Camaleões
Camaleões
são pertencentes à família Chamaeleonidae tem como
Característica
o mimetismo, e são seres solitários.
A jornalista olhou fixamente, e perguntou de
chofre:
-Como surgiu a ideia das anotações? E
se foi a partir dessas anotações, bizarras ainda, no meu entender, que o senhor
chegou a tão elevada casta de escritores conhecidos e lidos mundialmente?
O Jovem escritor
participava de uma mesa redonda, no canal liberdade, organizada, no intuito de
debater arte, programa este voltado ao público jovem e estudantes em geral.
-Bom
só para pontuar, eu não acho as anotações bizarras. Acho sim, bastante
infantil, e lutei com unhas e dentes para não serem impressas. Mas o valor que
a editora ofereceu foi irrecusável!
-O senhor pode falar esse valor
aproximado?
-Impossível! Aí serei pego pelo imposto
de rendas e acossado pelos credores. Aqui ele deu uma gargalhada.
-Mas continuando... aquilo tudo é inerente
a todo jovem daquela idade.
Aqui uma psicóloga
questionou:
-O senhor não foi prematuro?
-Com o ato de escrever?
-Não! Sexualmente falando.
-Não! Olha para a platéia, Não creio.
Sorri novamente. A platéia apóia.
-E
sobre seus desenhos? O que diz deles?
-Bom... coça a cabeça, -eu sempre gostei
de desenhar, saía assim de forma livre. Se tem alguma pertinência com o que eu
escrevia? Acho que sim. É o micro cosmo no macro, entende?
-E quanto a história das anotações?
Volta a perguntar a jornalista.
- Bom... A história é longa e remete
bem ao início de minha vida como ser, vivente, de homo sapiens.
A jornalista sorriu. Os
dentes brancos. Vestia uma saia azul escuro, que apertava suas ancas, e uma
camisa masculina branca de linho quase transparente e dela brotava uma
fragrância inebriante.
O escritor se ajeita na
cadeira. Veste um terno cinza em corte italiano. No pulso um relógio suíço, os
cabelos pretos e curtos e bem aparados na nuca.
-Bom, por mim eu ficaria ouvindo-o por
horas a fio, mas o senhor há de convir que um programa com duas horas de
duração, terá que fazer uma síntese, e creio não terá dificuldade alguma pelo
que já falei... Seu nível de escrita, seu gabarito... Com certeza no final tudo ficará esclarecido.
-Tudo bem. Vamos lá. Eis as anotações.
Ele entregou a ela um
calhamaço de papel roto, enrolado em fitas crepe.
O título em caneta
esferográfica:
“Anotações, desenhos e qualquer coisa de
minha vida”.
Embaixo em
vermelho: Isso é segredo de confissão.
“A turma havia marcado uma
reunião urgente. Saí cedo de casa, o local era longe, no bar de Seu Nilson. Seu
Nilson é o apoiador de nosso time e responsável pela guarda de nossos troféus.
Fica sobre a geladeira e enrolados em plástico azul, para os mosquitos não
sujarem nosso orgulho. E tínhamos bastante, nosso time era endiabrado. Todos
diziam.
Era final de março e o
sol forte no azul do céu limpo, como gema de ovo em prato vazio. Puta que pariu! Merda de sol tava de lascar.
Escaldava os pés. Um inferno aberto. No centro. Abrasador. Olho a própria
tristeza. Para dentro e debaixo. Fecho
os olhos para não cegar. Faço caretas. Uma bola de fogo. Os paralelepípedos quentes sem dó. Nem uma alma na rua. Só eu, maluco. Pareço
preá fugindo sobre os lajedos. Fugindo dos carcarás. Fugindo do Belzebu.
-Vixe!
Corro de um lado a
outro caçando sombra para não queimar os pés. Tenho pressa. O convite foi curto
e grosso: “Reunião urgente”, Só. Eram assim as mensagens da turma quando ia
discutir alguma coisa. Só tivera uma antes.
Foi o ano passado.
Birita nos chamou na rua até a casa em ruínas. Aquela casa abandonada da
esquina. Pois então.
A casa dos cheiros estranhos,
de fezes, de urina, de água parada. Lugar onde os vadios e pedintes faziam suas
necessidades. Era uma casa em construção, parada a muito, tinham batido só a
laje, os tijolos nus, sem piso e sem janelas. Algumas ramas de melão de são
Caetano entraram e a abraçava por todos os lados. Era fácil encontrar a sabiá laranjeira
comendo melões ou fezes pelo chão. Pegávamos para vender. No alçapão. Dava um
bom dinheiro. A gente aguentava aquela podridão por que ficava perto do rio, e
dali a gente via as lavadeiras nos afazeres diários. A partir daí virou ponto
de encontro onde podíamos discutir qualquer coisa longe dos adultos.
Lembro vagamente, pois a
memória falha e não fixam cenários, somente alguns cheiros e cores, como um
sonho, as coisas de trás pra frente atemporal.
Naquele dia, entramos
com cuidado olhando os cacos de vidros no chão e quando subimos na laje deu
para ver o rio correndo, tal uma cobra serpenteando no vale brilhando como
espelhos. Birita pediu silêncio. Era assim quando era algo secreto. Nosso coração batia forte. Apontou o rio. As
lavadeiras chegando. Foram deixando as roupas sobre as pedras e levantavam as
saias para não molhar. Algumas ficavam de roupas íntimas ou nuas na correnteza.
Aguçava nossa curiosidade. Ficávamos olhando um bom tempo. “Minha mãe não!”,
gritou Jeguinho. O negrinho perebento que gostava de jumentas. Birita jogou uma
pedra nele. E quem quer olhar sua mãe? Têm outras muito melhores!
O céu azul e o sol derretendo.
As lavadeiras batiam a roupa na pedra dura e a sujeira saia. Como temos
sujeiras. Haja sabão para limpar tudo. Depois colocaram no quaradouro para
ficarem branquinhas.
Birita acocorou-se. Ele
tinha os pés chatos e curtos, sujo de poeira, sempre descalços, o braço forte
de menino de recados, de quem trabalha na roça, cabelo loiro e crespo como
vassoura de piaçava. Os olhos eram escuros e sem brilhos de quem já viu
tristeza. Pai desconhecido.
A mãe de Jeguinho
apareceu perto da casa, nua em pelo, bem na margem, o sol brilhava em sua pele escura
e molhada cintilando brilhos multicores, e aí Birita olhou fixamente, arriou o
calção, os olhos vidrados.
-Ninguém vai bater para minha mãe não!
Gritou novamente Jeguinho. –
-Deixa, deixa Jeguinho, disse Tonhão,
vamos esperar o motivo dessa reunião e depois vamos vê!”Tonhão era daqueles
moleques magro e comprido e o rosto cheio de espinhas.
-Isso é por mode de que não é sua mãe!
Aí vimos Birita abrindo
a boca e fazendo contorções invulgares. Sorria
e seu rosto estava meio pálido. O que é que ele queria pensei. Ele cuspiu mais na mão e manipulou
vertiginosamente.
-Eita porra, falei. O que é isso outro
dissera na ocasião.
-Olha aí isso, gritou novamente Jeguinho.
-Ele ta fazendo para minha mãe! Isso é sacanagem. Vou bater uma para sua irmã
também!
Dei um cascudo para ele
calar-se. Agora a mãe de Jeguinho andou de costas.
Nisso Birita ficou fazendo
umas caretas esquisitas, parecia que ia desmaiar igual o seu Jorge quando caia
na rua com epilepsia e ficava estrebuchando.
Depois rindo chamou
todos:
-Olha aqui!
-O que, perguntei.
-Isso ó! Branco que nem
leite!
-E que é que tem?
-Não vê que já sou
homem? -Já sou homem porra!
Quiabo até ali calado
disse debochado:
-Era isso que queria mostrar para a
gente? –Já era meu chapa! Todos aqui temos! Rimos da cara dele.
-Isso não é novidade
para a gente.
Ele fechou a cara e
gritou:
- Ah! É? Então provem!
A gente tava tudo
suado, além do sol esta de escaldar tinha a emoção de ver um monte de mulher
peladas. Olhamos entre si.
-Vamos provar sim! Eu
disse.
Aí tiramos nossos
calções, cuspimos em cima e tocamos uma verdadeira sinfonia.
-Duvido quem joga mais longe! Gritei.
A parede ficou branca.
Birita com raiva pegou a gosma e jogou em nós. Apesar de ele ser meu melhor
amigo aquilo tinha sido demais. Não pensei duas vezes. Plantei um chute na
bunda dele. Ele quase chorou. Era para aprender a respeitar os mais velhos. Ele
era o mais novo. Gritamos na época.
-Chamou a gente para isso? - Perder nosso
tempo! Ele quis correr.
-Agora tem que pagar prenda! Gritei.
-Não! Não! Ele dizia. Todos aprovaram!
-Têm sim, os outros gritaram.
-Então uma prenda fácil! Ele disse. Eu
pensei numa coisa que ninguém tinha feito. Pedi silêncio. Votamos! Uns queriam
que ele chupasse nosso pau, outros que ele comesse um naco de merda, mas o que
ganhou foi meu palpite E falei:
-Ele tem de provar da gosma! Ele quase
chorou.
-Isso não! Isso não! Ele gritava. Dissemos
juntos.
-É melhor pagar a prenda senão vai tomar cascudo
de todos!
Ele pensou, pensou e resolveu:
-Tá bom! Com muito custo ele passou o dedo na gosma e
enfiou na boca. Fez cara de vômito. E
falou:
-Olha! Bater uma é muito bom! E quando
temos a porra é muito melhor! Diz meu tio que se fizer demais fica magro e
nasce cabelo na palma da mão. Mas a
sensação é boa demais! Parece um desfalecimento, é como tomar refrigerante com
muita sede, sentimos milhões de bolinhas subindo nossas cabeças. Não vou parar não! Pode nascer cabelo, ficar
magro, nem quero saber.
Aí olhou para Jeguinho.
Prosseguiu.
-Ainda mais vendo uma mulata daquelas!
Jeguinho partiu para
cima querendo briga, mas a turma apartou e tudo ficou bem. Aí ele completou:
-Agora o gosto dessa porra! Puta que
pariu, que coisa ruim... Parece detergente!
Caímos na gargalhada.
-Agora chupa aqui, mostrei.
Aí ele saiu correndo. Corremos
atrás e mergulhamos no rio.
Depois dessa, o melhor
era refrescar a cabeça.
Desde esse dia que
ficamos estranhos. Queríamos andar sozinhos, mais calados, mais na solidão.
Senti um elo se arrebentar, deixei para trás as histórias da carochinha que
tanto gostava e os meus velhos gibis. Aprendi o prazer solitário, passei a ser
mais egoísta e ter mais maldades. Os sonhos agora eram reais, tinha cheiro,
gosto e gozo. E a vida ficou divertida.
Quando não tinha nada para
fazer, era só ir num lugar deserto pensar numa mulher, nas coxas dela, nos
peitos e na penugem negra delas e arrebatar-se.
A partir desta
descoberta aflorou em mim uma vontade de escrever coisas, e passei a anotar no
caderno.
Caderno de anotações:
“Agora que me tornei homem, a
visão de qualquer fêmea dá-me arrepios e pensamentos obscenos”.
Realmente eu estava
mais circunspecto e furtivo. Era como olhar uma montanha e ter o desejo de não
só admirá-la, mas chegar perto, subir até o cume, escalá-la por inteira. Descobri
que se você tiver na ponta da língua o nome da garota e sussurrar baixinho, o
gozo é mil vezes maior.
Atravessei correndo a
praça. Vejo vultos nas janelas. Cada
casa tem seus membros, cada membro suas vidas e toda vida seus sofrimentos. Não
podia perder tempo com mandados ou prosas. Por isso passo batido. Os mais
velhos gostam de pedir favores. Vai ali ao mercado, trás para mim um fubá ou um
maço de cigarros, dá um recado a seu tio, pequenas coisas que eles não gostam
de fazer. Eu gostava, pois ganhava uns trocados.
Lembro do dia que meu
avô pediu-me para eu comprar pão. Essa é boa. Vai escutando. Ele disse: Toma o
dinheiro, segura com cuidado e trás o troco certinho. O dinheiro andava
difícil. O sertão estava todo seco e as criações morriam. Era uma tristeza só. Eu
saí correndo. Sempre fazia as coisas correndo. Passei a casa de seu Manoel,
graças a Deus o cachorro tava preso na corrente, o sino tocou nove vezes um som
metálico fino e seco. Salto as raízes das
castanheiras que fica em volta da praça, quase atropelei uma bicicleta, olha
por onde anda moleque gritei, ele me respondeu, vai tomar no cu, olha que eu te
pego moleque seu fiduma rapariga gritei e peguei duma pedra e joguei com toda
força. Por um triz, eu não furei a cabeça dele, o filho de uma égua. Ia dá
problema, mas eu não era de fugir de problemas; eu era o problema. Mas deixa
para lá. Isso não interessa a ninguém. Cheguei à padaria. Quero seis pães e o
troco, disse. A atendente tinha uma calça apertada. Os cabelos pretinhos. Ela
era bem branquinha. Enquanto ela contava os pães eu a olhava. Era bem
fresquinha. Uma marca pequena da calcinha. Tentei adivinhar a cor. Entregou-me
os pães e sorriu. Um dente quebrado. Azul
eu disse. O que? Ela perguntou. Nada. Falei sem querer. Fui saindo. Ela pensou
e chamou. Parei estupefato. O troco menino. As abelhas voejavam sobre os pães doces. O
cheiro dela era doce. Lembrarei desse
cheiro. Do dentinho quebrado também. Era assim que eu fazia. Coletava dados
para criar a personagem para meus sonhos. Um umbigo, um cheiro, um olhar, um
pelo, qualquer coisa para ter verossimilhança. Mais o nome estaria completo.
Por isso eu voltei cabisbaixo e perguntei.
-Qual seu nome?
Ela sorriu de novo. O
dente quebrado.
-Para que você quer saber meu nome? Quer
me namorar é?
A voz esganiçada. Pegou
no meu queixo. As unhas pintadas de vermelho. Uma diabinha ela. Eu quase corri.
Deu vontade. Mas fiquei calado, acabrunhado, o rosto esquentando.
-Já
sei! Você quer me namorar?
Observei também que ela
tinha suor debaixo do braço assim bem lá nela. E mais: penugens no sovaco. Ela
deve ter seus quinze anos, calculei. Eu já sabia que mulher com essa idade já
tem um amontoado de pentelhos cobrindo a fenda. Eu já vi nas revistas. Em posições espetaculares. E cortavam os pelos
de vários padrões. Muitas vezes ficava só uma tirinha bem fininha. As poses nas
revistas eram principalmente para mostrar os orifícios. As negras são roxas. As
outras rosadas. Eu prefiro poses comportadas. Ficam bem mais legais mais
humanas. Tem que ser como contar uma história. Eu faço assim: Inicio com uma
frase simples, pode ser até sem sentido algum, como quem não quer nada e depois
vai soltando devagar, tipo comendo pelas beiradas, entende? E quando menos se
espera chego ao final. Pode ser um final espetacular ou deixar em aberto. Isso
atrai mais curiosidade. Prende mais a atenção. Gosto da poses comportadas, as
pernas devem esta juntas, o olhar deve simular algo, para que nossa curiosidade
fique mais instigada. É lógico que eu sei que as revista vendem mais quando
mostram tudo. Tem umas que parecem flores. É bom ficar alisando assim uns
pentelhos como se fosse um gato angorá.
-Não
é?
A voz de Amanda
trouxe-me à realidade. Na maioria das vezes sou assim, oitenta por cento sou ilusão.
Sou um menino como disse minha professora de religião, introspectivo. Ela disse
isso quando falava de Adão e Eva no paraíso, que eles andavam pelados, ainda
não tinham vergonha de nada, depois que experimentaram da fruta proibida, que
caíram no pecado. Eu fiquei pensando que essa história era do mesmo quilate dos
que falam que masturbação cresce pelo na palma da mão, emagrece, essas coisas
para nos colocar freios.
-Quer namorar comigo não é? Fui acordando
novamente. Meu rosto pegava fogo. Eu queria cair num buraco e sumir. Mas não
arredei pé. Nem quando ela falou o nome no meu ouvido e deu-me um beijo na
face.
-Amanda! Chamo-me Amanda!
Caderno de Anotações:
“É imprescindível nomear os
personagens.”
Meu calção aumentou o
volume. Fechei as pernas para esconder. Aí corri como um coelho. Amanda!
Amanda! Amanda! Ia repetindo para não esquecer. Acho que ela ainda me chamou.
Nisso trombei com um velhote. Ele fedia a cigarro de rolo. Disse para eu tomar
cuidado por que a pressa é inimiga da perfeição. Eu parei e fiquei contando às
moedas que tinham caído no chão. Uma a uma. O velhote aproximou e perguntou por
que eu não jogava aquelas moedas no coelho. Eu ainda falei olhando para o chão
que não via nenhum coelho por ali, aliás, aqui só tem preá. Ele era cambista do bicho aí eu entendi. Que
coincidência, eu pensando no coelho, correndo igual coelho e o velhote fala
isso para mim, deve ter alguma coisa aí. E sorte como diz minha mãe vem uma
vez. Joguei. Todas as moedas na cabeça. Coelho.
Passei o dinheiro para
o homem. Ele passou um papel para mim. Depois disse que era para eu esperar uns
cinco minutos que já ia correr. Muita gente aproximou. Era uma casa de jogo de
frente ao mercado central. Tinha gente de todo tipo principalmente as
lavadeiras que voltavam do rio, pescadores, aposentados e pequenos
comerciantes. Giraram a roda. Passava os bichos rapidamente. A águia, o
avestruz o burro, a borboleta, cachorro, cabra, camelo, cobra aí meu coração
disparou. Passou a primeira vez pela minha cabeça e se eu perdesse, por que não
pensei antes, meu avô me mata, nisso passou o coelho novamente, o cavalo, o
elefante, o galo, o gato, jacaré, leão, e a roda ia perdendo velocidade, o
velho acendeu um cigarro, os dedos amarelos da nicotina, e ficou pitando num
canto, tremia os dedos, de novo passa o macaco, o porco, minha mão suava, o
volume de meu calção baixou e era só silêncio na sala. Só o tec tec tec tec da palheta da roda
batendo nos metais que dividiam os bichos, todos coloridos. Passou agora o
pavão, o tigre o urso, minha cabeça rodava, Amanda era o nome dela e passou o
viado, passou a vaca, aí escureceu minha vista. Quando voltei o cachorro
passava e eu segurei na grade para não cair e a roda foi perdendo velocidade. Cabra,
carneiro, cobra, camelo, e coelho! Gritaram: Deu coelho na cabeça! Eu tremia que
nem vara verde. Minha mão suava. A maioria do povo rasgava os papéis. Fui ao balcão e mostrei o bilhete ao banqueiro.
Ele arregalou os olhos!
-Quem te vendeu menino!
O velho estava quase
dando um troço.
-Fui eu patrão o outro falou. Desculpou-se.
-Eu jurava que era dinheiro fácil!
-Mas você não sabe que criança não pode
jogar? E agora? E agora o que é que eu faço?
Eu balancei o papel e
gritei!
-Paga! Todo mundo riu. Até o velhote. Ele
não teve alternativa.
Quando cheguei à casa de
meu avô ele tava deitado na espreguiçadeira. O penico cheio de urina. Estava
bem fedorento e amarelo. Dava-me asco. Ele abriu os olhos. Perguntou-me o porquê
da demora.
-Cadê os pães que te pedi?
-Coloquei em cima da mesa.
Puta merda. Estava
suando.
-E
o que é isso? Meu avô apontou para o pacote. Entreguei o pacote.
- Ganhei no bicho! Coelho na cabeça!
Trinta vezes mais o que
ele me deu.
-Você ganhou no bicho? Arrumou-se na
espreguiçadeira como quando queria ser bem entendido. E olhou-me com aquela
cara magrela. E ficou rindo com a boca sem dente. A dentadura tava dentro de um
copo com água.
-Pega um pão ali e come menino.
-Não vô eu já comi em casa!
Que nada eu tinha era
nojo da urina no penico e da dentadura no copo. Ele enfiou a mão no pacote
tirou duas notas e me entregou.
-Você merece.
Eu coloquei dentro do
calção e saí correndo. Depois guardei junto com meus gibis.
Caderno de anotações:
“Amanda é o amor da minha vida!
Tenho vontade de abraçá-la, de beijá-la. Até por sinal teria coragem de
chupá-la toda. Dos pés a cabeça.”
As cabras pastavam a grama esturricada
enquanto os chocalhos tocavam no como um cortejo. Era para não fugirem. Quem
fugiria dali? Enfrentar esse calor, a
caatinga, os gemidos das cigarras que nos deixava tontos?
Mais na frente avisto o
filho de Nego Chico em sua cadeira de rodas. Pastorando o feijão que secava ao
sol. Era toda a riqueza da família. Era para o ano todo. Cumprimento-o com um
aceno. Passo agora a padaria. As abelhas voejam em volta do açúcar e dos
bagaços de cana. Amanda lá dentro atendendo os fregueses. Eu passo sempre aqui
na frente. Faço uma volta grande só par vê-la. Virou amor platônico. Tenho
coisas para falar para ela, mas estou criando coragem. Ela acena para mim. Eu
aceno de volta. Por enquanto isso basta. Alguns porcos pela rua deitados no
esgoto a céu aberto. Chuto o traseiro de um para me dá passagem. É um “cachaço”
dos grandes. Quer me morder. Ôxente! Corro.
Salto o muro do cemitério. Caio sentado do outro lado. Uns carrapichos
agarram na minha mão. Tiro de um em um. Sempre pego esse atalho. Todos fazem
isso para chegar ao morro do “galo assado”. Passo entre as cruzes do finado
Silvestre e de Dona Ana. Dizem que viraram fantasmas. Mas não tenho medo de assombrações.
Nem ligo. Os mortos não me metem medo. Mesmo
por que aqui reina silêncio e paz. Quando passo correndo, um ventinho arredio
levanta algumas folhas a minha passagem. Paro numa sombra para descansar. Um
juazeiro bem no meio da planície. É como um oásis. Foi minha professora que
disse: O açude Mãe d’água é um oásis no sertão. Nunca mais esqueci.
Devo explicar esse amor
platônico se por acaso amor tem explicação. Quando vi Amanda tudo bateu. O
rosto dela, aquele sorriso, as mãos, os dedos compridos, as pernas grossas, e o
cheiro dela. Aí minha vida virou ao avesso. Quando ia para escola pegava o
caminho mais longo só para vê-la. Colocava as chinelas, estava aprendendo a
andar com elas, e a camiseta por dentro do calção como via nos filmes de
Mazzaropi. Meus pés suavam e as chinelas saíam e meu andar era de urubu no
frio. Aí passava todo sisudo, na padaria, acenava para ela, ela para mim.
Na missa de domingo a
via passar com aquele pano na cabeça a coisa mais linda a caminho da comunhão.
Para comungar com Deus primeiro tinha que se confessar, disse minha mãe. Eu
queria também. Então no sábado eu
ajoelhei na frente do padre e contei meus pecados: “Eu falei mal minha mãe de
nomes feios, desejei que se meu pai fosse vivo ele morresse da pior morte
possível e ontem eu desejei... desejei... desejei...” Pode completar dissera o
padre, “-tudo que se fala na confissão torna-se segredo. Aí eu falei:
-Eu desejei muito uma
menina. Calei emocionado. Como consegui dizer isso!
O padre abanou a cabeça
e mandou rezar três Aves Maria e dois Padres Nosso.
No domingo fiquei na
fila esperando receber o corpo de cristo. Mas os olhos eram para Amanda. Ela de
mãos postas. As unhas pintadas de vermelho os seus dedos compridinhos. O padre
colocou o corpo de cristo na minha boca.
-Mainha como faz para receber, a hóstia
eu perguntei no dia anterior.
- Você fica sério, abre a boca e estica a
língua, não tanto, só um pouco. O mais importante. Não pode mastigar.
Eu esqueci e mastiguei.
Tinha o gosto de pão. Eu pequei. A missa terminou e a gente ficava brincando no
pátio, em volta da igreja. Numa dessas voltas eu vi Amanda beijando um cara
mais velho. Parei estupefato, dei meia volta e fugi para casa.
-Foi por que eu pequei
meu Deus! Fui chorar no banheiro.
Depois para me vingar
cuspi na mão e fiquei manipulando devagar, para cima e para baixo e quando na hora
h eu falei bem assim: “Ai Amanda meu amor, minha vida, do dentinho quebrado e
do cheiro doce”. Foi bom demais.
Caderno de anotações:
“Você morreu para mim! Vou
esquecer-te para sempre”.
Agora desço um morro
íngreme, passo a curva da grande aroeira onde gosta de pousar os gaviões, e
depois o rio. Atravesso a ponte suspensa e chego ao bar de Seu Nilson. Vou
cumprimentando todos tocando na mão e sento na cadeira escolhida para mim. Na cabeceira da mesa. O radio está ligado e todos em volta. Os meus
feitos dão-me certa autoridade. Pensa bem. Eu que saltei primeiro da torre do
açude. Eu que roubei as hóstias do Padre Rafael. Eu que primeiro beijei de
língua. Eu que imitava a assinatura nos boletins, eu que matava mais passarinho.
Tudo isso conta num grupo de meninos.
Seu Nilson tinha colocado uma jarra de Qsuco sobre
a mesa. Pão doce também.
-Vai começar o jogo?
O radio estava sobre a
mesa. Era a válvula. Seu Nilson disse que pegava até rádios do estrangeiro. E
era verdade. Um dia a noite ele ligou. Tinha gente do outro lado falando outra
língua. Eu sabia que era japonês por que já tinha visto muito filme de guerra e
eles eram o inimigo
Ficamos calados atentos
a escalação.
“O excrete canarinho
vai jogar essa partida final com a Itália, no estádio, Azteca, um lindo estádio
de futebol aqui na cidade do México. Faz uma temperatura agradável e a seleção
canarinho vem assim escalada: No gol Félix, Tonhão sorriu. Quando ele pegava
uma bola gritava, agarra Félix! O locutor prosseguia: Carlos Alberto Brito, Piazza,
Clodoaldo, Everaldo, Jairzinho, Gerson, tostão Pelé e Rivelino.
Nosso Rivelino era Birita.
Quando ele ia chutar todo mundo saía da barreira. Ele chutava de bicudo. “As
duas seleções em campo, mais de cem mil pessoas, o estádio lotado para essa
partida que ficará na história.
Roia minhas unhas.
“Deu início à partida. O
locutor parecia emocionado. “Tostão toca para Pelé, ele carrega a pelota toca
para Everaldo, Everaldo para Tostão que chuta por cima da baliza. Tiro de meta
para Itália”.
-Brasil vai ganhar de dois, eu disse.
“O que você acha do
jogo até agora meu caro!” O locutor para o comentarista.
Comentarista: “Olha nesse
início o Brasil jogando para frente, mostrando toda a sua categoria, mas tem
que ter cuidado, pois a Itália é traiçoeira. E não chegou a final por acaso”.
“Piazza domina no peito
coloca a pelota no chão, toca para Clodoaldo, Clodoaldo dribla um e toca para
tostão, chutaaaaaaa! Para fora. No estádio Azteca cidade do México o relógio
marca o tempo... dezessete minutos do primeiro tempo! No placar Brasil zero,
Itália também zero.”
Tá foda hem! Se fosse
eu, disse Birita, driblava um, cortava para a esquerda e dava um bicudo no
ângulo.
“Lançamento para
Tostão, domina a pelota sai pela lateral. Bate para Rivelino que cruza para a
área. Pelé sobe mais do que o centro four cabeceia, no canto. É
gooooooooooollllll!” Goool do Brasil. “Setenta milhões em ação, pra frente
Brasil salve a seleção”. Pelé aos dezoito minutos do primeiro tempo. Agora no
placar, Brasil um, Itália zero. Vale dizer que esse jogo está sendo transmitido
via Embratel pela primeira vez para a televisão a cores. “O nosso presidente
Médici está acompanhando atento de Brasília.”
Entrei para coroinha a
fim de ver Amanda aos domingos. Vestia aqueles paramentos, uma batina vermelha
que ela quando me viu abriu a boca num riso e depois ficou séria. Foi quando eu
fui confessar a segunda vez. Contei os mesmos pecados e o padre, um italiano
grandão, mandou-me rezar três padre nosso e três Aves Maria. Como não tinha
mais ninguém o padre chamou-me na sacristia. Ele tirou o Amito, um pano em
volta do pescoço, tirou a batina, tirou a Alva foi que eu vi o padre em forma
de homem, melhor dizendo, de tênis e calça jeans. Aí ele sentou-se e mandou que
eu sentasse também.
-Sua mãe, esteve aqui, falou de você, do
seu pai...
-Não quero falar sobre isso!
-Ela pediu! Seu pai meu filho, pode ter
morrido na guerra sim!
-Não acredito! Ele deve ser sim um homem covarde
que não quis assumir!
-Olha filho esse tempo, o Brasil passando
por uma ditadura...
- O que é ditadura?
-Esse governo meu filho! Fechou o
congresso, aboliram os direitos dos cidadãos, essas coisas que é melhor você
nem entender. Você é uma criança. E essa ditadura meu filho, já consumiu com muitos...
e quem sabe seu pai não foi um deles, afinal pelo que dizem ele tinha idéias
comunistas!
-O senhor o conheceu padre?
-Não filho, só pelo que os outros falam!
Eu olhava para o chão,
uns mosaicos bonitos que formavam desenhos entre si.
-É melhor você esquecer-se disso, pensar
em seu pai com amor e tocar a vida para frente. Queria fazer uma proposta para
você! Surgiu uma vaga de coroinha, você não quer assumir? É fácil. Seria nos
sábados e domingos.
E aí comecei roubar
hóstia do padre. Vinho também. A igreja lotada fica bonita, mas sem ninguém é
triste e tem cheiro de morcegos. A escada que dava para a torre era alta e de
lá dava para ver a cidade inteira. Gostava de ficar ali, ver o cemitério. “Terá
mais mortos no mundo que vivos?”
Caderno de anotações:
“ Tudo depende do ponto
de vista”.
“A zaga toca com
tranqüilidade para Clodoaldo este tenta um calcanhar, aí não meu filho, aí não
é lugar de brincadeira, Bonisegna recupera a bola e chuta. Gol da Itália”.
-Puta que pariu esses gringos são foda!
Seu Nilson foi buscar mais guaraná.
Terminou o primeiro
tempo.
Birita aproveitou para
falar. Abriu um caderno onde tinha as anotações.
Uma letra de forma
grande com o título:
Doações para o grêmio
recreativo “Estrela do Mar”. Era o nosso time.
E mais embaixo com
letras de imprensa.
Mercado modelo --à
seis cruzeiro,
Armarinho de Dona Sílvia
à
sete,
Buteco de Seu Osmar à
nove,
O carroceiro à
cinqüenta centavos,
Dona Abigail do Puteiro
à
dois cruzeiros
Venda de gibi de Tarzanà
cinco cruzeiros
Venda de bolas de gude coloridasàum
cruzeiro
O açougueiroà
miúdos para a farofa,
Seu Belarmindo do mercadinhoà
dez saquinho de suco de groselha,
O padeiroàCem
pães dormidos
O farmacêuticoà
vitaminas c
Totalà
Estava em branco.
Birita coçou a cabeça.
Não era bom de matemática. Seu burro eu disse! Como vai tomar conta da caixinha
se não sabe somar! Quase dei um cascudo nele para ele aprender. Faz isso não
falou seu Nilson. Por sinal ninguém ali sabia ao certo. Pegamos uma folha e
ficamos somando. Quebrando a cabeça. Noves fora... A gente gostava era de
putaria. Era olhar as vizinhas em pelo, correr atrás das cabritas nos pastos...
essas coisas que dá felicidade, que trás mais pecados ,mas que é bom! Sei que
sou pecador.
Seu Nilson notando
nossa peleja veio por trás e ficou calculando de cabeça. Ele era um esperto
tinha feito o Mobral. Vivia em volta de sua caderneta de fiado. Cobrava juros.
“São trinta cruzeiros e cinqüenta centavos!” Disse. Suspiramos aliviados. Dava
para comprar a bola que tanto queríamos mais um padrão de camisa amarelas da
cor do Brasil. Avante Brasil! Gritamos.
Por sinal a gente jogava
igual o “excrete” canarinho dizia Seu Nilson. E ele sabia das coisas. Sabia de
cor toda a seleção de setenta. Eu tinha o álbum de figurinha quase completo.
“E vai começar o
segundo tempo e continuando o placar assim a decisão será nos pênaltis. Fazíamos
uma roda em volta do rádio.
-Ai, espero que não precise, disse
Quiabo.
“A pelota começou a
rolar, Pelé domina na coxa, dribla dois italianos, Gerson chuta, é goooollll!
Gol do Brasil”. Toca a mesma música. “Setenta milhões em ação, pra frente
Brasil salve a seleção!
“Como pode um país com
uma ditadura como falou o padre, onde some pessoas, toda essa alegria, o povo
na rua. Não acredito! Não acredito!
O filho da puta do meu
pai fugiu mesmo.
“Olha a pelota rolando,
de pé em pé, Jairzinho domina e corre pela direita, chuta com força, é
goooollll! O furacão da copa! Explode fogos na rua. Os cachorros fogem. Eu já
não presto atenção no jogo. Penso em Amanda, na minha mãe, no fujão do meu pai.
Aí aconteceu o quarto gol. Carlos Alberto. Numa deixada de Pelé e ele pegou na
veia. Saímos gritando em volta É tri! É tri! Os fogos aumentaram. Ficamos
olhando de longe. Os urubus giravam no céu.
Quando tudo passou, o
Brasil recebeu a taça Jules Rimet, e os comentaristas se despediram desligamos
o rádio e começamos a reunião.
–A pauta é onde vai ser o jogo desse ano?
Dentuço pediu a palavra.
-Os moleques daqui, todos sabem a
importância desse jogo. -Olhem lá e apontou para a geladeira onde ficavam os
troféus, - só falta mais um para chegarmos ao penta. Aqui ele levanta e anda
como se tivesse uma grande platéia, tinha pegado todo cacoete do pai que era
Dr. Afonso o juiz de direito da comarca, - o último local do jogo, passei lá
recentemente, quando fui soltar pipa, era regular, tinha algumas ressalvas, mas
não tinha fio elétrico nem carro passando, mas a má notícia é que estão construindo
o mercado central ali e se encontra cheio de pregos e ferro retorcidos. Ali já
não dá. E como temos o mando de campo é nossa obrigação arrumar o local e que
seja o melhor possível. Então peço que cada um dê sua opinião e depois
votaremos para fazer a escolha, ele olhou num papel almaço, por debaixo da mesa
e acrescentou... Uma escolha e que seja em voto democraticamente. Bom, em minha
opinião é que seja na rua do escritório do meu pai. É reta, comprida e tem
árvores dos dois lados.
-Não acho uma boa disse Birita. Ali por
ser uma rua central, tem muito movimento, passa carroça a toda hora, e o piso é
de pé de moleque, um perigo para torcer o pé.
E tem muita janela de vidro. Um chute meu vai quebrar tudo. Ele chutava
como Rivelino. Aliás, no último jogo me deu um calo de sangue no calcanhar que
tratei o ano inteiro com sebo de carneiro capado e só agora é que posso pisar
normal.
Jeguim até ali calado
futricando uma ferida:
-Mas o que significa isso? Democraticamente?Todos
riram.
-É
como o rio para as lavadeiras, todas usam as água para seu trabalho? Isso chama
democracia. Ele coçou a cabeça.
-Então é igual à mãe do Nego aí! Dá para
todo mundo! Ela é democrática!
Dei um chute nele. Uns
coques também. Não coloca minha mãe no meio se não eu coloco as suas eu disse.
Voltamos ao assunto.
-Eu também concordo com Birita disse
Tonhão. Durante o jogo sobrou uma bola dividida para mim e o centroavante dele.
Não pensei duas vezes, parti para cima e dei o maior bicudo na bola. Acertei tudo. O pé do centroavante a bola e
pior, uma pedra que arrancou um tampo da cabeça do dedão. Porra como doeu! À
noite quando se encostava ao lençol era uma dor insuportável. Quase não dormi. E
tive que ir para a missa de domingo, de chinelo de dedo. Ali definitivamente não
é bom! Minha ideia é que seja no pátio da praça. É de cerâmica e não tem o
perigo de ralar por que é liso e é o único lugar com iluminação. Poderia jogar até a noite.
Quiabo discordou:
-O jogo tem que ser á tarde, depois da
aula, e como a praça é de cerâmica, liso que só, se chover escorrega muito e se
tiver sol àquilo vira uma frigideira quente. Pra mim seria lá na frente do
cemitério. Aquele pátio é grande, é de terra batida, ninguém reclama, pois os
vizinhos estão todos mortos, se a bola por acaso cair do outro lado do muro
ninguém fura a bola.
Discordo eu disse.
-Em
frente ao cemitério o pátio é realmente grande, mas parece que escolheram o
pior terreno para alojar os mortos, pois ali é terra ruim, tem formiga
cabeçuda, carrapichos, macambira e mandacaru. O chão vive cheio de espinhos. No
último jogo entrou uma felpa no meu calcanhar que inflamou e só saiu depois de
quinze dias. Aquilo dói que é uma beleza. Fica latejando a noite inteira. E além
do mais quando tem enterro aquilo ali fica um chororô dos diabos. Por mim está
descartado. Continuei: - Eu penso que o melhor local é ali entre o matadouro e
a zona do meretrício. Todo mundo riu. Continuei. -É o melhor local para o
embate, que pela junção da rua debaixo, com a do rio perto da subestação lá no
final fica uma rua sem saída, assim não precisa parar toda hora, para uma
carroça passar ou algum enterro, não tem vidro nem espinho. Também porque sendo
bem perto do rio o piso é arenoso e não tira o “tampo” da “cabeça” do dedo de
nenhum atleta que ao tentar fazer um gol de “bicuda”. Mas como há discordâncias
vamos ao voto.
Venceu minha ideia. Já
era quase seis horas e fomos saindo um por um. Cada um procurava sua casa. O
sol descia por trás da parede do açude e as sombras já alcançavam outros
limites. Ando mais devagar. A maneira dos felinos. Uma rolinha na copa de um
angico. Deve está se preparando para dormir. Pego o meu estilingue. Miro com
cuidado. Bem no peito. Pá! Um baque surdo. Ela vem caindo batendo nos
troncos. Um dia minha mãe perguntou:
“Porque você mata os pobrezinhos meu filho?” Eu não sei, respondi. Deve ser
essa raiva que tenho dentro de mim. Tem dias que o sol nasce, ali por trás
daquele morro, onde fica a caixa d’água, e eu fico olhando como é que o sol é
tão pontual assim chova ou faça calor ele vem subindo, acordando todas as
criações o galo índio de Dona Jandira é sempre o primeiro a cantar, e desce do
poleiro e as galinhas começam a ciscar e os pintinhos atrás tudo com aquela
alegria de está vivo e comendo aquelas migalhas que ficam no chão e eu tem dia
que nem quero acordar, fica um vazio assim bem no peito e eu fico de lado na
cama olhando tudo com o rabo do olho, e vejo as aranhas todas fazendo as teias
para os bobos dos insetos caírem para serem comidos e nessa terra tudo ou é
presa ou predador e o homem é predador dele mesmo, pois tem hora que acordo com
vontade de morrer ou matar, depois é que vou pensando nas coisas boas que
existe, aí me lembro de Amanda aquela calça apertada deixando ver o vinco bem
no meio das pernas dela um voluminho assim de pastel de queijo, perco a vontade
de morrer. Guardo a rolinha no embornal. Ela está viva e quente. Observo que a
pedra a feriu de raspão. Sinto na palma da mão seu coração bater apressado. Ter
a vida de alguém em nossas mãos nos dá certo poder. Olho em volta. Só silêncio.
Caderno de anotações:
“Quando conto casos, e escolho
palavras de baixo calão, sinto que isso me dá prazer.”
De cima do morro
observo a casa, uma tapera de três cômodos. Vejo o entra e sai. Mainha na
janela. Todas as tardes eu vejo ela se aprontar, como agora, e ficar horas na
frente do espelho, passar batom, pó de arroz e depois colocar uma música no
gravador, e ficar na janela cantando, se fazendo de feliz à espera dos
clientes, nunca entendi uma mulher fazer amor com muitos homens, mas ela se arrumava
todo aquele trabalhão, coloca uma roupa que mostra as carnes dela, que
sinceramente esta cada vez fosca e seca como casca de árvore velha, e depois
vai para a janela e fica sorrindo e cantando como se fosse feliz, mas eu via
muitas vezes discussões aterrorizantes, e aí ela falava mal, se debatia,
chorava, e ficava fumando, o olhar longe, perdido em alguma coisa, esperando
talvez a esperança, que era a última que morre.
Caderno de anotações:
“Há amores de todos os
jeitos.”
Da janela eu vejo um
vulto. É o Nego. Troco a música da vitrola. Como eu fui cair naquela. Naquele
dia eu fui me confessar e o padre, aquele sem vergonha de italiano, quando eu
contei minha vida ele ficou com aquele olho pidão e aí deu pena dele, quando
ele tirou a batina, e me agarrou na sacristia. Eu sei que padre é homem, tem
suas necessidades, mas por azar eu estava nos meus dias férteis. Aí engravidei.
Mas ele me ajuda, manda-me dinheiro, só pede segredo absoluto e eu jurei para
ele e jurei para Deus para que Ele perdoasse esse pecado. Fico sorrindo aqui
para esconder minha tristeza.
Entro calado. O quarto
dela na frente, depois o corredor e o meu. Daqui vejo a cozinha. Algumas panelas
no fogão. O quarto dela tem uma cama de casal, um guarda roupa, e no canto da
janela um oratório cheio de santos. Era força de todo o dia pedindo perdão dos
pecados e se confessando. No meu quarto uma rede, meu conforto que eu quando
deito puxo as pontas para me cobrir e esqueço o mundo lá fora dos predadores e sento-me
seguro ali bem no fundo da rede. Essas coisas são banais, dormir, pesadelos
tristezas, aflições; isso faz parte da vida de toda gente. E temos que acordar
no outro dia.
Caderno de anotações:
“A vida passa à
dispensa de nós.”
Essas coisas mesquinhas
que eu conto, sou impelido a isso, pois elas querem sair de qualquer jeito.
Minha vida, minha infância passou assim tão ao largo de mim, parecia que eu
próprio não vivia. E minha vida amorosa constava duas mulheres. Amanda que eu
fazia de tudo para esquecer, e a vizinha, uma menina miúda, que todos os dias,
pontualmente às seis horas da tarde chegava e enquanto eu lia um gibi, ela
sentava-se perto de mim calada, abria meu calção, enfiava a mão dentro e ficava
manipulando-me. Era um ritual. Não passava disso. Às vezes nos agarrávamos
escondidos por trás das portas mais eram umas ou outras vezes e mesmo assim não
beijávamos. Era tudo em silêncio. As palavras não eram necessárias. Um dia
criei coragem e quando estávamos dentro do guarda roupa perguntei:
-Você me ama?
Ela ficou calada um
tempo e depois respondeu:
-Não! Isso é impossível.
-Por quê?
-Você é inacessível!
Aí eu a interpelei:
-E por que você vem aqui em casa
religiosamente todos os dias a mesma hora e fica fazendo isso, que me constrange
e a você também sobremaneira?
Ela olhou para mim, dentro dos meus olhos e
disse:
-Por que eu necessito.
Depois disso nunca mais
nos falamos. Até o dia em que a família dela mudou-se para longe. E na partida
choramos muito.
Caderno de anotações:
“Às vezes apaixonamos por coisas.”
Junho passou com a
copa, julho choveu e agosto se foi.
Chegou setembro com
alegria da natureza. Alguns ipês floridos nas colinas.
Acordei com a cabeça
doendo. Mainha ficou preocupada por que
quando eu chorava com dor a coisa era séria, pois coisa pequena eu não dava
bola.
-Vamos à farmácia ela falou. Seu Mamede
estava vestido com o jaleco branco. No bolso o nome Farmácia Santa Rita. Ele
olhou para mim levantou a porta do balcão me pôs para dentro e com a mão na
minha cabeça disse sorrindo:
-É a cara suja e lavada dele meu Deus!
Eu tirei a mão da minha
cabeça com um safanão, não gostava dessas intimidades, e perguntei:
-O que tem a minha cara?
Ele não foi o primeiro
e não vai ser o último a dizer isso, mas eu fico puto e mandava todos tomar naquele
lugar. Um dia cheguei para minha mãe e
gritei:
-Quem é o meu pai? Ela desconversou, foi
falando esse povo daqui são todos uns fofoqueiros! Não liga filho!”Dizia minha
mãe vermelha de raiva. Mas um dia, chegando da rua, a ouvi dizer de alguém. Ela
calou-se quando eu entrei. Desconversou, começou a cantar disse que estava
cheia de afazeres e que eu já sabia de toda a história e o que contasse
diferente era mentira. Ainda falei que era tudo besteira. Acrescentei ainda:
-Eu pareço mesmo é com você e com mais
ninguém! Fui comer. Estava varado de fome. Tenho os olhos dela. Quando ela me
pega pelo rosto e fica passando o nariz dela no meu, sinto o cheiro bom dela.
Ela ri da minha vergonha. Chama-me de besta. Pareço com ela em tudo. Também não
tenho com quem parecer mais. Ela disse que meu pai foi para a guerra na Itália
e não voltou. E diz que ele foi um herói. Para mim, isso não tem importância
alguma. Herói! Herói! Herói uma pinóia.
Aí Seu Mamede perguntou-me se eu já havia
estado com alguma mulher. Não entendi.
-Quero saber viu, se você já fez as
coisas, num sabe, com uma mulher.
-Não conto meus segredos para estranhos!
-Não importa ele disse. Venha aqui.
Abaixa o calção. Eu tinha quatorze anos. Já tinha um pouco de penugem. Ele
olhou para meu “pinto” vazando um líquido amarelo e disse sorrindo com aquela
cara enrugada de cavalo:
-Nesse caso meu garoto, é só com injeção!
Olhou para a minha mãe.
-A senhora sabe né, orgulhe-se, pois seu
filho já é homem! E bendita a penicilina! Em uma semana estará tinindo. Entre!
Ele era conhecido por
mão leve, pois a injeção não doía nada, e minha mãe nos seguiu. Ali fedia a álcool, amônia e outros
medicamentos terríveis. Ele colocou a agulha, jogou um jato para cima e veio
para o meu lado.
-Fica firme aí meu rapaz, e pic no meu
braço. Eu só não soltei um palavrão nem sei por que, mas a puta da injeção foi
dolorosa prá caralho. Ninguém tomava sem chorar. Trinquei os dentes na hora. Eu
não era de choro não. Sempre engoli minhas lágrimas. Ainda falou:
-Não precisa pagar Dona Sílvia, fica por
conta!
Eu sabia como ela
acertava essas contas.
Caderno de anotações:
“Além do amor, o sexo
paga conta também!”
-Herói!
Herói! É conversa para boi dormir. Eu preferia um pai covarde e vivo a um herói
morto.
Meu palpite ganhou, o
jogo seria na rua da zona, perto do rio e ficou acertado que na segunda era boa
que a gente fosse preparando o terreno, cortar alguns tufos de mato, limpar as
bostas de vacas, marcarem o campo com cal, a marca dos pênaltis, a grande área,
a pequena, a meia lua, colocar as quatro bandeiras fazer as traves.
Eu vivia com a malícia da vida vivida na rua,
da liberdade do crescimento entre as ervas daninhas e a natural lei da
sobrevivência onde sobrevive o mais forte não se sabe se para o bem ou o mal da
humanidade.
Caderno de anotações:
“A sobrevivência é uma luta diária
com nós mesmo.”
Eu devo falar daquela
doença. Foi um dia quando vinha pela margem do rio. Uma menina lavava roupa. Eu
fiquei olhando. Meu calção subiu.
-Vem cá?
-Vou para o treino!
-Um pouco! Você é tão bonito!
-Não carece!
-Só um pouco!
-Tá bom!
Entrei no rio. Ela me
beijou. Juro que foi bom. Descobri que ela era banguela.
-Como perdeu seus dentes?
-Meu pai, bateu e quebrou! Aí eu fugi de
casa!
-Ah! Não faz mal! Estava nos braços dela.
Eu pegava nela. Nos
seios também. Gosto de pegar logo nas áreas proibidas. Ela beijou-me novamente.
Era bom. Molhado, quente e úmido. Depois eu fui alisando as pernas dela. Aí ela
queria me empurrar dizendo não! Não! Eu
insistindo. Quando consegui chegar com os dedos lá bem no meio das pernas notei
que estava bem molhado aí sem perda de tempo, aproveitando um descuido dela, eu
soquei o dedo. Entrou igual na bezerra. Aí fiquei mais aliviado. Menina furada
era mais fácil. Como ela tinha dado para não sei quantos caras, não merecia
respeito. Aí aproveitei que meu pau tava dura que nem ferro e enfiei todo. Gozei
logo.
Caderno de anotações:
“Não sei por que conto essas
coisas, não interessa a ninguém. Isso interessa só a mim. Isso é segredo. Uso essas
pérfidas anotações para alívio. Quando escrevo um palavrão, uma sacanagem é
como eu atirasse merda no ventilador. Gosto da podridão girando, deixando os
outros inconformados e irados. Quando destilo veneno fico leve. Essas coisas
são detalhes de uma vida pequena, sem amor, sem nada, mas serve como vazante,
como o pus que vasa do tumor. Alivia as dores. É válvula de escape.”
No outro dia senti uma
ardência no canal e veio o diagnóstico. Blenorragia. A penicilina foi um santo remédio.
Chegou o grande dia. O jogo do ano. Era dezembro e as árvores de
natal já brilhavam nas janelas. Passamos na farmácia e tomamos a vitamina. O
entorno do campo estava cheio, as meninas da zona aproveitaram o dia para faturar
mais, e vestiram as roupas curtas. Algumas mulheres torceram o nariz. Tinha
moleque vendendo roletes de cana caiana, balas e doces. Seu Nilson tinha
comprado fogos de três tiros. A taça estava em cima de uma mesinha na beira do
campo e quando entramos todos passaram a mão para dá sorte. O juiz chamou os
capitães no centro do campo e deu instruções. “Quero jogo limpo, entrada
faltosa vai tomar cartão e se insistir vai pro chuveiro mais cedo. Foi feito o
sorteio. Eu escolhi jogar contra o vento, pois do outro lado tinha o sol.
Logo no início do jogo
Birita enfiou uma bola para mim de três dedos e eu dominei com a perna esquerda
e bati de peito do pé. A bola bateu no travessão e voltou quicando no terreno e
saímos comemorando, mas o juiz invalidou dizendo que a bola não entrou.
Reclamamos muito, mas não teve jeito. Seu Nilson gastou um foguete à toa.
Depois quase no final
do jogo teve um pênalti a nosso favor. O goleiro deles quase quebrou Birita ao
meio.
Quando me preparava
para bater ouvi um grito e uma voz conhecida. Era Amanda.
-Faz esse gol para mim menino! Eu acenei
para ela. Não podia perder.
Peguei a pelota e no que colocava a bola na
marca da cal, o goleiro veio ao meu encontra, sabia que era para catimbar, já
estava preparado, ia chutar no canto esquerdo dele, onde ele tinha mais
dificuldade. Foi aí que ele bateu as luvas uma na outra e falou aquilo que me cegou
completamente.
-Seu pai é o padre, aquele italiano!
Caderno de anotações:
“Não devemos confiar nem
em padre.”
Corri para a bola com
raiva e na hora de chutar troquei o canto. Passou rasteiro perto da baliza.
Fora! Alguém gritou. Eu corri no corner onde guardava as minhas coisas, peguei
do canivete e enfiei no sovaco dele. O sangue escorreu. Muita gente gritando
Assassino! Assassino!
Caderno de anotações:
“O problema do homem é a
sobrevivência. E essa luta é diária contra a morte. Uma luta ingrata, pois no
fim ela chegará de um jeito ou de outro. Criei uma casca que me encobre,
deixando-me forte e intocável, e essa por assim dizer é a vida que tenho. Essas
coisas vis e podres é o que tenho de melhor para oferecer. É o meu silêncio,
minha dureza e toda minha cólera e meu desprezo. Nada a mais.”
***
Dez anos se passaram e
estou dentro do ônibus voltando. Já não sou o mesmo. Soube que o padre morreu. Tudo
o que eu queria. Melhor assim.
O ônibus está lotado, é
dia de feira e tem muita coisa no chão do corredor. Legumes, cereais e animais
para serem vendido na feira livre. Olho
pela janela os locais que eu vivi. Tudo passa lentamente. Tudo do mesmo jeito:
O colégio, a praça, a diferença é o tamanho reduzido. Até a torre da igreja
diminuíra. Parecem mais desbotados, gastos, deploráveis e chego a pensar, Urra!
Como consegui viver nessa pocilga? Os olhos agora são outros. As maiorias das
crianças vêem colorido. Eu cinza.
Os pneus rangem descendo a ladeira e vejo a
pequena cidade por trás da poeira e minha garganta quase tranca e meus olhos
marejam. Olho as planícies em volta. Que fim levou meus amigos?
A vontade é de
procurá-los, abraçá-los, saber das novidades e olho em volta, talvez algum
deles por ali, mas a rua está deserta, só um moleque querendo carregar as malas
por um trocado e o movimento dos feirantes. Coloco os óculos escuros e saio em
direção à rua do rio, e lembrei-me de Amanda beijando na boca do cara, ele com
as mãos nas nádegas dela e ela alisando o rosto dele com as unhas pintadas e de
olhos fechados.
Ando mais devagar. A
maneira dos felinos. Sempre desconfiado. O sol vai caindo. As sombras se
alongam pelo chão. Eu e a mala. Tiro a jaqueta. Lugar quente dos diabos! Sou
uma sombra alongada a meus pés.
Naquele dia, depois da
missa e de ver aquela cena, passava por aqui mesmo apressado e vi uma rolinha
na copa de um angico. Peguei o estilingue e mirei com cuidado. Pá! Um baque
surdo. Ela veio caindo batendo nos troncos. Minha mãe perguntou depois: “Porque você mata
os pobrezinhos meu filho?” Eu não sei, respondi. Deve ser essa raiva que tenho
dentro de mim. Ela me olha. Tem dias que o sol nasce, ali por trás daquele
morro, onde fica a caixa d’água, e eu fico olhando como é que o sol é tão
pontual assim chova ou faça calor ele vem subindo, acordando todas as criações
o galo índio de Dona Jandira é sempre o primeiro a cantar, e desce do poleiro e
as galinhas começam a ciscar e os pintinhos atrás tudo com aquela alegria de
está vivo e comendo aquelas migalhas que ficam no chão e eu tem dia que nem
quero acordar, fica um vazio assim bem no peito e eu fico de lado na cama
olhando tudo com o rabo do olho, e vejo as aranhas todas fazendo as teias para
os pequenos insetos caírem e serem comidos e nessa terra tudo ou é presa ou
predador e o homem é predador dele mesmo, pois tem hora que acordo com vontade
de morrer ou matar depois é que vou pensando nas coisas boas que existem, aí lembrava
Amanda aquela calça apertada deixando ver o vinco bem no meio das pernas dela,
um volume assim de pastel de queijo, aí já não pensava em morrer. Ainda
disse que a raiva era do meu pai que não conhecia. Porque isso de herói eu não
engolia. Era conversa para boi dormir.
-Eu preferia um pai
covarde, mas vivo.
Coloquei a rolinha no
embornal. Ela ainda estava quente. Observei que a pedra a ferira de raspão.
Senti na palma da mão seu coração bater apressado, a vida de algo em nossas
mãos nos dá certo poder. Sentei no tronco do quintal e a peguei na mão. Os
olhinhos pequeninos. Torci o pescoço devagar, ela contorceu-se esticou as
canelas e morreu.
Caderno de anotações:
“A morte é transparente. Quando
ela chega damos contorções iguais ao gozo.”
Olho em volta. Só
silêncio. Sei que depois daquela descida íngreme, vem a curva da aroeira e
depois o rio. Cheguei a casa.
-Mainha! Maínha!
Ela reconhece a voz. Vem
correndo.
Como ficou diferente. Pele
e osso. As carnes flácidas. Ajeita o cabelo.
-Meu Deus do céu! O que foi feito de meu
filho? Um homem! Esses anos todos sem notícias! Pensei mil coisas até que você
tinha morrido.
-Estou aqui em carne e osso.
Pega minhas coisas da
mão, uma jaqueta e a mala e leva ao quarto.
-Mas o que importa é que você está de
volta e lindo de morrer. Puxa-me para o claro. Deixa-me ver! Passa as mãos nos
meus cabelos. Fico sério.
-E a turma como está?
-Aconteceu tanta coisa... Depois te
conto.
-Advinha quem está morando comigo?
-Não tenho a menor ideia!
Ela vai pelo corredor,
levanta o pano que divide os cômodos e grita lá para dentro.
-Vem cá menina, vem ver quem apareceu! E
olha como está lindo!
Eu espero em pé, meio
de lado. Surpreendo-me a novidade.
Ganhou mais corpo. Mais
seios. Mais cabelo. As unhas ainda vermelhas um pouco descascadas. Só os olhos
diferentes. Já não sorriem mais. –
-Amanda?
-Ah! Estou toda descabelada, desarrumada...
Se eu soubesse...
Caderno de anotações:
“Uns são presas, outros são
predadores.”
Fim
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