu um estralo, nisso os cachorros que estavam comendo mosquito debaixo do banco no alpendre, correram latindo. Aqui que eu olhei. Nisso meu pai tirou o chapéu e ralhou com os cachorros. Foi gritando, passa bicho ruim! Sultão! Capeta! Rói osso! Aqui! Aqui! Volta! Nisso os cachorros voltaram com os rabos entre as pernas. Gota serena. Vez!
A valência minha, seu moço, foi meu pai ter pedido que eu fosse lá pras bandas do açude que era pra modo eu arrumar uma cerca, que Paraíba e Pente fino duas vacas disgramadas de ruins, tinha fugido por ali. Foi minha valência. Aí não estava aqui pra contar essa história.
Escreve aí: Saiu antes do acontecido.
Tossiu. Foi à janela. Parece que vai chover. Calorão.
Calorão mesmo seu doutor. Naquele dia também.
Os cachorros deitaram-se debaixo do banco, e continuaram comendo mosquito. Era o que se podia fazer. Medo do chicote de meu pai. Ele não era ruim, não Deus que me livre falar tal coisa.  Ele queria isso sim, era dá inducação a gente num sabe. Isso é que eu pensei quando um dia ele me mandoueu ficar num canto ajoelhado em caroço de milho. Ele me disse que a maior tristeza do mundo é um homem não saber ler. E ele tinha razão, pois na época da debulha do feijão vinha o neto de seu Aparecido e fazia nossa alegria. Ele lia seu doutor aquelas história de príncipes e princesas que a gente ouvia a noite inteira de boca aberta. E tudo escrevido com letrinhas assim que está saindo dessa máquina, num sabe. Outro dia me chamou de sonso porque eu tava olhando as filhas de seu Abertinho tomar banho de rio.  Na frente dos outros ele achou um ruim danado, mas com minha mãe bem que ele gostou. Ele se riu e comentou assim baixinho: Veja! Apontando com o beiço para mim. Eu vi porque olhei assim de lado. Tá virando homem.  Senti o orgulho nos seus olhos de ter um filho homem.
Mas como ia contando doutor, o homem um baixinho atarracado foi chegando devagar, desconfiado. Peste de pedra. Quentura. Ao chegar ao pátio bem na sombra da jurema, ofuscado pelo sol os olhos um pouco fechados, tirou o chapéu e falou que vinha de parte de seu Matias lá de Borocongó e se possível queria uma estadia, um dia já bastava, o mais tardar dois, e que depois seguiria viagem para Piancó. Cabra dos diabos, gota serena.
Escreve: Homem baixo, protegido de Sr Matias de Borocongó. Trocou a folha e botou outra folha branca.
Meu pai disse que não se aperreasse e que de Matias vinha sempre coisa boa, era do mesmo partido e que colocasse as coisas na despensa e podia ficar no quarto dos fundos, ficassem descansados. E aproveitasse que Maria tinha acabado de fazer o almoço que todos sentassem a mesa que comeriam a melhor galinha de cabidela da região. Bexiga da peste.
E nessa época tava seco prá encardir. Vixe! Só se via pelos caminhos calangos e lagartixas. Alguns urubus nas pedras. O carcará voava baixo procurando algum bezerro desgarrado, as juritis já tinham se mandado para outras bandas, e as únicas plantas verdes ainda era a palma plantada no oitão, e os três juazeiros da frente da casa.
Pensei comigo na época. Não se apoquente home. Levanto a cerca, corro de volta, almoço e ainda vou ver aquela gostosura de mulher.  A galinha bem cedo eu sangrei, coloquei o sangue com o vinagre no prato para ele não coagular e sabia que agora mesmo ela tava cheirando longe, arriégua! e aí depois ia ter a cantoria.
Mas não era simples assim não moço. Até o açude foi uma boa caminhada, as veredas secas e quando passava as rolinhas revoavam. Nisso pisei num espinho de juá. Peste! Peste! Entrou pela sola a fora, que eu senti lá no meu íntimo. Sentei quase chorando de dor, e puxei com força. O diabo havia quebrado dentro. Agora ia mancando e sabia que a noite ia doer, depois no outro dia amanheceria reimoso, inflamado sem poder tocar o chão. O remédio eu sabia. Tinha que esquentar o sebo de carneiro, na lamparina e fazer pressão, que no outro dia o espinho com um aperto dolorido saía. Depois cortei caminho, pela capoeira, cheia de carrapicho, mandacaru seco e lajedos. Caminho da peste aquele.  As ramas secas, relava, ralavam, queimava a pele e sol uma quentura da peste, o sal do suor ardia à pele. Arrelia e gastura.
Nesse ínterim tive que me lavar no açude que tinha virado uma poça só. Dava até pra ver o lombo das traíras bordejando no barro. Que pena deu. Em volta a terra esturricada. Desci a barragem e avistei a porteira. Bem em cima um casal de João de barro. Um cantava e outro respondia. Bom sinal. Chuva? Nem sinal. Interessante. Os cachorros não correram. Rosnava só. Como quando entoca um tatu. Cheirava em volta e cavava com as patas. Do mesmo jeito. Achei esquisito. Corri todo o pátio, até as galinhas d angola fizeram um escarcéu. Subi os degraus num pulo. E o que vi moço até hoje não esqueço. Meu pai, seu Amâncio, moço, estirado na sala morto. A bíblia sobre seu peito. Não acreditei. Gota serena da peste. E bem la nele, moço, uma faca enfincada. Tonteei. Segurei nas paredes para não cair.
Escreve aí: Arma do crime branca. Faca peixeira.
Atravessei o corredor desorientado, doutor. Minha mãe... Mãezinha... As panelas queimando. A cabidela seca. Minha mãe caída de banda. Minhas pernas tava bamba moço, nem sentia mais o espinho. Corri pro quarto. Alguma explicação. Minha mana Aparecida, na cama toda usada moço. Amarrada e amordaçada. Assim de quatro que nem uma cabrita. Coitadinha. Até golfei quando vi. Moléstia dos diabos! Bestas feras! Não tinha precisão disso. Uma menina santinha ainda.
E aí minha vida virou toda, moço. Ali mesmo jurei vingança.
Solidão... Solidão... Gavião no céu azul. Estrela no fundo do mar. Cruzes a beira do caminho. Peguei meu rifle papo amarelo, meu punhal cabo de prata, uma garrucha de dois canos água no cantil, carne seca no embornal e caí no mundo, andei... Andei... Anos a fio a procura doutor.
Não deixaram rastro moço. Dizem que a vingança é um prato frio moço. Mas mesmo frio eu desejava com todas as minhas forças. E nessa procura, na solidão de meus caminhos eu não tive paz um dia sequer. Não passei um dia sem pensar naqueles malditos que tirou a vida de quem eu mais amava.
Já havia perdido as esperanças doutor, tinha voltado para casa, depois de andar como cigano essa região toda desde Minas passando pela Baía, Sergipe, Alagoas, Paraíba e Pernambuco. De norte a sul leste a oeste. Nada deles. Tinha até já plantado um roçado bom de macaxeira, que estava no ponto de colheita, feijão de corda e lá perto do serrote um roçado bom de milho. Tinha também uns capotes bons, umas galinhas poedeiras e umas cabras leiteiras.
Tudo parecia de bom modo. Mas restava em mim aquela ferida moço. Tinha jurado. E juramento é coisa séria. Foi quando Nonato, coiteiro de Meu padrinho lampião, chegou numa mula toda suada, no terreiro e sem nem desmontar gritou: Os desgraçados que você procura, tivemos notícias eles vivem numa pequena roça lá no Ceará. Meu coração disparou doutor. Levantei de um pulo. Nesses anos todos, várias notícias assim, mas todas falsas. Essa de meu padrinho com certeza era verdade.
Tomei um gole de água fresca da moringa, e sentei no alpendre.
-Se achegue homem! Quer um café uma cachaça?
-Uma cachaça!
Olha Lampião ofereceu um de seus capangas, se o senhor quiser para lhe acompanhar nessa viagem.
-Não carece! Disse. Essa é guerra particular. Mas mesmo assim agradeça.
Nesse dia mesmo arrumei tudo prá viagem. Duas mulas boas e um burro. Carne seca e água. O punhal na cintura, o papo amarelo atravessado e duas cartucheiras cheinhas assim ó, de bala. Piquei na estrada.
Passei muito lugar bonito nesse sertão. Mas não tava para fazer turismo não. Viajei e viajei. Parecia que nunca chegava. É como aquelas festas esperada. O diabo do tempo essas hora não passa.
Uma tarde avistei uma casinha de meia água no pé duma serra. Deixei os animais amarrados, e fui à maneira dos índios, para examinar mais de perto. Analisei a região. Eles escolheram bem o lugar.  Quem chegasse pela estradinha era logo visto de longe. Esperei anoitecer. E desci como um rato em silêncio. Esperei acordarem. Peguei primeiro o baixinho. Apontei o fuzil para sua cabeça e perguntei:
-Onde você deu a primeira facada? O bicho começou a chorar e rezar. Cadê a coragem hem doutor. Ele falou que foi debaixo do braço de papai num sabe doutor. Ai eu desembainhei o punhal visse, ele até brilhou na luz do sol. O bicho tremia que nem urubu cangueiro. Aí enfiei aqui ó, bem lá nele debaixo do sovaco. Lembrei quando eu matava porco. Do mesmo jeito doutor. O bicho tremia, suava, dava até para escutar seu coração num sabe. E aí senti a catinga de mijo. O Senhor sabia que quando se morre fazemos nossas necessidades? E aí o soltei e despencou no chão durinho.
Escreve aí: matou com atos de crueldade. Tudo premeditado.
Peguei o da zabumba. Ele começou sofrer bem antes. Quando sabemos o que nos vai acontecer à dor é maior. Aí perguntei:
-E você, filho de uma égua, onde você deu a maldita facada?
Ele falou que foi aqui ó lá nela, minha mãe, bem em cima do umbigo dela. Peguei pelos cabelos e arrastei lá fora. Ele cobria o bucho com as mãos. Pedia piedade. Que piedade? Ele não teve com ninguém? Dei uma só, bem no umbigo. Entrou até o cabo. É parte sem osso. Mole. Só tem bosta. Aí desceu o melaço. As tripas. Morreu rápido o desgraçado.
Aí peguei o do triangulo. Um negrinho magricela. E você demônio. O que fez a minha irmã? Mandei-o tirar a roupa e ficar de quatro. Peguei o cabo de uma enxada e enfiei no cu dele. Até tocar no fundo. O bicho gritava que nem porco sangrado. Depois dei umas pauladas na sua pica que ficou roxa. Arrebentei seus colhões. Morreu gritando de dor.
Nisso a moça chorava dizendo que não tinha feito nada. Pensei assim: Se não fez nada pecou por omissão. Ela estava entregue a mim, sozinha naquele deserto, em volta só a caatinga.
Aí arresolvi viver com ela. Vivi com ela bem dois anos. Até o senhor me encontrar naquele pé de serra. Também tava cansado de fugir. De se esconder. Vida de bicho, vixe. Não é bom. Se, matei tenho que pagar. Sei disso. Ela foi uma boa amásia. Calada. Trabalhadeira. Esqueci até o sangue ruim. Isso tudo.
Escreve aí: Cárcere privado.
O que quero agora é pagar o que devo. E devo muito. Assim às vezes, essa dor no coração que me acompanha me deixe um dia. Essa é minha sina.
Depois de cárcere privado, ponto final.
O escrivão destaca a folha de papel junta à outra onde tem o título: O afilhado do diabo grampeia e entrega ao delegado. Caso encerrado.










quarta-feira, 26 de junho de 2013

Veleidade







Como arquitetar versos em universo tão perverso? 

Confesso que
                                          No afazer do poema,
 Ao sentar-me ante a janela,
                                           Desejo sempre construir o belo,
O romanesco,
O singelo.
                                             Mas o que vejo no externo?
Flagelos... Flagelos... Flagelos...
Por isso o verso nasce assim, torto,
                                 Quase morto.
                                Sem cadência,
     Como uma forte rajada de vento,
     Tiro de metralhadora estridente,
                    Abatendo inocentes,
     Palavras que surgem erráticas,
     De um antigo dicionário.
                                   

A iniciação







Levado por um primo, que dizia sempre, - você verá que fim de semanas vai passar, - entrei finalmente numa rinha de galo. Achei que não ia gostar nada do que ia ver. Achava que ia encontrar lá só “gente do povo”, como dizem, mas o que encontrei fora uma assistência feroz e mista, pois tinha toda a camada social, desde advogados, dentistas, médicos, empresários e políticos.
Sentei onde ele determinou. Desconfiei que ele quisesse secretamente me aproximar da realidade da vida. Justo na primeira fila. Tinha uma cancha redonda no centro, e em volta uma pequena arquibancada que já estava repleta. Um longo corredor cheio de gaiolas e nelas galos coloridos de todas as cores e tamanhos. Cantavam sem parar. Achei que se falavam mal entre si. Depois de os pesarem um a um, e arranjarem os pares, começariam as brigas. Os técnicos ou criadores, os preparavam com cuidado: Colocavam bicos e esporas de prata cobertas com fitas adesivas e esparadrapos adequados para matar o adversário.
Enquanto acontecia tudo isso do outro lado da cancha sentou-se uma linda mulher. Trajava-se de uma minissaia e quando cruzou as pernas quase perco o fôlego. Usava óculos escuros e as unhas pintadas de vermelho. O que espera uma mulher daquela categoria nesse antro de violência?
Logo os técnicos entraram na cancha e jogaram os galos um em cima do outro. Estranharam-se e começaram a trocar pernadas. Ouvia-se o batido das asas, e uma pancada seca de osso quebrado. A poeira levantava. O galo negro de crista marcada de lutas anteriores recebeu uma esporada no pescoço. Cambaleou para trás. A mulher levantou-se em gritos. Mata! Mata! Confesso que eu não estava acostumado com aquilo. Tanta violência. Depois ela sentou-se mais calma. Nisso o galo balançou a cabeça como estivesse grogue, e saltou com os dois pés no peito do adversário. Sangue voou para todos os lados. É um cheiro doce o cheiro de sangue. A cor é de um vermelho vivo. Começaram as apostas. Dinheiro vivo. Não sei como eles entendiam- se naquela gritaria infernal. Às vezes era só preciso uma mímica.  Aceitavam-se as apostas. O outro gritava: Aceito. Três por um no galo vermelho. Aceito.
Ela agora sorria com uns dentes branquinhos. Seria para mim? Era muita sorte. O galo vermelho velho de guerra esperava o outro saltar e aí saltava quando o outro caía acertando-lhe perto do ouvido. O galo preto segurou-lhe pela crista e bateu com as esporas no pescoço do outro. 
Ela descruzou as pernas. No fim das coxas roliças uma forma saliente de um triângulo. Suspirei.
O galo preto estava irreconhecível. As penas molhadas de suor, a crista caída de lado, o bico aberto buscava o ar. Nisso alguém atrás de mim que parecia ter experiência falou num sussurro:
- Esse galo preto é ruim. O outro é que é bom.
E eu que nunca tinha apostado tirei uma nota de cem e gritei:
-Cem no galo vermelho. Três aceitaram. Seria uma barbada pensei. O galo preto está morto de cansado e ainda com a dica, fica fácil.
Ela sorria para mim. Tirou os óculos e deixou-me ver seus olhos.  Azuis. Da cor do céu lá de fora visto entre os coqueiros.
Nisso ouve uma tremenda algazarra. Quando eu vi num relance, o galo preto, pular uma única vez acertando o vermelho bem dentro dos olhos. O vermelho tentou ficar em pé, mas saiu como tivesse perdido o equilíbrio arquejando. Como um soldado mortalmente ferido pedindo socorro. O público gritava.  O vermelho tentou levantar-se em vão. Lembro de uma vez ter sentido a mesma coisa que estava sentindo agora. Foi quando eu tinha meus doze anos. Todo mundo duvidou se eu faria. Levantei decidido: peguei a faca de cozinha, puxei o pescoço da galinha para debaixo dos pés e cortei-a. Ela demorou morrer. Quando eu dei por mim tinha nas mãos a cabeça dela, os olhos fechados, a língua virada e tão pálida que desmaiei. Depois quando voltei a si me contaram que não teria sido nada, foi só porque eu tinha sentido dó. E para matar não se pode ter dó.
Mas o galo deu a última estremunhada e morreu a meus pés. O galo preto ainda foi para cima, viu que só restava do outro a carcaça morta no centro da arena.  Então subiu sobre ele e fez a cópula. Não bastava só a vitória e a morte. Queria mais. A humilhação total. O aniquilamento. Lembrei dos judeus nos campos de concentração.
Irritado paguei os caras.  Aproveitando o burburinho cheguei perto do homem que me deu a dica falsa e perguntei:
-Você disse que o bom era o preto hem! Enganou-me!
Ele me chamou num canto e confessou:
-Não podemos nem falar, pois sou treinador, mas não enganei. Realmente o vermelho é bom, não mata. O preto sim é ruim.
Entendi tarde demais.
Desde esse dia freqüento diariamente a rinha. Ganho e perco. Talvez porque ainda não consigo distinguir o bem do mal. Vez ou outra também eu saio com aquela mulher. Deve ser para me vingar do seu homem ou de mim.  Não sei.  
Na cama ela me pede para bater-lhe. Dou umas palmadas fortes. Puxo seus cabelos. Ela adora a violência. Goza várias vezes. Nós somos ferozes. Se eu não tivesse visto todo aquele sangue não teria coragem. E essa coisa de sangue, violência e morte é pura adrenalina. Foi minha iniciação.  Não tinha idéia do que estava perdendo.



sexta-feira, 21 de junho de 2013

Nossos medos








Tenho muitos amigos com diversas opiniões sobre o medo.  Esse tirano que nos acompanha até o fim. Aliás, começa bem cedo quando ainda estamos na barriga de nossas mães protegidos pela placenta. Talvez por isso quando a futura mamãe se acha sonhando com nossa vinda, com a vida do filho, ou esquecida em outros pensamentos nós a chutamos para avisá-la: Não se esqueça de mim. O medo do abandono.
Depois que nascemos não sei se por estarmos na faze oral, só sei que quando nos sentimos afastados do seio materno logo choramos. Temos medo de ficarmos sem o aconchego e principalmente sem o nosso alimento. Medo da fome.
Depois na faze das primeiras letras, temos medo do escuro, medo do bicho papão, medo disso, medo daquilo e daquilo outro.
Na juventude temos medo do primeiro beijo, da primeira namorada, da primeira vez, medo da solidão, medo do nada, do tudo, do grande do pequeno, da altura, do elevador, de assalto, do sombrio, do diabo a quatro.
Em todas essas fazes da vida tivemos medo da morte. Só que na velhice ela é mais plausível, mais próxima e certa.
A respeito do medo lembro-me de uma poesia de Drummond que fala tão bem assim desse sentimento que nos caça no dia a dia é nossa sombra:
“cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”
E todos sem exceção temos medo: Os amigos, os inimigos, os pais, os filhos, os parentes, aderentes, fulano e sicrano.
Tenho um amigo, que morria de medo de se tornar corno. Por isso como ele dizia, só pegava mulher feia. Segundo ele, as mulheres belas todos desejam, são muito requisitadas, caçadas até a exaustão. Já as feias ficam mais resguardadas.  E ele acrescentava ainda: E as feias são muito, mais muito melhores. Completava: As feias quando faz amor, parece que ciente da plástica, na hora do vamos ver, se interessa muito mais, vai com gás e nos oferece noites memoráveis. Já a bonita acha que só beleza basta. Finalizando: São muito mais quentes dizia. Hoje já não sei dele.
 Outro ouvindo essa história me disse que desse medo passava longe. Se corno fosse, corno era e ponto final. Mas sem essa de não cobiçar mulher bonita. E arrematava: É preferível dividir mel com outros a comer merda todo dia. É ou não é? Perguntava.
Fiquem sabendo que não compartilho nenhuma dessas opiniões.
Mas o medo dele mesmo é comum. Não era medo da morte, do fisco, da mulher nada disso. Ele é advogado, não vou dá nomes aos bois, vou contar só o fato. Ele me disse que tinha uma secretária que era um estouro. Seios durinhos, pernas longas e torneadas, boca carnuda e aqueles pelinhos louros na nuca que arrepia ao longo do pescoço. Certo dia depois de muitas cantadas e presentes incontáveis ela aceitou ficar com ele. O escritório estava vazio, só o barulho do ar condicionado e uma música ao fundo. Tirou a roupa tudo nos conformes. Ela vestia calcinha azul turquesa, usava uma colônia que deixava a pele fresca e brilhosa, e ele estava como o Vesúvio em erupção. A visão dela ali em pelo em sua frente foi algo assim do outro mundo. Ela tinha até aparado, assim como o cabelo de Neymar, ele disse. Estava tudo no bem bom, ele mão naquilo, ela boca nisso e estava uma loucura. Quando chega naquele momento para colocar a camisinha, plim!   Nada aconteceu. Seu maior medo era broxar.  Logo àquela hora impossível. E teve que ouvir essas frases costumeiras: Isso é assim mesmo. Não dá importância!  É o cansaço, o stress. Dizia Milene sua secretária. Ela foi tão compreensiva.  E ele não se deu por vencido. Separou-se da mulher e casou-se com ela. Mas esse não era seu maior medo.
Depois ele me contou:
Eu morro, mas morro mesmo é de viajar de avião. Sinto pavor.  Você sabe. Mas duma certa feita fui obrigado a voar. Havia pressa em tal compromisso.  Assim fiz um mês de tratamento com um psicólogo. Ele dizia que eu tinha de mudar minha forma de pensar, ser mais positivo, mudar as imagens de minha mente, essas coisas que um mês inteiro treinei a fio. Ainda mais que minha mulher é aeromoça agora, pensei, e voa quase todo dia, não era motivo de preocupação, as estatísticas dizem que é o meio de transporte mais seguro do mundo. Mas sabe como é o medroso.  Pensa que justamente o dele é que vai cair. E tentem mudar sua opinião.
Só sei que um belo dia afinal estava sentado na poltrona do avião. Fui convencido pela minha mulher. Voaríamos juntos. Ela é agora comissária de bordo. Beleza. Pelo menos se eu sentir algo ela está por perto. Pois bem. Só não queria conversa com ninguém. Penso que no silêncio, as forças ocultas ajudam mais. O avião começou a taxiar. Eu observava pela janelinha o tempo. Por sorte céu de brigadeiro.  Somente alguns urubus. E se um bicho destes entrar pela turbina. Ai , ai. Milene minha esposa, chegou lá na frente e começou falar sobre o que se tem que fazer em caso de acidente. Ela já havia treinado comigo isso. Meu coração começou a palpitar. Modifiquei meu pensamento. Vislumbrei o avião pequenino e longe e o vendo de cima. Isso me acalmou um pouco. Peguei uma revista. Não consegui ler a primeira frase. A aeronave se postou na cabeceira. Ia decolar da pista 09 esquerda de Guarulhos, rumo ao Galeão. Vento calmo. Sei isso porque cheguei até a aprender a pilotar jatos no computador em vôos on line. E sei que aqui o piloto está recebendo autorização para a decolagem seguindo uma carta de saída, depois vai seguir uma aerovia, depois usará uma carta de chegada, de aproximação e autorização para pouso, tudo isso monitorado por radares. Tudo com total segurança. Mas eu continuava inseguro.
A aeronave acelerou. Os motores tremeram. Aqui meu coração queria sair pela boca. Um compartimento se abriu. Procurei ajuda olhando a poltrona vizinha. Duas freiras seguravam os terços e rezavam. Se as santas com a proteção de Deus mesmo assim tinha medo, imagine eu que era ateu! Porque depois desse vôo prometi tornar-me católico fervoroso e ir a Aparecida uma vez por ano. Olhei para o outro lado. Um jovem casal se beijava na boca como num gesto de despedida. Agora estava desesperado. Lá na poltrona da frente avistei um menino dos seus cinco anos mais ou menos. Ele carregava um skate na mão e olhava sorrindo pela janelinha. Deixa de ser cagão falei para mim. Veja aquela criança. Se espelhe nela. Mas e se com o skate o diabo do menino quebrar o vidro? Voaríamos todos para fora puxados pelo buraco. Tentei avisá-lo. A voz não saia. E o menino repetia o que eu não queria ver:
-Agora estamos pertinho das  nuvennnnns! Bruuuum! Imitava o barulho com o skate. Bendita são as crianças que não tem preocupações.
Eu sozinho e meu medo que agora se tornara terror.  Chegamos ao nível de cruzeiro. Dizem que é o momento mais tranqüilo da viagem. Muitos desabotoaram os cintos. O meu continuou afivelado. Mulheres bonitas começaram a servir comidas. Inclusive a minha com seu par de pernas longas.  Eu não queria mostrar todo meu medo. Ela me deu por baixo dos panos três dozes de uísque. Piscou para me acalmar. Sorri amarelo. Ela seguiu corredor a fora. O senhor deseja o que? Mais o que senhora? Muito educada ela.
Depois passaram recolhendo.  Milene passou de volta.  Brinquei: Belas pernas, morena. Ela riu. Devia ser o efeito do uísque. Era legal brincarmos assim sem ninguém saber se éramos casados. Fazíamos isso muitas vezes. Um dia marcamos numa praça de uma cidade um encontro como se não nos conhecêssemos. Era um jogo. Gostávamos de fazer isso. Depois eu chegava e tentava conquistá-la. Tudo acabava nós num motel fingindo sermos desconhecidos.
Dez minutos depois no avião muitos roncavam a custo de tranqüilizantes. Eu continuava aceso de ouvido nos ruído. Tinha aprendido todos. Enumerava cada um: Esse foi o trem de pouso, esse outro os flaps, agora o rádio. Sabia que a aeronave era guiada por antenas, GPS e todo um aparato. Aí quando a aeronave estava toda escura, o piloto tinha desejado bom vôo, falado que lá fora fazia cinco graus negativos à maioria dormindo ouvi um barulho que não estava no meu manual.
O piloto nos avisou que ia passar por uma zona de turbulência, mas que não éramos para nos preocupar. Ainda bem que foi rápido. Surgiram alguns barulhos estranho.
Fui fazendo a chamada. Trem de pouso não era. Flaps também não, pois estão recolhidos. Os compartimentos de passagem todos trancados. As freiras silenciosas. O casal dormindo. Um velho roncando de boca aberta. O menino comendo bata fritas. Empurrado pelo uísque levantei-me em silêncio.  Consegui andar até o banheiro. A porta estava encostada. O barulho era tipo nhec –nhec- nhec- nhec. O que seria? E se for um terrorista preparando uma bomba. Melhor avisar a comissária. Ou algum vazamento na tubulação. Algum rato. Não. Ratos gostam de navios. O que seria? E aquele óleo pingando numa das asas? Empurrei a porta. Fiquei estupefato. Estava ali uma pessoa digna de todo o meu respeito superando os maiores medos pela ordem que são:
 - medo de voar,
-de broxar e
-de morrer.
 O piloto transava com minha mulher no banheiro. E ainda falou quando me viu:
-Fique tranqüilo. Estamos voando com o piloto automático ligado.
Eu ainda pensei gritar com os dois: “Quando chegarmos à terra firme você vai ver. Mas como falar isso com o piloto? O cara que tem a missão de nos levar lá para baixo com segurança.
Voltei para minha poltrona e afivelei o cinto.


Palavras são palavras






                                     Não procure me entender nos meus textos.
Enfatizo bem.
Não me ponha palavras nos lábios,
O texto existe por si, só,
Sem escola, não descrimine
Ou classifique,
Pois é inteligível e
Independente de mim.
Quando digo algo,
É o que eu penso
Nesse momento.
Agora. Amanhã não sei.
Não discrimine.
O que dizem, dizem,
Se mal ou bem, Bastam!
São palavras e parágrafos,
Silêncios e ritmos,
Somente.
As palavras não mentem.
Somente falam:
                                                 Em sons vocálicos e consonantais

Passado e presente






Foi depois que eu achei por acaso aquela velha fotografia amarelada, que ela resolveu falar. Encontrei-a no fundo da gaveta. Quatro mulheres fantasiadas.  Na flor da idade. Riam para a vida.
 Todas as segundas eu tomava conta de minha avó. Assim que eu chegava, servi-a-lhe leite morno numa caneca, tirava do copo a dentadura dela que ficava perto do rádio e colocava em sua boca. Eu ia correndo lavar a mão com certo nojo e ela sorria um sorriso postiço, mas nem por isso menos verdadeiro. Enquanto isso eu corria ao quintal catava as seriguelas, enchia a caneca e ficava chupando aquelas delicias sentado na espreguiçadeira perto dela à janela.  Ali se passava seu mundo.
E o povo todo passava pela janela.  Bom dia Dona Ernestina, boa tarde dona Ernestina e boa noite Dona Ernestina. Eu ouvia durante todo o dia as badaladas do sino da igreja. Era ela muito conhecida das gentes. E o povo falava que as histórias dela tinham muito de verdade, não era coisa de caduca não, como dizia meu pai. Cada um que tire suas conclusões. Eu do meu lado queria só que terminasse meu turno. Um dia era meu o outro do meu mano. Esperava só os galos cantarem na hora do Ângelus. Era quando o sol se escondia atrás do jambeiro e os morcegos começavam a sair.
Aí a levava para a rede, tirava a dentadura e colocava no mesmo copo com água e ela dormia o sono dos Justus. No outro dia meu irmão vinha me render. Vinha contando alegre: “Sabe o cachorro de seu Antônio. Ele quase me pegou. Acertei-o bem na fuça pra ele aprender”. Ele dizia isso rindo. Só fazia careta quando encontrava o penico da velha lotado de bosta. E era quase todo dia. Bem feito prá ele. E nenhuma seriguela no pé.
Mas até completar esse ciclo muita coisa se passava. Ela era a boca do povo. Nesse dia eu procurando novidades nas gavetas, ferramentas de meu avô, chave de fenda, moedas antigas, biscuit quebrados, molho de chave, encontrei essa foto com um grupo de mulheres que pareciam felizes. Quem são vó?Perguntei.  Ela tomou de minha mão mirou os óculos apertando a vista e ficou um momento em silêncio. Depois não parou de falar.
Ai! Que saudade! Essa da esquerda é Marieta. Morreu faz dois anos. Aliás, todas morreram. Só sobrei eu para contar a história. Suspirou. Já essa da direita é Vanderlea. Isso mesmo. Vanderleia. Casou-se com o prefeito Valdão. Essa outra me deixa ver. Ah! É a Noquinha. Que Bom! Que bom! Essa do meio sou eu. Grande carnaval! Onde você achou? Apontei a gaveta numa cômoda velha. Aliás, tudo é velho por aqui. Tem um rádio, uma máquina de escrever, máquina de costura, arca etc.
Você não sabe, pois saiu dos cueiros agora, ela dizia. Aqui já foi muito bom. Hoje o carnaval não existe mais. Tudo culpa desses jovens tresloucados. “Bom dia Ernestina! Bom dia! Olha! A filha de seu Nico. Vem lá debaixo. Boa lavadeira. Boa menina”.
Arrependeu-se do que disse. Não! Dos jovens também não. É o tempo mesmo né? Surgem novos divertimentos. Só pode ser isso. Mas como ia dizendo, já foi o melhor da região e quiçá do brasil. Não tinha prá ninguém.  Ah! Não tinha. O povo de Piancó morria de inveja. Piancó é uma cidade vizinha aqui perto. Tem a maior rivalidade com nossa cidade. O clube Primavera, construído no tempo do prefeito Valdão era grã fino. Êita prefeito macho visse. Foi o único que trouxe aqui Juscelino. Isso mesmo. Como se fala? Juscelino cu bi xeque. Ou coisa parecida. O mesmo que construiu Brasília. Eu não sei isso de história não senhor. Foi vivido mesmo. Vendo com esses olhos que a terra há de comer. Diz até que ele tem um filho por aqui. O povo aumenta, mas não inventa. Esta história eu conto depois. Se não perco o fio da meada.  E não se avexe não que eu vou contar tudo. História e a vida, bichinho são como um novelo de lã. Tem que ser desenrolado sem pressa para ficar mais bonita e gostosa assim de se viver. Pois então. Vinha uma ruma de gente de tudo que é canto para o baile de carnaval. Quatro noites memoráveis. O ônibus vinha assim ó, tinindo de gente. Era gente daqui e de fora que iam estudar na capital. Eu acho que não era só para estudar não. Era principalmente para fazer as safadezas longe das vistas dos pais, isso sim. Para dar o xibiu ó. Pois quando não se tem olhos para se ver nem ouvidos para se escutar meu filho, o homem é capaz de coisas tão bestas que não entendemos. Por isso tais mocinhas voltavam todas com as ancas largas, mascando descaradamente chicletes, pintando a cara. Igual as raparigas daqui.  Eu que fui uma idiota. Porqueira. Dei para um homem só a vida inteira. E que Deus o tenha em bom refrigério e quando ele se foi eu já não tinha mais serventia. Só pelanca ó.
O carnaval de hoje é essa bagunça, essa merda. Dá até gastura.  Naquele tempo tinha durante o dia as carreatas e quando chegava á tardinha todo mundo ia para a matinê. Era quando as crianças iam com os pais.
E os preparativos começavam um mês antes, com a procura dos tecidos a feitura das fantasias e a lista de quem ia participar do bloco. A escolha do nome era outro problema a se resolver. Lembro do carnaval de 19. O inverno tinha sido bom e todos estavam felizes. Vanderlea escolheu. “As endiabradas”. Eu por meu lado achei um pouco de mau gosto, meio forte talvez, mas ela explicou que era para ser agudo mesmo e chamar a atenção dos rapazes. E disse para eu deixar de ser cafona.E naquele ano a disputa foi arretada.  Nosso vestido era de romanas, solto assim dos lados, deixando ver um lance das pernas. Fez o maior sucesso. Nosso bloco tirou o primeiro lugar. Era eu, Marieta mais conhecida por boquete ou mão de seda, (os nomes diz tudo), Amélia e Vanderlea depois eu conto da parte delas.
Á noite só entrava maiores de dezoito anos. Mas com jeitinho aquelas meninas mais afoitas que já tinham feito dezessete anos entravam com a ajuda dos pais. E aquele tempo a gente cheirava lança perfume. Ficávamos com uma loucura recatada. Bem mais tarde aquele presidente da vassourinha proibiu. O Jânio. Só porque esguicharam no olho dele. Deviam ter esguichado porra no puto. Bebia todas, num sabe. Proibiu também a briga de galo. Isso aí ate que eu achei justo, os bichinhos brigavam até morrer, coitados. Agora a lança perfume foi uma idiotice. Depois saiu. Deixou a gente na mão. Mas não quero falar de política não. São todos uns podres. Diziam que iam resolver os problemas das secas aqui e nunca resolveram.
Mas como ia dizendo o clube era muito bom. E para ser sócio, menino, do Clube Primavera, não te conto. Uma dificuldade. Tinha a tal bola preta. Era assim. Vou explica. Calma!  Exemplo: Alguém colocava o nome na lista, desejando o ingresso como sócio, aí os diretores se reuniam, com muita cerveja e tira gosto. O único que tomava cachaça era o juiz filho do Doutor Adalberto. O Doutor que viu todos os xibius da região. Pois bem. Ficou rico o danado.
Diziam que eles investigavam a vida do sujeito de trás pra frente. Tudo mentira. Depois vi que essa investigação era bem fajuta. Bem do jeitinho brasileiro. A metade da cidade era sócia. A outra metade era negra ou índio e aí não podiam entrar. Mesmo sendo nosso país miscigenado, porra de nome difícil, mas aqui pra nós, não espalha menino, mas tinha muita rapariga ali dentro. Ah! Tinha-se. Vixe! A mulher do prefeito mesmo, quando cheirava além da conta, subia na mesa e ficava rebolando igual às meninas das casas da beira do rio. Igualzinha. E a lança perfume deixava a mulherada louca visse. E aqui pra nós, mulher feliz e rapariga é um perigo. Ela era comidinha de todos os cantores que vinham por aqui. Agora me lembrei de Vander Lúcio. O melhor animador de carnaval dessas paragens. As machinhas em sua voz viravam poesia. Ele tinha a voz grossa e bem afinada. Ele cantava assim: “E abrem alas que eu quero passar” e Vanderlea os olhos nele rebolando ali em cima da mesa. O povo falava que foi a maior paixão da mulher do prefeito. Vanderlea não podia ouvir sua voz que se molhava toda. Isso ela me disse certa vez.
E menino, vou dizer uma coisa. Tantos cabaços voaram ali. Em torno do clube tinha uma matinha de marmeleiros coberta por aquela rama de melão de são Caetano, era só estirar um papelão e os rapazes mandavam a vara. Nove meses depois nasciam as crias. Amélia coitada foi assim. Enrabichou-se  com um janota da capital e nove meses depois já viu, veio o bruguelo. Mudou-se e muito tempo foi dona de pensão. Diziam as más línguas que não era pensão nada e sim casa de mulheres. Mas vai saber a verdade. Morreu bem velhinha um dia desses, e teve até discurso de certo escritor que lhe dedicou num jornal do comércio, alguns versos. Versos estes, que falavam de posteridade e imortalidade, essas coisas efêmeras, mas tão ao gosto do povo. Pois bem, e ali naquele clube, houve carnavais memoráveis menino.
Essa aqui da esquerda, uma amiga, que Deus a tenha, essa morreu virgem. Ela sabia enganar todo mundo. Marieta era o nome dela. Não dava a frente. Ela dava o rabo para não engravidar e não ficar mal falada. Era inteligente a danada. Também dava só para os rapazes de fora. E assim não caia na boca do povo daqui que tem a língua maior que a cara. Depois namorou dez anos com o sargento Idelbrando e permaneceu virgem. Ela contava para mim que naquela hora gostosa, quando os pais iam dormir de cansados, e ele vinha pra cima como touro louco ela dizia assim:
“Ai meu bem eu estou naqueles dias, num sabe, só se for assim por trás”, e se virava. E o sofá velho da sala gemia. E parece que para o sargento essa posição era sua predileta, pois nunca reclamou. Comeu a traseira dela dez anos á fio. No entanto soube-se por amigos do sargento que ele tentara enrabar uma nova mulher que havia chegado à casa da beira do rio e que ela disse para ele séria, que essa posição era mais caro e que muita mulher da vida odiava fazer. E que ela mesma nunca tinha feito. Como são as coisas. E uma mulher do estipe de Marieta, mulher da sociedade, sócia do clube Primavera, rainha de carnaval por dois anos, irmã do prefeito, minha melhor amiga, dava de bom grado.
Depois o sargento foi transferido prá capital, e a tristeza a abateu. Foi ficando doente, pálida e numa quarta feira de cinzas faleceu. O povo fala que o Juiz usando as suas prerrogativas, o caçou por todo o Brasil e foi encontrá-lo na década de sessenta numa cidade de São Paulo, não se falou o nome na época. Idelbrando o sargento, tinha se tornado um torturador. Sabia como ninguém tirar segredo dos outros. Colocava tachinha debaixo das unhas dos prisioneiros e esquentava até virar brasa. Outras vezes pegava uma varinha de marmeleiro, - quem conhece marmeleiro sabe como a vara é dura, - e batia com ela nos culhões do sujeito. Conta ou não conta safado ele gritava. O diabo que caía em suas mãos contava até o que não sabia.
Pois o juiz voltou de lá com o rabo entre as pernas, com medo de ser pego pelo sargento, que não gostava de comunista de jeito nenhum e se soubesse do passado de Doutor Adalberto, que em trinta, havia caminhado do lado de Prestes por todo o norte e nordeste, aí sim, de caçador poderia se transformar em caça e nesse tempo morria tanta gente no Brasil, como morreu anjinhos nesses carnavais.
Meu primeiro filho, tio seu, morreu com seis meses, coitado. Talvez devido ao modo que foi feito. Naquele tempo que já vai longe, sou do tempo da primeira grande guerra, hoje tenho cento e cacetada, meu veio Florêncio, seu avô, me roubou da casa de meu pai com meu consentimento. Naquele tempo era assim. Lembro como se fosse hoje. A noite estava enluarada tudo um silêncio só, quebrado algumas vezes pelos pios das corujas e caburé que fazia suas casas no barranco perto da porteira da entrada. Eu já me encontrava pronta, a mala feita, poucas peças. Quando ele bateu na janela, aquela virada para o oitão, que tinha uma dama da noite do lado esquerdo, eu saltei em cima da garupa do Burro, e ele saiu pisando duro por cima das flores caídas que quarava o chão de branco. E aquele cheirinho gostoso.
Chegamos de madrugada depois de cavalgar duas léguas e meia no sítio de Dona Filomena irmã dele que nos daria guarida da fuga. O quarto já estava pronto. Minha bunda doía da cavalgada. Ele veio para cima de mim como um touro e eu ainda amedrontada, com receio de meus irmãos que eram cinco, virem no meu rastro. E então com qualquer barulho eu assustava e quando ele terminou, nem vi, só ouvi ele me perguntar, se foi bom. Eu claro falei que foi que gostoso, mas confesso agora, que não foi lá essas coisas, mas estava perdidamente apaixonado por ele.
No domingo, depois que as exaltações se abrandaram, os parentes chegaram, casamos na paróquia Santa Rita de cássia, e a festa foram dois dias corridos. Essas três amigas estavam lá. Esse primeiro filho não vingou deve ser por isso. Tanta dor, preocupação e tormenta.
Outros vieram. Foram treze. Um atrás do outro. Parecia uma escadinha. Graças a Deus esses outros vingaram. A maioria tem diploma. Moram todos longe. Só seu pai que ficou por aqui e cuida de mim.
O padre que eu casei era o que melhor sabia fazer casamento. Não tinha esta história de latim não. E ele fazia a pergunta que eu sempre adorei:
“Se alguém souber alguma coisa que evite esse casamento que fale agora ou se cale para sempre”. Padre Egídio. Eh! Padre porreta!  Dizem que ele era tão bom que deixou vários filhos. Essa da direita sorrindo, virou Dona Noquinha  uma beata que teve um filho de pai desconhecido. Muito tempo depois se descobriu que Pedrinho era filho do padre Egídio. Era a cara de um focinho do outro.  Mandaram estudar lá em Campina Grande, num convento. Saiu Padre.
 Hoje mesmo vi Noquinha, passar aqui em frente, passos leves, sempre orando, cuida dos santos, varre a igreja acende as velas. O mesmo trabalho de anos. Ela que fabrica as hóstias. Até isso o padre ensinou. Lembrei duma coisa agora. Quando eu era criança, quando comunguei pela primeira vez que o padre colocou a hóstia em minha boca fiquei olhando de lado para vê o que os outros faziam: Se deixava a hóstia se derreter ou podia mastigar o corpo de cristo. Eu tinha receio de machucar Cristo. Depois vi o padre quebrar a hóstia e mastigar. Notei também que a hóstia dele era maior, e na época pensava que devia ser por ele ter mais pecado, essas coisas de criança.
O Padre agora é outro. Um jovem.  Nem vou à missa mais. As pernas me doem a vista cansada, mas nem é por isso. Não admito é ir à igreja onde o padre celebra a missa de calça jeans e tênis e ainda fuma charuto. Não acredito num padre assim. É a modernidade. Padre Egídio não, quando andava na rua, não tirava a batina. E as crianças avançavam nele para beijar-lhe a mão, pedir a bênção. Outros tempos.
Olha que absurdo esse carro que passou aqui. O som tão alto que tremeu os vidros da minha cristaleira. Meu pingüim balançou-se todo em cima da geladeira. Esses meninos agora são todos malucos. As músicas, as letras, uma perdição. No meu tempo era a difusora, que saudade. As músicas de Vicente celestino, Cartola, Roberto Carlos e muitos outros. Agora esse tal de fanque tomou conta de tudo.  Na igreja deste padreco aí, também se toca o fanque, todo mundo agora dança. Nos bailes, na igreja. Por isso que o Santo Papa lá em Roma não agüentou e saiu.
Menino e essa história de casamento gay? Como pode ser chamado de família, duas pessoas do mesmo sexo? O mundo tá perto de se acabar. É só olhar o antigo testamento. Está tudo ali para ser visto.
 Cansei. Me leve para a rede. Esse mundo ta virado e amanhã é outro dia. E com certeza, cheio de novidades.
Com um minuto estava roncando com a foto entre os braços.

sábado, 15 de junho de 2013

Quem somos?






O menino ficava vidrado na tevê. Isso o pai logo notou. Coçava a cabeça. Improvável era, porque logo no horário eleitoral aonde a maioria das pessoas desligam o aparelho, ou sai da sala, aproveita e vai ao banheiro, vai olhar a vizinha passando com o shortinho apertado, essas coisas banais da vida. Tem gente até que faz sexo nesse horário, pois afinal se tudo sair errado há a desculpa. Pois bem.

Contudo o pai dizia: Esse menino vai ser grande!

Grande: Que é bom, generoso, magnânimo (ex.: um grande coração. Que atingiu a maioridade (ex.: as pessoas grandes podem ser muito complicadas). = ADULTO. Pejorativo Que é ou existe em elevado grau (ex.: grande mentiroso). Vão escutando.

E a odisséia do menino começava logo de manhã. Quando terminava o desenho do pica pau (O curioso é que o pai nem desconfiava que o menino sempre torcesse contra o pica pau, vai entender!), e quando começava os discursos dos pretendentes ao cargo público o menino ficava em silêncio prestando enorme atenção. Muitas vezes ria ou somente esfregava as mãos.

Essas ênfases todas faziam do pai um sujeito todo orgulhoso. E quando o danado do menino notou que o pai gostava e contava na repartição, aí sim passou a fazer mais trejeitos. Uma hora entortava a boca, outra, fechava o cenho, ficava sério, sorria com ele mesmo o danado.

Chegou a se deparar um dia com o menino à frente do espelho. Ele se olhava de lado mirando-se. Dessa feita o pai saiu com essa: Vai ser um grande homem, desses que lemos suas biografias, orgulhosos em tê-los como conterrâneos. Seria um deputado ou senador ou até presidente da república? Aí mulher, que maravilha! O pai a partir daí embalou esse sonho.

E o menino seguia ali todo dia em frente à televisão. Até acabar o horário eleitoral. Um dia ao passar rapidamente pela frente (Esgueirava-se para que o filho não perdesse nada), quando o pica pau deu sua temível gargalhada, escutou algo assim:

- Essa porra desse pássaro que leva sempre a melhor! Puta que pariu! Se fosse eu! Se fosse eu! Depenava esse puto.

O pai achou isso interessantíssimo e falava aos vizinhos.

Com o tempo o menino já falava frases inteiras sem piscar na frente do espelho. Repetia em voz baixa alguma frase mais elaborada. Na rua mandavam-lhe repetir. Depois dava um riso satisfeito.

Os pais o enchiam de mimos e colocava em sua frente, pipocas, batatas fritas refrigerantes etc. As batatinhas ele mastigava com prazer sem tirar os olhos da tela. Já pedia em voz alta a sua mãe como se estivesse num bar:

- Mais batatas mamãe! E que não faltasse dissera o pai.

–Esse menino tem futuro.

Passado, presente e futuro. Pretérito mais que perfeito, futuro do subjuntivo tudo tempos verbais.

E o danado do menino não se ligava no que o candidato dizia e sim nos trejeitos que ele fazia. E imitava-os deliberadamente. E sabemos que é imitando que aprendemos. Até nas artes funciona assim: Primeiro você copia, copia e copia. Quando adquire o cacoete, pensa que já sabe ganha confiança e escreve algo que pensa seu. -Mentira! (Impossível largar as influências! Impossível, impossível! Todo texto descende de outro, é uma praga, erva daninha ou algo maior).

O menino mesmo parecia um camaleão. Ganhava todo o mimetismo dos outros. Parecia uma cópia de tão parecido. E foi se adaptando a todas as falas, aos jeitos. Tudo. Falava todo o discurso como se fosse dele. O ritmo, a fluência, o timbre, o tom...

E olha que essa época ele tinha somente sete anos.

Uma noite o pai ao chegar da repartição mais tarde, pega o menino conversando com uma menina. Nada de anormal. No tempo dele, lembrou-se, já havia brincado de pique esconde, médico e tantas coisas mais. O que chamou a atenção foram às frases, os pedidos:

-Deixa Patrícia, eu passar a língua no bico de teus mamilos!

O pai assustou-se. Mamilos: botão em flor dos seios das meninas.

Continuou ouvindo:

-Não Pedrinho, já te disse mil vezes não!

Deixa uma vez só. Prometo que vai ser uma vez, acredite! Quando falou acredite, o pai visualizou nitidamente certo candidato. O filho do próprio. Como aqueles escritores que só tem no texto dele apenas o título ou nem isso.

Ele continuou:

-Sabia que essas coisas gostosas que fazemos na infância, ficam impressas em nossos pensamentos por toda a eternidade, sabia?

-Não, não sabia!

-Pois é. E quando velhinhos formos, essas imagens lembraremos com saudade!

Nesse momento passou pela janela uma estrela cadente. O resto do céu todo escuro, distante. O pai pensou: Outros tempos , outros tempos!

O menino continuou:

E se não fizermos, coçou o queixo, bau –bau, esse tempo presente nunca mais volta. Nunca mais. A menina viu a estrela que sumiu na escuridão.

A menina pensou. Coraçãozinho apressado. Faz, não faz. Deixa não deixa. Terrível dúvida. Queria tanto ter essas recordações. Queria ser importante na vida daquele menino. Talvez esse momento se tornasse até um poema. A menina era romântica. A natureza mesmo dá um empurrão, nos dá comichão, deixa-nos aflitos, cheios de vontades. Por fim resolve.

-Então vem. Só uma vez jura? Ele cruza os dedos as costas, e faz outra cara conhecida. Que menino!

A menina levanta a blusinha toda florida. Um botão de flor aparece com arrepio.

O pai tosse coçando a garganta no portão. (Esse menino vai longe). Os dois se ajeitam. Os dois seguem o pai atravessar todo o jardim. O gato fugiu atrás da roseira. Silêncio. Um grilo faz cri- cri. Uma aranha tecia lentamente sua teia que brilhava á noite.

O menino volta à carga:

-Viu Patrícia, não arrancou nenhum pedaço. E então. Foi bom? A menina olhos baixos:

-Foi. Fiquei toda arrepiadinha olha! A pele cheia de pontinhos.

-Então! Deixa-me dá só mais um.

-Não! Falei que era só um. E quando falo, cumpro mesmo. Pode ficar quietinho agora.

O tempo passou os meninos cresceram. Enquanto o menino engrossava a voz e cresciam-lhes pelos, a menina alargava as ancas e aumentava o número do corpete que agora usava.

Já namoravam. Uma noite após mordiscar-lhes os bicos dos seios, percorrerem-lhes com as mãos todo seu corpo, retirar-lhe a calcinha a muito custo e deparar-se com ela toda mole, como uma mina vertendo água implorou com aquele jeito de político que aprendera:

- Ai Patrícia, me deixa colocar. Ela ainda teve forças para dizer:

-Ai Nem vêm Pedrinho! Nem vem com essa história toda. (a menina estava ficando esperta também). E eu sou virgem! Virgem viu!

-Eu sei meu bem, por isso que eu te amo. Mas afinal todas já fora um dia. Minha mãe, a sua, todas sem exceção.

-Mas tudo tem sua hora, e eu não estou preparada.

-Claro que não está preparada. Por isso temos que praticar. É devagar. Hoje, olha prá mim! Hoje eu coloco somente a cabeçinha.

-Não! Tenho medo!

-De que amor?

-De doer.

-Olha se começar a doer eu paro, juro.

-Jura então!

-Juro! Juro! Juro!

- Você sabia que se nenhum casal fizesse isso não existiriam os poetas? Pensa bem. Não existiria Fernando Pessoa, Drumond...E o que seria o mundo sem poesia? (É lógico que não é assim, a poesia tem tanta importância para o homem como a rocha tem para o mar). Completa:

-E virgindade hoje não tem importância!

-Não tem? Não tem? Aposto que para casar você vai querer uma.

-Claro! Mas será com você! E o mais importante hoje é o amor. E eu te amo!

-Jura!

-Juro! E como vamos saber se vai ser bom se não provarmos?

A menina ficou sonhando com o vestido de noiva. Todo branco. A igreja cheia. Uma coruja piou.

-Então vem! Só a cabecinha viu? O sangue quente. Calor. Respiração ofegante.

Ela senta sobre ele. Com cuidado. Uma onda transpassa-os de prazer. Ela assustada se sente afagada, agasalhada.

-Pronto viu! Não doeu nada!

-Agora tira vai!

-Não amor! Deixa vai! Mexe um pouquinho. Assim vai! Prá cima! Pra baixo! Prá cima Prá baixo! Como a música. Como uma locomotiva. Isso! Isso!

Os olhos virando, voz abafada. As ancas oscilando devagar como um trem saindo da estação. Aumentando o ritmo, cada vez mais rápido, subindo , descendo , curvando, e o apito estridente, como chegando a uma nova cidade, novas emoções, sonhos, sonhos... Gemidos! Gemidos! Depois devagar, parando, exaustos.

Muitos tempos depois se casaram. Ele com Maria de Fátima uma rica empresária. Ela com Fábio um médico famoso. Ambos nem tinham aparecido na história.

Muito tempo depois caíram na rotina. Cansaram-se dos cônjuges e tornaram-se amantes.

Ah! Ia-me esquecendo. Pedro tornara-se funcionário público responsável pela desburocratização, e Patrícia trabalha numa ONG que luta em defesa dos golfinhos. Agora são mais ou menos felizes, deram seu jeitinho. E a vida continua.