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sexta-feira, 19 de março de 2010
Sonhar é preciso
Desde criança todos os dias ele fazia a mesma coisa. À noite, orava para Deus, pedindo proteção,e depois que a mulher dormia, procurava um lugar sem luz onde pudesse contemplar o firmamento e o brilho das estrelas. Nesse momento o coração ficava pequeno ante a grandeza das coisas. Em sua fé havia muita esperança e amor; ansiava por dias melhores. Sentia-se um solitário.
Fizera noventa anos, recebera os presentes, fora um dia tranqüilo, sem sobressalto, mas havia em seu olhar algo como uma névoa sombria. Os filhos todos foram morar longe, alguns até em outros países, “tocando” a vida como dizia. Com os nós dos dedos repuxou as rugas envoltas dos olhos para enxergar melhor. Quem algum dia chegará a conhecer o coração humano? Debruçado a janela, olhos no alto, o cabelo como cachos de algodão, sacudia ao vento.
Súbito ouviu sons as suas costas, e viu a mulher arrastando os chinelos no cimento, com a cara de assombro.
-Ah! Meu bem, não conseguiu dormir também? Ora, ora, esse calor.
- Não se preocupe. Vim tomar um pouco d água.
-Porque não me pediu?
-Não queria acordá-la.
A mulher cordão de ouro no pescoço, brincos dourados, vaidosa não obstante ao tempo. As rugas eram como um terreno recém arado. Nas mãos, o terço em constante oração.
O mar jogava-se todo sobre a areia. Entrava no outono, e ao longe se ouvia o tombar das ondas.
-Veja José, as três Maria, apontava com o indicador.
-Não as aponte com o dedo, nascem verrugas horrendas, dizia em criança. É, e além o cruzeiro do sul. Baixou os olhos por momento. -Alguém mandou notícias?
-Não! Sonhei com eles hoje. Todos reunidos em volta da mesa, como no tempo de crianças.
-Tempo que não volta mais...
Sentiu-se cansado, os dias passavam, olhava na caixa de correspondência por notícias que nunca vinham. Acordava, orava, calçava os chinelos, ia escovar os dentes e ouvia o eco dos passos de Maria em direção ao portão. Se houvesse uma carta, uma sequer, ouviria os passos apressados em sua direção, e na pequena sala protegidos da claridade, bebiam juntos as palavras tão escassas. A voz saia embargada. Sem cartas, não havia ecos, só o marulhar da água, sobre as flores do jardim. Aguava-as.
Uma estrela cadente iluminou o céu. “Venha, vamos façamos um pedido juntos, quem sabe não se realiza?”
Olhou para fora e o silêncio era mortal. Nem atrás das longínquas montanhas sibilava sequer o vento. Só o barulho das ondas como o ressoar do tempo. Cabrum... Cabrum... Cabrum...
“Se ela soubesse, que fiquei todos esses dias, aqui quase a noite inteira, ah! acharia estranho e talvez quisesse mandar-me ao médico para mais uma consulta, diacho sei que não preciso de médico”.
Outro dia outra noite.
-Ann! Estava longe em pensamento, desculpe. O que você disse?
-Que chegou carta de Osvaldo ontem. Ele está bem, para não se preocupar, que um dia ele volta para tomar conta de nós.
“Não soube responder como chegara ali. Mentalmente revia as imagens do roteiro que fizera. Passara por vielas escuras e más cheirosas, ouviu suspiros que outrora o faria gelar, mas que ali pelo contrário, enrubescera somente, deslumbrado de felicidade. Sentiu cheiros e sons da infância. Vida que se apresentava aos seus olhos jamais imaginados. Sentiu tanto fulgor e felicidade como quando lera seu primeiro livro. Em ambos, os momentos, um clarão iluminara-lhe sua mente, acordando-lhes os sentidos que até ali se encontravam embotados.
-Estava lembrando-se da minha juventude. Como toda a vida fui um tímido.
-Não! Achei você até bem ousado. Lembra que me roubou da casa dos meus pais. Foi a maior prova de amor.
“Olhares convergiam para ele, sorrisos, dentes, línguas, gengivas vermelhas, pernas e seios fartos. Mulheres em trajes mínimos andavam de um lado para outro. Ah! Paraíso! Parou sob um poste. Olhou as estrelas. Cálidas brilhavam na imensidão. Porque tanto solidão meu Deus! Porque o homem é tão só, perguntava a si mesmo. Penumbras sobre os olhos tristes.
Uma mulher desprendeu-se do grupo e atirou-se sobre ele. Chegou com intimidade e perguntou de chofre se queria divertir-se. O cheiro de perfume ordinário penetrou-lhe pelas narinas deixando-o tonto, talvez pela emoção da proximidade, das carnes fáceis. “Coitado, tão tímido o menino.”
-Toda sua família era contra nosso namoro.
-Quando te vi chegando à igreja me apaixonei.
“Das janelas saia um halo divino. Foi puxado pelas mãos. Seguiu-a sem fitá-la. “Para onde meu Deus, se nem sei quem sou?”O medo o atormentava. As pernas, peraltas, foram adiante, ouvindo no beco o eco dos seus passos, distante, como se fossem de um espectro. No ar tenebroso o cheiro de perfume e fumaça. hipnotizado.”
- Tive insônia todos esses dias.
-Por que se preocupa demais com as coisas.
- Vim aqui para tomar um ar, estava muito abafado.
“Bem perto, ouvia gemidos, gargalhadas pérfidas, e esse ambiente de perdição davam-lhe arrepios e uma grande liberdade. Entrou numa casa e foi levada a um quarto, idêntico ao da mãe. No canto um pequeno guarda roupa, uma cama larga e lençóis amarrotados. Atrás da porta, quase escondido, um pequeno oratório, a bíblia com a página marcada, no chão uma vasilha com água. Orai por nós, mãe. As mãos frias, tanta ingenuidade. Um corredor escuro, no fundo lamparinas com luz mortiça. Na cabeceira um grande crucifixo feito de madeira escura. Ouviu o canto da mãe, onde as lágrimas molharam. Santo anjo do senhor iniciou uma oração.”
-Em que pensa agora?
-Nada. Coisas sem importância. Ele vem quando?
-Não falou. Talvez no fim do ano, não sei. Sinto tanta saudade.
“Orou em silêncio, soletrando as palavras lentamente. A pele tomou a cor do pecado. Rubro. Era como uma serpente num corpo de anjo. Ela estava ali nua e eu só na minha solidão. Uma névoa pairava sobre aquele lugar soturno e mágico. O coração apertado as mãos suadas e frias. Ouvia frases como ecos. “Seja homem! Passamos todos, “por isso”.”
-Ah! Ele não liga pra gente. Nem me lembro do seu cheiro e de sua voz.
-Criamos os filhos para o mundo. Maria alisou com as mãos o vestido enrugado-Como não vi estas coisas! Poderia te fazer companhia, relembrar nosso passado, tão lindo...
-Não quis importunar, dormias como uma criança. Olhou os pés naquela noite abafada.
“-Sente aí que já volto! A mulher saiu cantarolando alguma coisa imperceptível. A nudez era fria. Volveu os olhos para o alto além da janela e nos morros para além das casas soavam tambores e cantavam-se canções. Estava imóvel, petrificado. Voltou. Ela olhou-o com olhar evidente. ”Deite-se filho! Dito isso o puxou de encontro a suas carnes tenras. Amoldamos a melhor posição e conforto.” Riu consigo mesmo.
-Que tens?
-Recordações... Recordações...
-Pelo menos estou nessas cenas?
“Beije-me querido! Os corpos se procuraram. Corações batiam. Abraçaram-se. Os tambores calaram, e no momento em que as carnes cederam, um sentimento de posse e volúpia os atingiu tão violentamente que parecera ouvirem sussurrarem palavras de amor, e em segundos ele sentiu uma força, uma liberdade abrindo-lhe as portas para a vida. E foi, como o lampejo dos poetas em plena criação.”
-Maria me dê à mão. E puxou-a para fora. Saíram de mãos dadas pela areia.
-isso é loucura! Estamos velhos, sorria indecorosa.
-Venha! Venha! Olhe o luar, que coisa mais linda! Não deixemos para amanhã...
-Tanto tempo não fazemos isso. O sereno vai nos fazer mal, ai meu Deus que loucura!
O vento batia forte na palma dos coqueiros.
-Olhe as ondas, veja, entre, a água está morna. Crianças. Jogaram água para cima, viam as marcas feitas pelos pés na areia. Marcas! Marcas! Em tudo e todos ficam marcas. Exaustos sentaram–se na areia. Um clarão já deixava avermelhadas as ondas, viam o sol nascer. Uma luz brilhava no horizonte deixando as águas da cor de prata. Ela deitou-se no seu ombro, ardente.
- Esses últimos dias estão nebulosos, fico todas as noites me perguntando... Olhando para o universo.
-Pobre homem, deitou-o em seu colo. –Tolo! Sozinho todos esses anos.
-Veja Maria aquele navio. Sim. Aquele quase sumindo no horizonte.
-O que tem?
- Vai ele, em sua rota na certeza que um dia chegará, em seu destino...
-Sim! S-sim! Com certeza!
-A mesma coisa aquela estrada ali, ta vendo? Depois da ponte sabemos que tem outra estrada e outra e mais outra entende.
-sim.
-Mas há muito tempo, depois que nossos filhos se foram, meu coração é só um buraco aqui no meio que não tem fundo de dor.
-Deus meu, como não notei antes.
-E... Coçou o olho para não chorar – Você sabe que a maior tristeza dos pais é o esquecimento dos filhos não sabe?
-Bobo! Bobo! Os nossos não nos esqueceu. Eles são ocupados, nada mais.
-E nesses dias, que fiquei sem dormir cheguei a uma conclusão: Se queres matar alguém, não precisa de violência, de nada a não ser deixá-los na solidão...
- Mas temos um ao outro.
-Leio esses romances cheios de promessas, e que no final nada acaba bem e a mocinha fica sabendo que fora enganada, que tudo, tudo mesmo, fora um engodo.
-isso não passa de ficção.
-Viu aquele barco? E se ele jamais encontrar terra! Navegar, navegar... A esperança vidrada nos olhos dos marinheiros. Dias após dia. Pergunto: Seriam mais infelizes conhecendo a verdade? Hem! E Se todo esse tempo eles tiverem enganados, séculos e séculos sem fim, e que a terra for somente uma miragem, no único propósito de manter- nos calados a respeito das grandes aflições da humanidade? Se tudo fora urdido pelos poderosos, para que fiquemos como cordeiros sem grandes revoluções, sem atrapalhá-los em seus tronos e suas riquezas. Hem!
-Homem, tenha fé.
-Foi tudo que eu fiz todo esse tempo. Acreditar! Acreditar! Acreditar! E se acaso, for só um grande sonho. O homem sempre foi propenso a sonhar...
-Não se martirize assim.
-Deus... Agora sei, não vivemos sem sonhos...
-Calma! Homem, esse frio vai-lhe fazer mal. Tão quente tua mão.
O olhar sombrio. Levantou a cabeça como que febril.
-Que banalidade, seguir um sonho...
-Vamos para casa, vou fazer um chá e tudo vai melhorar.
- Seria tudo um sonho louco que o homem inventou, com medo da solidão das guerras, do seu extermínio? -E... Se no final nada acontecer. O que será de nós? Se depois da ponte só encontrarmos o vazio? Pobre de mim, pobres de nós...
Se a verdade fosse outra, não a de nossos sonhos...
-Esta é a fé. Nada além nem aquém.
-Ah! Como sofro com essa incerteza. É como chorar nossos mortos sem corpo presente. Sempre o vazio. O cadáver pelo menos nos dá consolo, mesmo na tristeza. Abandonaríamos os sonhos, a ficção, não seríamos ludibriados pelos escritores, esses criadores do engodo. Existirá alento?
-Creio e só.
- Acho que perdi a fé em tudo, e isso esta me trazendo uma grande tristeza. Passou a mão na barba por fazer. E você francamente acredita?
-Quem sou eu para duvidar? Não penso nisso. Veja a natureza, que esplendor! Alguém muito poderoso a criou.
-E... Se for apenas um sonho... Um lindo sonho... Minha grande tristeza é que a partir daí veríamos as estrelas... somente como pontos reluzentes. Teríamos nossa única certeza inexorável. O fim... E dormiu exausto no colo da amada.
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