A
Criação
Barbearia do centro. Antro perfeito de homens
de toda espécie de barbas e idéias.
Um homem com um jornal na mão chama a
atenção dos presentes para um fato, escrito ao pé da página de um jornal de
terceira categoria. Quando todos estão atentos ele lê a manchete:
“Marido leva mulher à delegacia,
desconfiado de traição, e o elemento de prova é um velho papagaio”.
Todos caem as gargalhadas. Apenas um
manteve-se quieto e com a navalha na cara do freguês. Depois falou
pausadamente:
-Esse caso é meu!
-Não acredito, galhofaram todos, pois
sabiam que o barbeiro Cici era exímio contador de histórias.
-Mas conte! Estamos todos ao seu
dispor. Ainda mais eu com essa navalha na cara, disse o homem sentado em sua
cadeira.
Cici espalhou a espuma, amolou a
navalha, e segurando o nariz do freguês foi raspando cuidadosamente,
respeitando as verrugas e outros acidentes geográficos que havia naquela cara.
Todo final
de ano, por uma semana, Maria Genoveva visitava a mãe. Essas visitas, nada mais saudáveis para o
casal, pois cada um ia buscar energia perdida, com os seus. Eram encontros
memoráveis que ambos, eu e ela voltávamos com os olhos brilhando, e que nos
dava força para a rotina diária. Esse ano como fiquei órfão resolvi
acompanhá-la. Pegamos a estrada.
Devo
apresentar-me: Meu nome é Moacir, mais conhecido por Cici. Fui corretor de imóveis há quarenta anos, sem
dúvidas, aprendi a maquiar situações, para que tudo pegue um frescor, a fim de
que seduza compradores e inquilinos. Faz parte.
Depois de aposentado montei essa barbearia. Continuo melhorando a cara
de muitos brutamontes. Toda profissão tem disso. Os escritores são mestres.
Pois bem.
Nosso
relacionamento era estável. Uma discussão a cada nove meses, nada imperdoável.
Há sempre as implicâncias, por exemplo. Quando íamos tirar fotos ela não pedia
para dizer o famoso xis e sim para que eu murchasse a barriga. Não fazia o que
ela pedia e mais, tornava-a saliente para importuná-la. Veja só, essa barriga
que gastei bastante para tê-la.
Em fim fui
visitar a sogra pela primeira vez.
A casa era um velho bangalô no meio de uma
rua comprida. A principal da cidade. Por ali escoava tudo para fora e em
direção ao centro.
Eu também
tinha criado as minhas quizilas: Dizia para ela, o short está curto, o decote
avantajado, a voz está alta e estridente.
Acompanhei-a
subir com as malas, pela longa
escadaria. Observo que mesmo com quarenta anos ela estava em forma. Um traseiro
de respeito.
Quando
atingimos o topo, suspirei, belo sobrado e enquanto largava a mala no
assoalho, cheguei a pensar, “O que a sogra pensará a meu respeito?”.
“Ora! Deve
pensar o melhor possível!”. Afinal eu
mantenho a filha dela muito bem, bela, pele igual bunda de nenê e tão jovial. “Jovial
até demais, pelo jeito que subiu a longa escadaria de um fôlego só”.
Chego bufando no último degrau.
A sogra veio
nos receber à porta, com um abraço acalorado e vi com esses olhos azuis que a
terra há de comer, olhar-me de cima a baixo. Depois de desfazer-se dos abraços,
sorriu de viés e pareceu falar algo do tipo “ Eis o pulha”, depois foi batendo
o chinelinho no piso verde de mármore, abriu a janela para a entrada da brisa e ficou
uns segundos olhando para fora.
Talvez
deduzindo o motivo de minha presença, já que Genoveva não teve tempo de
avisá-la. Cheguei do trabalho e disse sem meias palavras:
- Vou com
você esse ano!
Agora vendo
essa cena, outra me veio à mente. Lembro-me que Genoveva fez uma cara de
surpresa, abrindo a boca, gaguejou um pouco, mas logo os olhos brilharam,
talvez de contentamento e me abraçou longamente.
Conto tudo
isso em detalhes, as nuances de olhares, frases não ditas, para que a cena que
vem daqui a pouco não os pegue desprevenidos como eu fui pego.
Acumula a espuma num papel.
A janela
dava para uma varanda comprida, ramos de um flamboyant entrava, pequenos
pássaros vinham cantar nos galhos e
sobre o parapeito descansava uma trepadeira chorona. “Pensei logo comigo,”
delicioso lugar para se ler um bom livro.
A sogra chamou-nos a varanda e quando deslizou
a porta de correr, eu contagiado, pareceu-me ouvir ainda “Advinha quem está
aqui?”. Ela falou com alguém?
Minha sogra
chamava-se Helena. Sabe aquelas velhinhas que vemos como fadas? Era ela. Melenas brancas, finas repartidos ao
meio, com um laço de fita rosa completava o penteado. As maçãs do rosto
rosadas. A dentadura com dimensão alterada deixava-a
com um sorriso perene. Não era o sorriso de Mona lisa, a Gioconda. Era algo
indeterminado.
No famoso quadro, o autor, usando a técnica de sfumato, pintou uma mulher com uma
expressão introspectiva e um pouco tímida. Uma incógnita.
Incógnita
foi quando deparei-me com uma figura, um pássaro, precisamente um papagaio, que
começou a gritar quando Genoveva aproximou-se. Gritava a plenos pulmões:
-Eu te amo Antonio! Eu te amo
Antonio!
Enquanto
dizia isso abaixava a cabeça para receber carinhos no cocorote.
Assim vi
sobressaltado Genoveva coçá-lo enfiando os longos dedos ornado por uma aliança
dourada, entre a grade, as unhas compridas e bem feitas, alisá-lo e dizê-lo
baixinho:
-Não fala isso seu chato!
O papagaio
era verdadeiro. Vi pelas cores - verde
com cerca de 38 cm de comprimento.
Tinha penas azuis na testa, acima do bico e amarelo na cara e coroa. A cor da íris era vermelho-laranja.
Uma fêmea. Devia ser velha, pois o bico era negro. É uma
das espécies mais inteligentes de ave do planeta. Sua expectativa de vida é de
oitenta anos. Os papagaios-verdadeiros também costumam repetir o que ouvem de
seus donos.
Essa última
característica é que me sobressaltou.
Assim eu
aproximei-me de Genoveva e perguntei-lhe baixinho:
-Amor! Quem é Antônio?
Ela fez um
esforço supremo para não ruborizar. E disse entre dentes:
-Ah! Não! Já vai começar com seus
ciúmes infantis? E saiu batendo os pés em direção ao quarto. Sai atrás. Joguei
a mala num canto perto do corredor.
Cerquei-a
junto ao guarda roupa. Genoveva tinha
aberto a porta e se olhava ao espelho.
Repeti:
-Quem é An-tô-nio?
Ela enfiou
as mãos pelos cabelos, jogou-os para trás e falou pausadamente:
-Não sei e nem quero saber! Aliás,
tenho raiva de quem sabe! Ora essa! Se enxergue homem! Só falta agora ficar com
ciúmes de um nome que um animal fala! Só falta essa!
-Uma ave e muito inteligente por
sinal...
Continuei:
- E essa ave, fique sabendo que
repete tudo que ouve diariamente.
-E daí? O que é que eu tenho com isso?
Ora vá vá...
Genoveva não
completou a frase, deixando-a aberta a vários sentidos, por exemplo:
1-Vai tomar
no c...
2- Vá pra a
pqp
3-Vá pentear
macaco!
4-Vá para a
baixa da buchuda!
5-Vá para o
diabo que o carregue!
Não a deixei
terminar. Saltei em cima dela e a beijei ferozmente na boca, no pescoço, os
seios, os mamilos. Ajudei-a a tirar a camiseta apressado. A calcinha não deu.
Afastamos de lado à passagem. "Foi uma das melhores fodas que demos". Talvez pelo inusitado,
com risco da sogra entrar de repente, e a ave gritando sem parar “eu te amo Antonio”.
Ela me amava eu pensei.
Mas depois á
tarde fiquei fulo da vida.
Lembrei de
outros detalhes: Flagrei várias vezes Dona Genoveva suspirando ao telefone. Sabe aquele rosto que
fazemos quando estamos degustando algo delicioso? Era o que eu via. Quando eu
apontava na porta ela desligava e sempre dizia:
-Minha mãe, coitada, morta de
saudade. Liga todos os dias.
Realmente era
sempre o número da sogra. Várias vezes confirmei na caixa postal. Coloquei a bina, depois que
recebi ligações fora de hora e quando eu atendia o “cara” do outro lado da
linha não falava. Era um silêncio
aterrador.
Vinha
procrastinando há muito tempo uma ação. Pensei em colocar um detetive em sua
cola. Segui-la dia e noite. Desisti depois que o detetive falou o preço
exorbitante. Complementou ainda algo que me deixou com mil pulgas atrás da
orelha: Ele disse sorrindo ao telefone, “cuidado! quem procura acha!”.
E acha viu!
Jogou o resto de espuma junto com o papel no lixo. Prepara outra espuma.
Continua:
Um dia
desses, tirei uma semana de férias.
Talvez pelo ócio ou pela leitura que dispus nesses dias, pois li toda a obra de
Nelson Rodrigues, tinha chagado há um questionamento crível:
“Toda mulher
trai?”. Perguntei olhando-me ao espelho:Até a Genô? Era como eu a chamava nos
momentos íntimos. Ouvi até um dos personagens de Nelson falar jocosamente: “ A
mulher que nunca traiu voa!” “E eu nunca
vi nesses cinqüenta anos uma mulher voando, poxa!”.
Todos riram.
Menos o que estava tirando a barba. Era um risco.
De modo que
tinha já quase certeza. A certeza aumentou quando ela sonhando uma noite falou
um nome estranho, ou na véspera de viajar depilou-se toda, fez as sobrancelhas,
unhas, lavou os cabelos, comprou roupas novas, ficou mais carinhosa comigo, de
vez em quando eu a via olhando para mim com o olhar vazio ou nada, cantarolava
canções, sorria feito criança, exalava um cheiro de rosa doce e fresca.
E a
literatura diz que os primeiros sinais são imperceptíveis, como uma negação de sexo, com a desculpa de dor de cabeça, uma música cantada no rádio pela manhã, um
abrir de janela e exclamar com manhã linda faz lá fora ou mesmo o tempo
chuvoso, exprimir felicidade e etc e etc.
E agora
surgiu esse nome. Pelo menos o personagem já tem nome. Já é meio caminho andado quando são
denominados. Antônio. Antônio. Eu repetia em minha febre. Pois um homem desconfiado
fica febril, o vírus da desconfiança
tira o apetite, passa-se a falar sozinho, a testa começa a coçar, o pânico de aparecer
aquelas duas protuberâncias de ruminantes.
Assim parti
para a ação, era necessário descobrir o perfil físico e psicológico, para desenvolver
a história, de traição e dor, que se avizinhava. Todos
os detalhes se fundem na cabeça. As
histórias desde as mais simples às memoráveis tomam forma na cabeça. É só ir
desenvolvendo calmamente, palavras por palavras, como uma escada, degrau por
degrau. A estrutura já existe, é só ir
colocando os fatos, os personagens, na teia. A grande teia. Depois enredar para
que fique conciso e mais fácil a
degustação. Mais salutar. E a voz se
faz. Eis o estilo.
Mas isso não
se ganha da noite para o dia.
De modo que
logo pela manhã calcei o tênis (queria perder a barriga e agradá-la, mais
precisamente a mim mesmo) e com a desculpa de uma corrida fui pesquisar pela vizinhança.
Fiquei
sabendo de cinco. Cinco Antônio naquela cidadela.
Logo
encontrei o primeiro. Tonhão. Era leiteiro.
Todo o dia, bem cedo deixava um litro fresco na porta de casa. Conversei
com ele. Alguns dentes cariados. Cheirava a curral. Quando me despedi com um aperto de mão senti os calos, parecia
uma sola de sapato. Pensei:
Este está
descartado.
-Mas como? Alguém falou. Tem mulher que gosta de homem
rústico!
Não! Dona
Genoveva nesse quesito era enjoada. Gostava
de pessoas perfumadas, um dia desses quando a perguntei se por acaso fosse me trair,(brincadeira
sádica que todo casal brinca, depois do sexo)com qual pessoa ela me trairia?
Com um subserviente, ou com pessoas da alta?
E ela
respondeu: “se um dia por acaso me traísse, e deixava bem claro que jamais
aconteceria, seria com uma pessoa muito melhor do que eu, fina e de bom gosto”.
Assim
cortei-o da lista.
O segundo
estava bem ali, na praça. Vestia um terno maior do que o defunto. Suava muito.
Marcas no peito, embaixo da gravata e nas axilas. Entregou-me um panfleto
prometendo a salvação. Era um pastor da assembléia de Deus. Quando falava,
prometia o paraíso, mas eu só prestava atenção num ponto: no canto da sua boca juntava uma saliva branca que com a ponta da língua,
de tempo em tempo puxava para dentro da boca.
-E esse,
falou o freguês da barba mais espessa. -Tem mulher que gosta de transar orando!
Não era o
caso da Dona Genoveva. Ela, isto sim, adorava transar xingando. Assim descartei-o
dizendo-lhe que era católico apostólico e romano.
O terceiro
era conhecido por “toinho”. Tinha viajado o mundo todo, pois no passado recente
fizera parte do circo de Moscou. Era anão. Escutei-o uma meia hora. Ele contava
causos de outros países, de outras nações, falava sete idiomas de modo que o
português –brasileiro dele saía tipo os
turistas americanos. Trocando o artigo. Já com intimidade, falei-lhe: “Sabe que
nunca vi enterro de anão!” e que ele olhou para mim com uns olhinhos pequenos e
escuros e depois colocou a mão na barriga, caiu para trás no gramado e riu muito, esticando as perninhas no ar.
Descartei-o também. Minha mulher um dia dissera: Adoro homem bonito, alto e
elegante.
O quarto era
um padre. Frei Antonio de Calazans. Um italiano do norte. As faces rosadas, as
mãos grandes. Alto como uma árvore frondosa. Quando o vi saindo da paróquia,
ele tentava acender o cachimbo a todo custo contra o vento. Eu apressei-me e
fiz com as mãos uma concha. Deu certo. Ele agradeceu sorrindo. Os dentes
escurecidos pelo uso do vinho e cachimbo. Aliás, eram inseparáveis. Era
daqueles à antiga, andava com a bata marrom, e aquela corda amarrando-a a
cintura. Ele quis saber se eu pertencia à paróquia. Eu disse que não. Mas que
casara com alguém dali, a Genoveva filha da velha Helena. Assim ele disse. Batizei-a
aqui. Naquela pequena pia. Uma menina linda. A mãe também Dona Helena é uma senhora extremamente educada e
religiosa, ciente de seus deveres com Deus. A filha a mesma coisa. Por fim
convidou-me à missa desse domingo e mandou benção a todos. Descartei-o também.
Existe muito filhos de padre, mas não com Dona Genô pensei. Um dia ela me falou
entre dentes, Que nunca teve pretensão de ser santa.
O quinto
elemento era o que mais correspondia. Um primo distante. Soube que gostava de
fazer poesia, bebia sentado na mesma mesa de um bar e enquanto bebia, compunha
poesia nos guardanapos, que no final do dia ia limpando a boca com eles, e
todos indiscriminadamente iam parar na lata de lixo. Não pelo valor. Achei até
que ele tinha futuro. Rimava bem e tinha boa métrica.
No final da
tarde acompanhei-o. Íamos falando da vida, do luar da cidade. Subíamos a rua, os
paralelepípedos disformes o faziam gangorrear de um lado para o outro, como uma
nau no oceano, que o fazia apoiar-se em meu ombro para não cair. A lua estava
clara. Lua cheia.
Ele ia declamando seus versos e eu o ouvindo
atentamente, querendo descobrir algo, uma nuance, nas entrelinhas algo que
comprometesse Genô, quando demos por si estávamos
eu e ele bem embaixo do flamboyant.
Assustamos ao ouvi, alto e em bom som a frase gritada a plenos pulmões:
-Eu te Amo Antônio! Era o papagaio na gaiola.
As flores
caídas à tarde coloriam o chão de vermelho escuro.
Despedimos-nos
ali.
Seria ele
perdidamente apaixonado por Dona Genoveva?
Segundo alguns, um amor platônico,
pois ela nunca o teria lhe dado bola. Além do mais eu soube que Dona Helena jamais fez gosto. Ele sim pode ter
sido usado em diversos objetivos, como,
conhecer um rapaz novo, ir a uma festa acompanhando-a, essas mínimas
coisas práticas que servem os primos. E só. Mas sabe-se que os homens ficam
sempre por perto, das belas para quem sabe aparar as migalhas.
E também não
se sabe os motivos escusos das mulheres,
os pretextos, enfim, só sei que alguém daquela casa, da varanda do bangalô,
fazia questão de contemplar esse amor todos os dias quando via um Antônio passar
por ali, em direção a casa, e gritar-lhe que o amava. Isso era fato.
Sadismo? Mau
caráter? Inocência? Ser sua musa?
Talvez para
ser assunto em suas bebedeiras noturnas, ou mote nos tristes poemas?
Não cheguei
a nenhuma conclusão. Levei o caso à polícia. O delegado escreveu nos autos que
não se podia acreditar, em testemunha tão descabida, um simples pássaro. E deu
o caso por encerrado.
Não nos
separamos. Gostávamos do nosso jeito de fazer amor.
Passei a
acompanhá-la nessas visitas todos os anos. Na décima vez, soube que o poeta
morreu. Os versos calaram.
A rua
ultimamente ficava completamente deserta. Ou a tarde passava um enterro em
silencio, lentamente. O pobre pássaro exaurido, agora falava mais baixa, em tom rancoroso. “Ele
agora vem junto!” “Ele agora vem junto”!
Aos diabos
essas falas.
Em todos
esses anos tivemos mudanças drásticas. Dona Helena ocupa agora uma cadeira de
rodas, a face magra, o olhar perdido. Não fala e não anda. Vegeta. Genoveva
pelo seu lado perdeu o frescor. “O estúpido ainda gritava,” te amo Antonio!” E
também “Antonio se foi, Antonio se foi”.
Que destino
do poeta! Lembrado por um pássaro
estúpido que torra o meu saco.
Domingo fui à missa. Trinta anos que o vi pela primeira vez. Frei
Antonio fez um belo sermão. Era comentário geral. Sobre a falta de amor entre
as pessoas. Subi ao quarto. A árvore de natal piscava suas luzes. Um corpo numa cadeira. Acenei para Dona
Helena.
Chovia lá
fora. A água deixava a paisagem vista
pela vidraça semelhante a um quadro expressionista. As cores borradas e vivas.
Observei um pássaro verde e amarelo inerte no fundo da gaiola.
Peguei-o com
cuidado, e ao choro de Genoveva enterrei-o no quintal. Numa cova rasa. Como os
bandidos merecem.
Depois foi
Genoveva. Ela foi definhando lentamente. Já não nos falávamos. Nada mais valia
a pena. E numa bela manhã, faleceu.
Toda a
cidade foi ao velório. Também os quatro Antonio restantes. Ignorei-os. Afinal
nunca tive uma prova cabal.
Ultimamente,
estou relendo Dom Casmurro. A história é de uma suspeita de traição. Estudo não
o fato em si, mas a maneira como foi contado. É o que me interessa hoje. O
momento da criação. A estrutura.
Montei essa
barbearia faz cinco anos.
A última vez
que a acompanhei, lembro mais ou menos dessa cena que vai deteriorando-se com o
tempo, um silêncio aterrador na varanda, a gaiola vazia, Dona Helena na cadeira
olhando o nada; Dona Genoveva, debruçada, talvez esperando o único amante, que
a fizera: feliz, jovem e com a pele maravilhosa.
O velho
barbeiro abaixa a cadeira, tira o lençol, dá o retoque final no rosto do
estranho e pergunta:
-Qual o seu nome?
O homem paga
com uma nota, faz uma reverência e diz maliciosamente:
- Antônio! A seu dispor!
Risada
geral.
21 de Abril
de 1964.
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