Estávamos numa mesa ali na
barragem, comendo tucunaré frito com cachaça de cabeça. O espelho do açude Mãe d’água
estava tremulando. Canoas de pescadores ancoradas as margens.
Zé das jumentas começou:
-Olhe! Com certeza a melhor foi a de 82,
visse. Sei escalar todinha, na ponta da língua. Pense num meio de campo porreta: Zico, Sócrates e
Falcão. E os laterais Éder, o canhão e Júnior nosso conterrâneo. Futebol arte.
Nisso entra Dalvinha no bar. Saia curta. Olhamos
pros tornozelos dela. Grossos e roliços. Debruça-se no balcão. Pediu uma caixa
de fósforos. Talvez tivesse ido ali, para investigar o que falávamos. Cidade
pequena cuida da vida alheia.
Sai rebolando as cadeiras.
-Viu?
-O que Boca mole?Perguntei.
- Ela tá com rolo por aí.
-Não acredito, digo. Tão novinha!
Canhoto calado. Mastigava uma posta de
peixe. Toma uma talagada e joga o resto paro o santo. No pé do balcão.
-Rolo com quem, pergunto.
-Com Severino do Fenemê.
-Verdade?
-É.
-Aquele que faz frete pra João Pessoa.
-O Próprio.
-Que é casado e tem dois filhos de peito?
-Esse mesmo.
-Vixe!
Zé
das Jumentas dá uma tapa na mesa. Levanta-se e alisa as mãos. Tonho do bar
grita lá da cozinha:
-Mais um tubo de cana?
-Vê mais um que hoje tô com a gota
serena! Vixe! E demos uma gargalhada.
-As mulheres cheias de preconceitos
comigo e dão para qualquer um?
-E ela é boa visse! Eu disse.
-Ai! Ai! Uma potranca completou Zé das
jumentas.
- Será que é caso antigo?
Manoel da Kombi passa buzinando. Não
escuto a resposta de Zé.
Encho o copo dos três. Canhoto palita os
poucos dentes.
-Também acho que a melhor foi a de 82. Voltei
ao assunto de início. Mais técnica. Mas a de 70 tinha na linha Jairzinho,
Gérson, Tostão, Pelé e Rivelino. E trouxe o caneco.
-Oxente! A de 58 trouxe também o caneco
disse Zé das jumentas. E tinha Djalma Santos, Didi o “folha seca”, batia uma
falta como ninguém, Zagalo e tantos outros bons jogadores. Esfrega as partes.
-E você Canhoto, qual sua preferida,
perguntei cutucando-o com o pé.
Ele tomou de um só gole a cachaça, fez
uma careta, pegou uma siriguela para tirar o gosto, cuspiu no canto e falou:
-Se vocês jurarem não me interromper
darei minha opinião e conto tudo do jeitinho que aconteceu.
Aceitamos de pronto, pois não era todo
dia que Canhoto falava.
Um palito no canto da boca.
-Para
mim, que sou mais velho, já vi muita coisa, já passei por muitas secas medonhas
e já vi Mãe d´água sangrar mais de três
metros na década de sessenta, uma sangria medonha. Digo e repito. O melhor time que esses olhos que a terra há de comer viram jogar visse,
foi o saudoso 4 de abril. Eh! Time porreta
aquele. A seleção brasileira e qualquer outro time ficam aqui ó no chinelo.
Ficamos
de boca aberta. Não esperávamos por essa. Nem ao menos conhecíamos. Continuou:
- Lá para década de cinquenta. Um time de
monstros E no arco advinha quem pegava tudo? Quem? Quem?
-Vá fale! Gritamos.
Não sabíamos. Éramos mais moços. Apontou
seu dedo seco para mim.
-Euuuu? Ele riu com pouco dente.
-O melhor arqueiro que já vi atuar. Seu
pai. Saltava como um anjo. Muito melhor do que Ado, Félix, Leão e tafarel. E
ainda pegava sem luvas.
Nisso rebobinei na cabeça toda lembrança
como num filme mudo. Aos domingos, eu fazia o dever correndo, em dia de jogos o
dinheiro curto, saia de casa mais cedo à procura do melhor lugar para entrar
sem pagar. Muitas vezes era pela torrefação de meu tio. Era só pular um muro,
passar por baixo das moitas de melão de são Caetano fugir do olhar dos vigias e
pular um esgoto a céu aberto. Pronto. Estava no gramado. Era só comprar uns
roletes de cana caiana e ficar sugando o suco doce e assistir a partida em pé
ou sentados na beira do gramado. Ainda
levava o estilingue para dar uns tiros em algumas lagartixas pelos muros
Já quando meu pai era o juiz da partida
ele tinha a prerrogativa de nos colocar para dentro. E foi com prazer que
fiquei sabendo dessa arte de meu pai como tantas outras, como fazer o melhor
pião ou carrinho de madeira. Tive o primeiro caminhão com rodas torneadas e
feixe de molas da cidade.
Olha para os lados e tosse seco. Observa
as nuvens. Ele sabe quando vai chover.
-Teve um jogo aqui bem depois da
inauguração do cine CAP lá no DNOCS. Por sinal o primeiro filme que passou foi
“O corcunda de NotreDame”. Não gostei. A molecada também não. Só os adultos.
Depois passou D`Jango. Um faroeste porreta que só vendo. Foi no dia que Mané da
padaria foi ver com toda a família. Na ocasião, quando começou uma cena de tiroteio, -pense num homem doido da gota -,ele
como nunca tinha visto aquilo, sacou da arma, e começou atirar para todos os
lados.
Na delegacia em frente do delegado Bigode
ele se explicou desse jeito: “O que você faria compadre. Toda sua família
correndo risco de morte, eu tinha que fazer alguma coisa, não é?”.
Para o delegado não restava alternativa
senão libertá-lo, sem antes falar assim: “Seu Manoel aquilo tudo é ficção, são
imagens vindo de uma película, em velocidade dá a impressão de movimento essas
coisas”. Mas são somente retratos enfileirados.
Lembrei quando fiz meu primeiro
cineminha. Uma lâmpada cheia d água, uma caixa de sapato e uma lâmpada acesa.
Ele ainda falou: “Pode ser tudo isso, mas
que não ponha em risco minha família.”
E essa história se espalhou e virou piada
contada até na sacristia da igreja Santa Rita de Cássia. Quando o Padre Andrade
notou que já estava virando chacota, fez um sermão na missa do domingo seguinte,
que era o de ramos, a favor dos humildes e simples e defendendo Seu Manuel, que
era pai de família exemplar essas coisas.
Todos
nós sabíamos que não era bem assim, que seu Manuel, andava muito pela rua do
rio atrás das mulheres, mas não seríamos nós a delatá-lo. Afinal de contas
tínhamos nossos pecados.
Pois então como ia contando, o time 4 de
abril que seu pai jogava, ganhava de todos os times da redondeza, como cajazeiras,
Souza, Patos, Pombal. Era o terror da região e se qualquer time de bosta desses
aí, até mesmo a seleção brasileira viesse aqui no sertão tomava uma surra de
nós. A camisa era igual a do flamengo, rubro negra. Uma beleza que só vendo.
Pois então numa decisão de campeonato
contra o time de Souza, lembro-me disso muito bem, o nosso time 4 de abril seria
campeão pelo empate. Pois veja, aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo o
juiz tal de Capitão Estevão teve a coragem de marcar um pênalti contra o time
da casa.
Esse
homem é louco pensei, mesmo vendo que foi um lance indiscutível. Nosso center four que era o Orlandão, tinha a
fama de mau desde que deixou um paralítico lá para as bandas de Cajazeiras. Quando viu o ponta esquerda deles fazendo
fila nos nossos rapazes, gritava trisca! Trisca! Trisca! E quando viu que não
tinha jeito, ninguém derrubava o curisco fora da área, rosnou lá de trás e gritou
deixa. Se o Juiz ouvisse marcaria falta. Nisso quando o baixinho tocou na
frente e penetrou na área, Orlandão pulou
com os dois pés no pescoço do arataca. Era
um bostinha de nada, mas veloz que nem a luz. No canto da pequena área onde não
nasce grama. Subiu poeira na venta. Ouviu-se um estrondo e um apito.
Triiiiiiiiiiiiiiiiii!
A torcida ficou louca, Pedro pistoleiro
sacou da arma, queria matar o Capitão a
todo custo, mas disseram que o tal juiz era militar reformado de Piancó e
chegou a turma do deixa disso e por bem tudo se acalmou, pois Piancó e Coremas
já vinham em atritos de longa data não era certo continuar essa briga
eternamente. Somente Joaquina e suas primas, as meninas da rua do rio ainda
gritaram “isso é que é um filho de uma rapariga, merece que pegue um cancro no
meio do cu, essas coisas de baixo calão que tanto nos envergonha. Pois bem. Quando
tudo acalmou fez-se um silêncio bruto. Só as cigarras cantavam no fim da tarde.
O centroavante deles se abaixou, beijou a pelota de couro cru, correu e bateu
de canhota. Para a esquerda voou a chuteira e seu pai voou atrás. Não havia
observado o fato. O filho da puta do ponteiro quando tinha se abaixado soltara
o cadarço da chuteira, no intuito de enganar. Ninguém tinha percebido o engodo,
a isca visse? Pois olha. Quando o cara chutou a bola com a direita teu pai já
estava batido. Foi aí que eu vi uma coisa que até hoje arrepio ao contar. Veja!
Mostra os braços. Seu pai viu que enquanto
ia voando atrás da chuteira a bola corria mansamente do
lado contrário. O arataca já corria vibrando para sua pequena torcida lá perto
das bananeiras quando seu pai, - Canhoto me fitou dentro dos olhos, tomou mais
uma talagada e continuou, - Seu pai fez uma coisa que só beija flor faz. Parou
no ar e nessa zona morta de segundos, enquanto a bola rolava mansa para lado
contrário ele retesou os músculos acostumados no trabalho pesado,parou no ar e daí
seguiu voando noutra direção. Quando a bola ia cruzar a linha do gol, puxou-a pelo rabo. A torcida enlouquecera.
Pedro pistoleiro sacou o trinta e oito e ficou atirando para cima, Joaquina e
suas primas escandalizaram a cidade ficando no meio do campo só de anáguas e uns
jovens pegou seu pai colocou sobre os ombros e num pique só, fizeram a volta
olímpica.
Fomos
campeões.
25/06/82
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