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segunda-feira, 8 de março de 2010
O retorno
Adão acordou com uma dor apertando-lhe o peito. Docemente olhou para dentro de si perscrutando, os sentimentos que volta e meia o atormentava. Sombrios. Tentou conectar-se como fazia todos os dias à internet, conversando com pessoas representadas por avatás, sem conseguir seu intento. Havia um vácuo, um vazio que a cada dia aumentava tornando-o estranho e melancólico.
De um dia para o outro sentiu, saudades do tempo remoto, quando as pessoas conversavam pelas manhãs, em bares e esquinas. Imaginou-se entrando, bem cedo naquelas padarias de outrora, o cheiro de pão quente, onde nas filas se falava de nada ou de alguma coisa sem importância, as notícias do dia a dia. Se não conhecesse a pessoa iniciava-se falando do clima, mas que logo se falava da mulher, dos filhos, da vida.
Começou abominar esse modo de vida moderno, trancafiados em apartamentos, fugindo das contaminações que diariamente aparecia nas doenças raras e por isso, tudo era feito através do computador pessoal, desde a mais simples coisa a mais complexa, como estrelar um ovo ou fazer sexo com uma parceira.
A família há muito perdera a referência, já não era a base, havia coisas mais sérias como o prazer e a fantasia. Os filhos eram encontrados em grandes magazines, todos adquiridos na grande rede, descriminados de acordo com a cor, raça, sexo e perfil físico e psicológico.
Era só escolher, produto altamente acabado, concebidos em provetas e laboratórios sem deformidade, seja físico ou psicológico. Assinava-se um termo de compromisso, se responsabilizando pela total educação daquele novo ser, e que declarava jamais o utilizar em benefício próprio se comprometendo a criar um cidadão livre para no futuro saber fazer suas escolhas sem amarras.
Havia a educação primária secundária e definitiva, seguindo-se a risca apostilas disponibilizadas em sites feitos pelos maiores educadores da “administração”, conteúdo estes pragmáticos para uma vida correta e ditosa sem sentimentos dúbios e tentadores. Pois, tais sentimentos fragilizavam o ser humano tornando-o mais propensos a infecções e pensamentos danosos ao próprio desenvolvimento.
As doenças a muito que fora extinta, e vivia-se em espaços estéril sem bactérias e vírus. O sexo era todo automatizado e as partes sujeitas a toques eram revestidas por materiais plásticos e lubrificantes bacteriostáticos. No ato só poderia dizer poucas frases como “nos adoramos simplesmente para o nosso crescimento e prazer” ou alguns gemidos próprios para despertar a libido do parceiro, porém jamais demonstrar paixão como abraçar longamente ou puxar os cabelos ou xingar, indecorosamente.
Era nesse mundo criado pelo homem, que Adão se encontrava perdido, lembrando-se de imagens passadas, que não expiraram ainda de sua alma. E nessas cenas como em flashes rápidos, se via pedindo a benção aos pais, reunidos em torno da mesa, de manhã o cheiro do café fresco, as brincadeiras na rua, como jogar pião, soltar pipa, futebol no campinho e tantas outras.
Namorar de mãos dadas numa pracinha qualquer, trocarem beijos em público sem protetores, sentir a saliva doce, exalar os feromônios gritar “eu te amo” ouvir uma canção alta, dançar na chuva.
Quando saia de carro, a rua branca e sadia lhe davam uma tristeza sem fim, as árvores sem cheiros, os pássaros voavam num túnel de vidro, sobre os edifícios, para não contaminarem o ambiente. A brisa era soprada por grandes aparelhos de ar condicionados tratados e purificados.
O sol a muito extinto, a luz vinha de um teto de aço, de lâmpadas poderosíssimas.
Os gramados eram de plásticos para não nascerem ervas daninhas nem insetos. Tinha uma diversidade de cores e formas. Nunca as crianças foram tão silenciosas. Os sentimentos eram cruzados pelo olhar, pois não se podia tocar, a não ser com os braços robóticos por trás de grossos vidros. A carícia fora descuidada em prol da saúde e da longevidade. Como os olhares eram tristes esse tempo.
Foi por um acaso que encontrou este arquivo de Word em seus documentos secretos:
“Quero te conhecer, correr todos os riscos. Procura-me nas salas de conferências, Eva.”
Foram longas noites acordados. Eram representados por dois desenhos simples, chamados de avatar- Na teogonia bramânica, cada uma das encarnações de um deus, especialmente de Vixnu, segunda pessoa da trindade bramânica; Ícone gráfico escolhido por um utilizador para representá-lo em determinados jogos e comunidades virtuais. Estes representavam eles.
Depois veio o desejo de se ver pessoalmente.
No início olhavam-se de longe. Ele tentava adivinhar seu perfil, loura ou morena, seu cheiro, a cor dos olhos. Ela queria ouvir o timbre da voz, saber de seus sonhos. Ficavam a uma distancia segura, mais ou menos mil metros, umas vezes ficavam em pé, acenavam, sopravam nas mãos beijos invisíveis, outras desenhavam corações com as mãos e riam em gargalhadas que terminavam em lágrimas.
Um belo dia ele desceu da montanha e chegou ao vale. Ela fez o mesmo caminho ao encontro dele. Olhou o pequeno riacho passar sob os pés, coberto por placas de vidros. Como gostou de pescar noutras épocas. Ela olhava as flores artificiais, sem abelhas nem borboletas atrás de seu néctar.
Aproximaram-se. Já não agüentavam tanta emoção. Um lampejo no céu como um clarão de metal. Deram-se as mãos. Tão macias notaram. O coração borboleta presa na mão. Pulsar de animal aprisionado. Beijaram-se. Deus que suavidade. A pele pêssego maduro. Fecharam os olhos e ficaram na delícia do tato. Maciez, pelos, músculos...O côncavo no convexo, aguçaram os sentidos, os cheiros, o sabor, os sons de aconchego,saliva, líquidos, molhando, retesando, lubrificando, acoplando, despejando, sugando, amando, gozando e sussurrando “eu te amo”.
Os carros dos patrulheiros os cercaram. Fizeram um círculo grande deixando as marcas no gramado verde. Falaram pelo rádio alto-falante. “Mãos para o alto!” A brisa que soprava agora era morna com cheiro de querosene. “Desrespeitaram as leis e serão castigados”. “Vão, saiam pelo portão, no final dessa estrada, seguindo a grande muralha. Sofrerão as conseqüências dos seus atos, e assim a partir de agora não serão mais imortais, perderam esta prerrogativa; a partir de hoje ficam sujeitos a todas as doenças e dores; se amarão como os animais, e os filhos nascerão de parto.
Eva olhou Adão, mirou os homens atrás de si, puxou-o pela mão que se encontrava fria pelo anseio, desamparado, sentiu toda a brisa fria, as cores berrante da natureza, o canto dos pássaros, o perfume das flores e atravessou o portal.
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