Vermelho no branco
Adorava o domingo. Achava um dia calmo, ameno,
verde e brilhante. Colocou tênis, short de malha preto, fone de ouvidos, as
músicas que gostava. Alongou-se demorado na calçada. Olhos atentos na janela.
Joga um beijo para o marido. Logo após iniciou a corrida de todos os dias.
O dia branco
enfumaçado de neblina. Uma imagem embaçada a sua frente. A igrejinha, a escola,
o mercado, os clubes campestres, cercas e pastos verdejantes e o ar puro do
campo.
Passos firme,
som de cascalho sob os pés, a estrada marrom e reta e livre e alegre. O sangue
quente, coração em compassos. O conforto vem
no movimento dos membros, da ginástica. As pernas já não doem, o corpo
quente agora assente o prazer.
De vez em
quando um gole de água. Mesmo frio o tempo, gotas de suor descem-lhe a fronte. Calculou uns 10 km. Já é hora de voltar. Foi quando recebeu a carga. Desequilibrou-se
e por sorte caiu sobre o gramado. Teve intenção de xingar. Não houve tempo. A cena escura.
*
Computador,
mesa com quadros de família em pose, estante, cadeiras, poltrona, escrivão,
papéis, carimbos, relógio, piso gasto, vozes longe, risadas, batidas de portas,
telefones tocando, sirene, o delegado. Papel na mão.
Instituto médico legal
Secretaria de
segurança pública do estado de ********
Rua*************número*****************
Conjunção carnal
Protocolo
número***/*****
Por solicitação do
delegado********da delegacia****cidade******
Examino Carla de
Almeida Sobrinho, 23 anos, casada, atleta e professora de academia, residente
na rua ****** número *****Informa que na manha desse domingo, do corrente mês,
por volta de seis horas mais ou menos, saiu para o Cooper de todos os dias, nas
proximidades de sua residência, que foi empurrada para um matagal e
violentada. Ela informa que depois que
caiu ao solo, não se lembra de mais nada.
Ao exame:
Ausência de lesões
corporais externas. Ao exame da genitália externa: Compatível com
desenvolvimento normal. Presença de secreção espessa esbranquiçada no intróito
vaginal (coletada amostra), rupturas himenais antigas, ferida contusa pequena
com sangramento discreto na comissura posterior dos lábios. Coletado secreção
vaginal.
1. Se a
paciente é virgem? Não.
2. Se
há vestígios de desvirginamento recente? Não
3. Se
há outros vestígios de outras conjunções carnais recentes? Sim.
Cidade data *****
Médico
legista CRM **********
“Senhora
Carla, a senhora desconfia de alguém?”.
O piso gasto, cerâmica encardida muita
gente por ali, anos após anos. O ponteiro de relógio em movimento.
“N Não!” Respondeu.
“Sim! Pense
bem, uma pessoa qualquer, um vizinho, que te olha enviesado, algum aluno, algum
serviço que contratou recente, qualquer pessoa... nada pode ser descartado”.
Com esse corpão vai
ser sempre perseguida! Puta que pariu! Vai ser gostosa assim, lá em casa!
O visinho da frente
sempre me olha. Toda mulher sabe quando é desejada! Mas é apenas um estudante.
Ela disse:
“Não!
Ninguém!”.
“... você
costuma sair com essas roupas coladas... assim quase... que mostrando o corpo
todo...Sabe como que é!”.
Mostrando tudo,
esse volume! Parece um capô de fusca!
“Nada mais
natural! Afinal ela é jovem, esportista e estava se exercitando...”. Disse o
marido, afagando-lhe os cabelos.
“Sabe como
é... Os homens são canalhas! Não pode ver um corpo bonito... É de sua natureza!”.
Casar com mulher
bonita assim é pedir para ser corno!
“Mas
detetive, olhar tudo bem, agora violentar! Violentar! Não existe desculpa!”,
Gritou o marido.
“Calma!
Essas perguntas são de praxe!”.
“Não! Detetive! Não desconfio de ninguém!”.
Grita a mulher. “Quero ir para casa!”.
“Eu sei que
é difícil! A senhora passou por um trauma! Mas tente lembrar-se de algo!
Qualquer coisa...”
Deu mole! Mulher
assim, não pode andar por aí sozinha!
O detetive traz
outro catálogo. Fotos e mais fotos eram-lhe mostrada. Não conseguia reconhecer.
Todas as fotos de personagens do submundo do crime.
Os homens em volta tinha um ar tenso, como um elástico
esticado, quando na presença de uma mulher excitante.
“Não! Não
reconheço ninguém!”.
“A mulher
não tem culpa, por está vestida de uma forma ou de outra! Isso é um absurdo!”.
Diz o marido.
Realmente a mulher era
de tirar o fôlego. Pernas torneadas, cabelos sedosos, músculos tesos e
divididos.
“Pode não
ser, também penso assim, embora chame mais a atenção dos homens em geral! Essas
roupas de academia, esses shorts minúsculos...”.
Muito gostosa!
*
No
psiquiatra uma semana depois.
“Fale o que
quiser! Ou não!”
“Acordei com
meu marido beijando-me. Ele é um amor. Na manhã amamo-nos demoradamente. Naquele
dia ele trouxe café na cama... Ainda disse que o tempo estava ruim para sair...
Não lhe dei ouvidos...”
Choro.
“Não se
culpe! Nunca se pode desconfiar dessas coisas...”.
Relaxa filha! Com esse
corpanzil, tudo isso, até eu...
“Tenho
pesadelo todo dia”.
“Conte-me!”.
“Tudo começa eu perdida, correndo numa rua
escura. Escura e tortuosa, antigas
lembranças. Vozes me perseguem. Tento correr mais rápido, mas minhas pernas não
ajudam. Droga! Droga! Eu grito. Depois começo a chorar. Vejo um rosto. Aí vem
um vazio, uma dor no peito e eu acordo assustada e chorando...”. Soluços.
“Reconhece a pessoa?”.
“Não!”
“Continue!
Solte essa raiva que tem dentro de você...”.
Ela é maravilhosa!
Daria tudo para tê-la na cama! Até aqui sobre o divã...
“Agora não
consigo mais correr. Minhas pernas ficam bambas... Não tenho vontade para mais
nada. Tenho muito ódio em mim. Ira mesmo”.
“É normal
para os traumatizados... Fale-me de vocês dois: marido e mulher”.
“Somos um
casal normal, nos amamos...”.
Gostamos de
experimentar coisas. Aquela manhã mesmo nós estávamos brincando, ele era um
estranho, que entrava em casa, pegava-me a força, batia em mim... Puxava meus
cabelos... E por último me violentava.
“Fetiches,
conte-me algum?”.
Quem sabe não tem com
um psiquiatra!
Brincamos de médico. Exame ginecológico. Ele
calça as luvas, eu deito na maca para o exame, ele coloca lubrificantes nos
dedos, me examina detalhadamente, toca no clitóris, nos grandes e pequenos
lábios, depois pergunto-lhe se vai me comer, eu digo que meu marido está na
sala de espera e ele me come ali mesmo!
“Coisas de
casal! Não vejo importância nisso!”.
Continuou
pensando:
Outra noite nós
estávamos fazendo amor, e a janela de nosso quarto fica de frente para a rua. O
vizinho por trás das cortinas. Aí meu
marido sorriu e me pediu: Vai ali à frente, mostra a bunda para quem quiser ver.
Eu fui. Andei na frente da janela. Meu marido ficou super excitado. Eu também.
“Somos como espelhos... Não quer mais falar?”.
Vem me comer... Estou pronta... Bem
molhadinha! Eu repetia o que meu marido pedia. Ele cada vez mais excitado.
“Refletimos
nossos pensamentos...”.
Agora abre as pernas!
Isso! Agora oferece! Como uma mercadoria. Que delícia ele dizia, enquanto
gozava. Eu gostava de me mostrar também. Éramos conscientes disso.
“Ontem
tentamos, mas não rolou... Eu fico travada...”.
“É assim
mesmo! Está em choque!”
“Agora sinto
nojo!”.
Um dia nós estávamos
nas preliminares e ele viu o vizinho, na janela, por trás da cortina. Então me
puxou para a varanda e fizemos sexo ali mesmo. Vimo-lo se masturbando. Gozamos
juntos. Os três. Foi muito bom.
Queria
perguntar se aquilo era normal, mas não, não teve coragem.
“Isso é
normal... Vou passar esse calmante, tente dormir, descansar...”.
“Fico com
raiva, pois ele tenta, todo carinhoso, me dá forças... Mas eu estou travada. Não
relaxo”.
“Continue...”.
“Um mês
depois conseguimos. Foi rápido. Nossas relações doem na alma, faço para
agradá-lo”.
*
O delegado,
na mesma semana.
-Esse livreto... Achamos com o
investigado, Veja!
145,00 Energia
32,89 Água
400,00 Aluguel
132,00 Tel
Não esquecer de pagar essas contas.
Uma hora ou outra eles te darão o troco. Mesmo que seja no
final. Não existe perdão, somente um esquecimento para ser usado no tempo
certo, vindouro.
Nada é melhor do que está num lugar que ninguém te conheça.
O início da história é o engodo. É onde o escritor usa toda
a sua artimanha para ludibriar e talvez encantar o leitor. Ele parte de uma
frase curta e geral, depois vai desenvolvendo a história a sua maneira,
cuidando de sua presa, mantendo-o atento.
Requerer cópia de notificação de multa.
Estacionar em local proibido rua******na altura do número
1023.
O cara vai até a geladeira, pega um doce de goiabada e volta
mastigando com a boca aberta. Abertura idiota para um conto.
Tirar a vida de quem sofre, é aliviá-lo do agonia.
Voltar a lê : O pequeno príncipe, observando os detalhes,
como o autor criou tal história, o que ele queria mostrar...
Também as viagens de Gúliver: Observar como foi feito cada
passagem.
José Lins do Rego,Machado de Assis: Como ele conta a
história, se na primeira ou terceira pessoa.
Rubem Fonseca: O que ele pretende com a violência.
Obs.: O pai colecionador de moedas, abandonado pela mulher.
Criar perfil físico e psicológico.
A principal dúvida é a sua origem, de onde tirar as imagens.
Quer conhecer uma pessoa? Conheça suas manias.
Nossa pele é como as cores. Ao misturá-las surgem outras.
Mais claras ou mais escuras. Branco com negro, mulato. Branco com índio,
cafuzo.
O sangue é vermelho. Tipo A,B,AB, e O.
O sentimento é o amor. Amor + amor=Amor
Amor+indiferença=Ódio=Eu
Quando leio uma história, sempre tento mudar o final, do meu
modo. Geralmente fica pior.
Comprar pão, manteiga e creolina. Veneno para rato também.
Não esquecer, as contas atrasadas!
Amor é sentimento sublime. Saudade é oca. Indiferença é
branco.
Comprar peito de frango e pão de forma. Queijo e mortadela
Ligar para casa final do mês. Não esquecer aniversário da
irmã.
A eternidade não existe. Um dia o planeta desaparecerá e o
universo não saberá que nós existimos (José Saramago). Prá pensar.
saiu para
correr. Seis em ponto. Calcular o tempo. Cronometrar tudo.
O planejamento é essencial na construção do conto, tanto
quanto na de um edifício. Aliás, não acredito em nada sem planejamento.
“Aquele que combate monstros deve tomar cuidado para que ele
mesmo não se torne um. E se olhar muito tempo para o abismo, o abismo te encara
de volta” (Nietzsche).
O abismo está sempre próximo.
O itinerário é favorável. Longe da cidade e
deserto. O tempo está correto. Sexta feira, pouco visibilidade.
É preciso ter um caos dentro de si para dá à luz uma estrela
cintilante.
El mundo real es mucho más pequeño que el mundo de La
imaginación. Verdade!
Comprar halotano. Copiar a bula. Modo de uso.
“Apenas se deveriam ler os livros que nos picam e que nos
mordam. Se o livro que lemos não nos desperta como um murro no crânio para que
lê-los? “(Kafka). Verdade.
Quem mora em metrópoles sonho com lugares onde possa pisar na terra ou areia, encher a cara de álcool,
fugir da realidade e olhar o horizonte aberto.
Quem mora na roça sonha com a metrópole, com o movimento com
arranha céus.
Hoje matei um frango. Fui frio, tirei algumas penas e cortei
o pescoço. O sangue jorrou longe. A morte quando chega à carne vibra em último
abalo muscular e sai algo invisível. Sobra o corpo. Se ficar com dó demora a
morrer. Embora eu não tenha ficado com dó demorou muito.
Sabemos pouco de Deus ou quase nada. Mas o que ele criou é
grandioso. Agora o homem é uma obscenidade.
Quando te disserem que vais ser feliz é uma farsa. Quando em
troca de dinheiro te prometem o paraíso é farsa.
O sexo é físico o amor é emocional.
O homem precisa tirar a máscara que criou com a hipocrisia,
para mostrar seu verdadeiro rosto.
Uma parafernália de frases soltas e sem nexo. Não me diz nada!
*
Duas semanas
depois, pela manha:
-
Ele é enfermeiro na santa casa... Grampeamos seu telefone, em conversa com um
mecânico. Ouça!
“Trocar, é
isso...Embreagem...agora tô enrolado... hã hã
a embreagem ... o volante também...estragou também...a marcha
engastaiou...fudeu tudo...é foda né... Pode trocar?”
“Sim Sim
pode”.
“E essa
sujeira, parece que carregou porco?”
“hã hã lava
tudo também. Lavagem completa...Certo. Pago a diferença”. Risada. Algo
inaudível.
“Não! Gargalhada. Coisa minha! Fica esperto. Não
se mete!”
“Tem até uma
calcinha aqui no chão do carro. Gargalhada. Vou guardá-la aqui!”
“Não! Minha noiva pode descobrir! Queima ou
joga fora falou! Queima! Dá um sumiço nela!”
-Não quero ouvir mais...
-É necessário! Apreendemos o carro
dele. Tinha um vidro de Halotano pela metade... Lenços úmidos...
-E para que serve?
-Líquido anestésico inalante. Com
certeza ele usou para você dormir e ser levada para qualquer lugar com
facilidade. Encontramos também...
essa
calcinha!
Sobre a mesa. Preta e transparente.
Seu corpo, esse corpo maravilhoso, ficou por horas a mercê
do cara!
-Não quero ouvir mais nada!
*
Numa oficina uma hora
antes:
Cheiro de
óleo, piso escuro, carros capôs abertos, uniformes azuis, risadas, música,
ventiladores girando, copos plásticos, sala de TV, revistas sobre a mesa, mãos
sujas de graxa, pôster de mulher pelada, exposição de peças, eixos, canos,
pneus, baterias, borrachas...
Finalmente o cara
chegou. Atlético, bonito até. Loiro. Cabelo curto. Um playboy. Falando ao
telefone, rindo, um bon-vivant. Pensei no amante de Madame Bovary. Levanto-me
da poltrona devagar.
Mostro o distintivo com raiva, talvez ciúme...
-Está preso, você tem o direito a um
telefonema para seu advogado. Tem o direito de ficar calado. Repeti isso
maquinalmente.
-Mãos para trás.
O cara ficou
pálido. Quando são pegos viram franguinhos.
-Hei! Que é isso? Qual a acusação?
Algemo-o. Clic. Empurro-o para a viatura.
-Na delegacia explico, gritei.
*
A noite:
“Senhora
Carla nessa sala, tem cinco indivíduos e entre eles o investigado. A senhora
vai vê-los de frente através de um vidro. Olhe bem, pois depende do
reconhecimento para o cara se tornar réu... E não se preocupe. Eles não vêem a
senhora.
Um sinal e a
sala ilumina-se.
O vizinho, ele estava ali, mas
como? Um cara bonito, jovem, normal... Será? Será?
“Não tenha pressa senhora!”.
“Não! Não reconheço ninguém!”.
“Mas senhora, um deles, temos quase certeza, temos todas as
evidências, um deles é o estuprador! Na santa casa onde ele trabalha há vários
relatos de pacientes...”
“Não reconheço! Não reconheço! Deixem-me em paz!
*
Segunda feira, atual:
Em casa. O
telefone tocando. Insistente. Uma, duas, três e na quarta atendo.
-Alô!
- Carla?
-Ela mesma! Quem fala, por favor?
Eu já esperava. Sabia que ele ia ligar.
-Seu vizinho de frente! Eu liguei
para pedir desculpa... Desde que aconteceu aquilo fica remoendo por dentro...
Minha cabeça anda quase a explodir! Tenho vertigens!
O que sentiu Românovitch Raskólnikov, depois que matou a velha em Crime e castigo. A consciência.
-Mas você acha que é assim! Só
desculpa e acabou?
-Eu sei que errei... Mas fui levado
pelo desejo... Vocês me enlouqueceram... Desculpa vai? Eu te amo!
Silêncio.
Por mais de cinco segundos.
-Então faz assim! Vem aqui em casa.
Quero desculpa de joelhos! Só se for de joelhos...
-Eu peço... Eu peço! Mas... E seu marido?
-Não se preocupe! Ele saiu e só
volta amanhã! Foi na imobiliária. Vamos vender a casa. Vamos mudar de cidade, de ares...Estou muita abalada...
Coloca o
telefone no gancho. Espera na
sala.
Não demora ele entra. Tomou banho. Está perfumado. Reconheço o cheiro. Joga-se no tapete. De joelhos. Aproximo. Ele a pega-me pela cintura. Afunda o rosto em meu ventre, entre as
pernas. Desculpa! Desculpa! Desculpa! Eu não vivo sem você! Eu te amos! A
maciez da saia. Sente o volume, a pele macia. Olhos fechados.
Se ela aceitar, vamos ser amantes, gozaremos uma vida
prazerosa juntos, ela tão gostosa... Hum! Que cheiro saboroso emana dela...
Linda! Linda!
Afago seus cabelos. Crespos. Ele relaxa. Suspira aliviado.
Um
estampido. Um tiro só. Um buraco.
No centro da
testa. Empurro-o com nojo.
Um esguicho vermelho no tapete branco.
Está desculpado!
E espera, absorta.
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