Longe dos olhos de Deus
E ele disse-lhe: Porque temeis, homens de pouca fé? Então, levantando-se repreendeu os ventos e o mar, e seguiu-se uma grande bonança.
Primeira:
Cruzamento da Rua Aristides Fagueiro com a
esquina da morte. O movimento intenso de carros e motos. Eu a vi por instante.
Ela estava feliz. Via-se claramente em
seus olhos. Uma moça alta, olhos claros, bem bonita, com seus vinte anos.
Quando
atravessava a rua um carro azul veio em disparada e pegou-a em cheio. Fez um
barulho surdo.
Morreu na hora.
O trânsito
todo parou. Só o atropelador não. Eu corri para vê-la. Aliás, todo mundo.
Virgínia era
seu nome, agora todo mundo sabia. Pois ela segurava nas mãos firmes e bem
pintadas, esmalte vermelho, seu convite de casamento escrito a mão:
“Lindo
é quando alguém escolhe pousar ao teu lado, podendo voar. Podendo encontrar até
outros ninhos, outros caminhos, escolhe ficar.
Parece
mentira... Resolvemos nos casar.
Dizem
que é loucura... Mas esse é o privilégio de amar”
Um convite
simples. Desenhos de pássaros nas
bordas.
Embaixo o
nome dos noivos:
Virgínia
& Leandro
Segunda:
Meia noite,
hora das feras saírem. Numa rua, um vulto trabalha silencioso no quintal. Com as
mãos faz um buraco. Não tão fundo nem raso demais. A terra é escura e molhada
com a neblina. Isso dificulta sobremaneira o trabalho do homem. Sim é um homem.
Anda em pé e usa um chapéu de palha. Observa o buraco. Mede com um dos braços.
Quando se dá por satisfeito levanta-se e entra na casa.
Volta com
algo nos braços. Parece uma boneca. Uma mulher o acompanha. Colocam no fundo e
vão jogando a terra. Estão enterrando. Sobrou muita terra. A mulher levanta-se
e pisa socando a terra. Um pé de criança ainda aparece. A mulher discute com o
homem. Depois coloca uma pedra em cima.
Vão dormir.
De madrugada
como fazia todos os dias, o cão do vizinho entrava pelo buraco da cerca e
virava a lata para comer. Nesse dia, sentiu algum cheiro diferente no ar. Foi
até a pedra, levantou as orelhas, e começou a cavar. Cada vez mais perto,
rodeava a pedra rapidamente. Enfim pega o embrulho pelos dentes e atravessa
novamente o buraco da cerca. Nesse ínterim o vizinho já havia pegado a carroça
e já saia para o trabalho de catar papelão, e latinhas, quando viu o cachorro,
chegando.
Toma-lhe o
embrulho e se assusta com o que vê dentro. Uma criança recém nascida. Escuta o
peito, observa a barriga, tudo imóvel, quando observa triste que já se encontra
morta.
Coloca-a
sobre a mesa, e liga para a polícia. Isso já era manhã de domingo. Às dez horas
a rádio patrulha chega. A criança ainda deitada sobre a mesa enrolada em sacos
plásticos.
O homem
explicava para o policial do rádio que já ia sair para trabalhar, quando viu
seu cachorro latindo. Estranhei, disse. Quando vi essa maldade. Os policiais e
o homem vão até o buraco da cerca, e vê os vestígios no quintal do vizinho.
-Quem mora
aí, questiona o policial.
-Um casal.
Uma moça dos seus dezessete anos e um cara mais velho.
O policial
tira a arma do coldre e grita:
-Polícia!
Saiam com as mãos na cabeça.
O casal com
sono pesado ouve algo, e se desvencilha um do outro. Escuta gritando lá fora
agora mais alto:
-polícia!
Na delegacia
ela explica:
-Minha
família não queria nosso namoro, por que ele é viciado, aí resolvi...
-Mas é sua
filha... e era linda! Ainda o delegado falou.
-Agora esta
feito, acabou! Disse ela chorando. Agora tenho que pagar.
Terceira:
Em um bar.
Numa mesa um casal briga:
-Eu sei que
vou sofrer! Ainda tenho muito carinho
por ti, mas infelizmente não dá mais, chega de ser capacho.
O homem toma um
gole. A mulher olha nos seus olhos:
-Você jura!
Terá coragem?
Falava isso por que todo mundo sabia que ele era “arriado os
quatro pneus por ela”.
-Verdade!
Isso é um ponto final!
Joga uma
nota em cima da mesa, diz: fica com o
troco, e sai.
A mulher
fica sem ação.
Chegando a
casa a mulher estampa nas redes sociais:
Solteiríssima.
E mais adiante. Feliz e determinada.
No outro
dia, ela acordou cedo, foi ao posto de saúde e pegou o medicamento que fazia
uso diário: clonazepam.
Depois foi a imobiliária e alugou um apartamento a duas quadras do ex.
E a tarde
ligou para ele nesses termos:
-Estou
fazendo um churrasco aqui em casa, e logo me lembrei de você. Por que não pensei. Você gosta tanto de
churrasco... Podemos ser amigos ou não?
Do outro
lado da linha Arnaldo sem saber o que responder acompanhava toda a conversa de
Adelaide com o seu inequívoco arrã, arrã.
Ela dizia:
-Convidei
também um casal de amigos, é bom para você se enturmar. Agora solteiro né?
Arnaldo
surpreso concordou, afinal ainda gostava muito dela, e talvez sobrasse, no
final da festa, restos de carinhos.
Quando
chegou o samba já rolava, a carne na brasa e a cerveja gelada.
Adelaide
vestia um short curto, e o casal dançava.
Ela prepara
uma bebida para ele. Acrescenta o medicamento. Em dez minutos ele estava
desacordado. Ela pega uma marreta de construção e bate-lhe forte na nuca, que o
crânio se esfacela.
Depois com a
ajuda do casal de amigos enrolam num plástico escuro e levam para desovar
longe.
O lugar era
ermo. Só uma empresa de reciclagem. Jogam o embrulho na vereda e tocam fogo.
Quarta:
José
levantou cedo. “Tenho que resolver isso meu Deus, estou acabando minha vida nas
drogas”.
Caminhou por
quilômetros até a boca. Estava fissurado. Pediu fiado. O chefe falou para ele
que já tava por aqui com ele, e que ele já devia muito e que era melhor pagar o
que devia primeiro.
Ele falou
que esperasse mais um pouco, que o pai era aposentado, ganhava pouco e quase não
dava para segurar seu vício. O chefe apontou a arma para o seu peito.
-Leva esse
cabra daqui! Dá um fim nele!
Arrastaram
José até um beco e deram um tiro no meio da testa.
Nesse
momento o pai dele já o procurava na vizinhança, quando alguém gritou:
-Seu Pedro! ,
encontraram agora um presunto, lá na invasão. Parece muito com o filho do
senhor!
Chegando ao
local o velho reconheceu o filho e acendeu uma vela. A cabeça separada do corpo. O pai lamentou o ocorrido
e disse que tinha pedido para o filho parar com as drogas. “Infelizmente aconteceu isso”, comentou o pai
da vítima.
Segundo
o delegado do caso, o fato de estar com as mãos amarradas pode indicar que José
tenha sido morto em outro local e levado para ali apenas como uma forma de “se
desfazer do corpo”. Completou:
-Deve ser ajuste de contas e como
sabemos, nada funciona sem dinheiro, nem igreja.
Quinta:
Zé
empurrou a porta e entrou. Casa simples. Um barraco. As mulheres o esperavam
sentado na sala. Sim ele tinha duas mulheres, em convívio pacífico: A legítima,
que a chamava de Branquela e a amante, baixa e gorda.
Ao seu encontro:
-E aí
Zé, vendeu todas!
-Tudinho!
Veja! Retirou o pano que cobria a cesta.
-Ué
Zé, mas não é que a diaba tem uma carne boa!
-É
mesmo! E a menina como tá?
- Lá
no quintal brincando, até comeu também!
-Não
brinca! E é, é?
-Pois!
Todos
conheciam Zé da coxinha naquelas redondezas. Todas as manhãs, passava gritando,
e a molecada repetia: É de gato seu Zé? Ele
xingava com palavrões, depois falava com seu sotaque característico:
-É não
miseráveis! E replicava: - É de frangoooo! seus filhos da puta!
Mas
verdade seja dita. Todos gostavam das coxinhas. Dizia-se delas que eram bem
preparadas, ótimo tempero, com bastante carne, macia e com gosto indescritível.
Era grande a freguesia.
-Vai
ao quintal. Vê a menina. Entra, olha o
fogão. Um osso, comprido de aparência de uma tíbia. O pega e fica roendo, as
partes que não alcança com os dentes cutuca com os dedos.
Com a
cara cheia de gordura pergunta para as mulheres se tinha acabado.
Branquela
coça a cabeça e diz, olhando para o quintal:
-Logo
temos que buscar mais!
A
gorda sentada no tamborete.
-Essa
é a mulher, é? Zé solta o osso:
-É! O
homem deu para a semana toda!
Vai
até a sala e coloca um cd. Fazem um tipo de pantomima, pegam um litro de
cachaça e vão beber.
Acordaram
com a polícia arrombando a porta.
Só uma
pessoa na comunidade não gostava dos salgados. Esta pessoa agora abanava um
jornal na cara do marido que lia, entretido a página de esporte: “Oh! Veja isso
homem! Leia aqui! Empurrando o jornal para o marido. Ele deixa os esportes de
lado e lê as notícias policiais. “Presa família de canibal”. Ela continua: “Esse
sujeito aqui, que diz pertencer à seita “alvorecer”, e que mata as pessoas para
saciar a própria fome, não é nosso vizinho, o vendedor de salgadinhos?
Veja o
que a policia diz dele: “Ele mata, descarna as vítimas, guarda em freezer e vai
comendo no dia a dia. Com o resto faz salgadinhos para vender a freguesia”.
O marido olha com náusea.
A mulher ainda diz: “Parece
ficção, mas esta aqui ó, todos os dias nas páginas policiais”.
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