Foto sugada de http://obviousmag.org/j_domingues/2015/como-nasce-um-escritor.html
Um belo dia depois de
sair de um castigo, - minha mãe tinha imposto escrever do próprio punho “Eu
estou arrependido” cem vezes numa folha de papel almaço, tinha xingado alguém
de filadaputa,- ressabiado fiquei ali a beira da estrada sob a mangueira,
que todos respeitávamos, afinal ela nos dava três coisas essenciais: O fruto, a sombra e a
algazarra dos passarinhos ao cair da tarde.
Emburrado eu cavava a
terra fazendo um buraco. Foi quando os meninos da rua do rio, ao passarem para
a escola me gritaram:
-Estais cavando um
buraco para chegar ao Japão moleque?
Eu não respondi, mas
confesso que fiquei encafifado. Será que se a pessoa cavar, dia e noite e noite
e dia sem parar chegará ao outro lado da terra? Seria interessante, ah seria.
Sair de um buraco no meio do Japão! Eles ficariam tão assustados que me
olhariam com os olhos fechadinhos.
Assim não parei de cavar.
Mas tarde outro passou:
-Cuidado menino, pois
cavando assim com tanto afinco, pode bem daí jorrar petróleo!
Dessa vez não pude
segurar o riso. Sabe que seria o máximo! Eu, euzinho, o maior produtor de ouro
negro da terra, do universo, das galáxias?
Seria um Sheik. Usaria
aqueles turbantes, teria um castelo, um harém para meu deleite. Só assim talvez
Maristela olhasse para mim. Ela a causadora principal do xingamento. Aquela
presunçosa, ridícula e gananciosa. Não! Ela não é gananciosa, pois quando ela
me beijou atrás da porta eu ainda não era Sheik. Ela é só um pouquinho chata e
beijoqueira. Só.
Continuei cavando. Ainda
não tinha decidido nada. Também se jorrasse água não era de todo ruim. Aqui
água é dinheiro.
Enquanto cavava ia
perdendo a raiva e notava principalmente que quanto maior as coisas, maiores os
desafios. Os que me viam de longe via a terra saltando do buraco igual uma
abelhinha que perdi horas e horas da minha vida vendo o trabalho incansável
dela em perfurar uma parede. Entrava, cavava, jogava a areia para fora com as
pernas. Tinha muito esmero em fazer o buraquinho. Passei o dia observando. Fiz até
uma lente de aumento com uma lâmpada cheia dágua. Aprendizagem sabe? Deu pro
gasto. Qualquer dia conto das minhas invenções. Gosto de desenhar, de escrever,
de tocar violão até versos tento fazer uma vez ou outra. Não mostro pra
ninguém. Necadecapiberibe. Pra mangarem de mim! Nunca! Outra hora.
Sabia que quanto mais fundo
o buraco a terra vai ficando úmida e morna? Eu não sabia. Será que é para os
mortos não sentirem frio?
Quando deram seis horas
minha mãe apareceu na borda. Devia está com pena de mim. As mãos nos quartos
ela disse:
-Pára com isso menino,
sai daí e vem comer um pouquinho. Fiz aquela comidinha que você gosta!
Não respondi. Quando
ela ia saindo eu disse sem olhar-la que ia morar no buraco. E frisei: Para
sempre.
Ela foi sorrindo. Ainda
disse sem se voltar:
-É mesmo! E vai viver
de que?
Assim fiquei matutando
como seria viver num buraco. Fui enumerando: As formigas moram e que eu saiba
moram muito bem. O tatu, o coelho, a cobra, algumas abelhas, cupins, traças...
Estava lembrando-me de
mais, quando ouvi os moleques voltando da escola.
Um aproximou. Sempre é
aquele nosso amigo, arreliento. O que beijou Maristela e me contou sorrindo. O
filadaputa.
-Fica aí bobo, que
nessa profundidade, se tu morrer agora mesmo não vai ter trabalho algum. Vai
ser só jogar toda essa terra de volta e plantar em cima uma cruz. Aqui Jaz um
Zé ninguém.
Aí comecei a chorar. Eu
não queria ser Zé ninguém! Queria ser alguém na vida! Não um número de CIC,
CPF, identidade ou isso em minha lápide! Zé ninguém...
E pra Zé ser alguém
precisa de que? Fiquei pensando e chorando.
Nunca tive tanto dó de
mim na vida quanto esse dia.
A empregada lá de casa chegou, olhou para
minha cara e disse:
-Liga não dona Nazinha,
é banzo. Meus antepassados sentiam o mesmo quando tinham saudade da África.
Demora mas passa!
Então foi decretado que
eu estava com “banzo”.
Esse banzo não é bom. É
uma dor igual senti mais tarde com a morte dos meus pais. É dor e abandono. Junto é pior.
***
Na coluna diária que escrevo
alguém um dia perguntou:
"Com toda vênia que o senhor
escritor merece, me diga uma coisa: o senhor viveu tudo o que escreveu ou escreve ou de outra forma, mentiroso e vil inventa essas coisas num lampejo para se vingar de quem viveu verdadeiramente? Ou o intuito é encher a página dessas coisas e embolsar a grana?
Assina: Maristela.
Assina: Maristela.
Até hoje não respondi.
Confesso que não sei.
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