quinta-feira, 31 de julho de 2008

Inocência

Há um vazio no meu interior. Meu longo corpo cilíndrico encontra-se todo machucado e contorcido. Jogaram-me na sarjeta e meus inúmeros ossos estão quase todos quebrados, assim não consigo me arrastar para lugar algum.

Todos me evitam.

Como sempre observam o exterior das criaturas. Não notam que tenho sentimentos e que também gosto de carinho. Creio que no estado lastimável em que me encontro mereço ao menos respeito.

Estou faminta. Rastejo sofregamente até uma sombra e refresco-me debaixo de uma árvore. Olham-me com nojo e medo. Sinto-me fraca e dependente.

Um menino pega uma vareta e me cutuca. Sinto dores lancinantes. Creio que não tenho salvação. Acusada desde o princípio de incitar ao pecado sou verdadeiramente uma controladora da natureza. Alimento-me de ratos e camundongos. Creiam: Não sou má. Só cumpri o meu dever. É minha intuição.

Agora alguém me atirou uma pedra. Suplico: ”Deus! Não me abandone!” Sinto-me quase como seu filho, apedrejado nas vias publica e crucificado. Que audácia! Pensaste. Comparar-me ao filho doHomem.

Junto às últimas forças e tento fugir. Sinto-me triste e oprimida.Queria que o chão cedesse sob mim e jogasse-me em algum buraco. Como sou odiada! Como é deprimente sentir-se assim! Como queria ser amada e idolatrada por todos.

Mais pessoas se aglomera. Sinto o sol quente sobre a pele. Vejo-me nos dias felizes e sinto que não sou feia. Achava-me bela quando deslizava no momento em que ouve o desastre. O carro me acertou em cheio. Meus escamas no momento brilhavam ao sol.

Agora penso de si para si: Não sou culpada de nenhum desvio de conduta que me imputam. Sou sim, e me vanglorio disso, de ser a causadora do despertar do conhecimento humano. O que seria eles sem mim? Pobres autômatos na terra.

Sinto-me cansada com tudo isso. Enrodilho-me e deito a cabeça sobre o corpo esguio. Com esse movimento me interpretam em pugna. Se me dessem o instinto de chorar, agora vertia lágrimas.

Olho a multidão que se formara. Não compreendo tanto ódio e rancor por uma criatura que só quis mostrar o caminho do conhecimento e da felicidade. Sem isso estariam até hoje no período das trevas. Agora são possuidores do livre arbítrio, capazes de nomear e de discernir entre o bem e o mal.

Por que fui causadora de tanto engano? Porque á maldição? “Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre sua linhagem e a dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar (Gn.3,15)”.

Súbito a multidão se abre deixando passar uma mulher. Olha para mim. Inicio uma oração.”Talvez... seria possível! Em volta ouço gritos”:

- Mata! Mata!

Fecho contrito os olhos.

Violentamente sinto minha coluna despedaçar-se em pedaços. Na angústia da morte vem-me um pensamento: “Como sinto não ter usado na mulher, toda minha peçonha!”.

Uma voz ecoa no vale: ”Deixem-nos! Eles não sabem o que fazem”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário