Eu e meus irmãos, somos
cinco, três homens e duas mulheres, desde pequeno fomos por assim dizer criados
como bichos. Não que tivesse faltado amor, longe disso, fomos criados como
dizem, um pão na mão o pau na outra. Nossa
mãe era cuidadosa até demais e queria nos ver sempre limpos, vestidos todos
iguais, moda da época, parecíamos pares de jarros, e como lutávamos contra isso
esse padrão, ela com raiva de nosso desdém, quando chegavam visitas ao mostrar
a casa, costume antigo das pessoas do interior, falava compassada assim:
-Esta é a sala, esse é meu quarto, era
última moda uma dorminhoca sobre a cama. E aqui... O quarto dos bichos.
Naquele tempo dormíamos de
rede, costume dos nordestinos, e embaixo delas três poças enormes de urina.
Aqui um parêntese. Não era
nossa culpa juro. Meu irmão mais velho tentava a todo custo parar esse vício,
mas não conseguia. “Um dia não tomei água a noite, não fiquei perto de fogo,
pois diziam que o fogo fazia ter a urina solta, e, demorei a dormir vigiando. Altas horas deu aquela maior vontade de ir ao
banheiro, e levantei pé ante pé para não acordar ninguém levantei a perna do
calção sem olhar para o fundo, - aqueles banheiros que tem um buraco no
chão uma enorme fossa e tínhamos o maior
pavor de sair de entre os excrementos qualquer monstro horripilante, - e
relaxei deixando o líquido morno descer. Morno sim, pois nesse momento senti o
calor nas pernas e atinei que estava na rede, mas agora era tarde, o líquido já
descia, o banheiro fora mais um logro dos sonhos, e como tinha começado
agora era relaxar e sentir escorrer
naquele calorsinho tão bom pelas pernas e que encheu a mesma poça no piso de
cimento queimado.”
Uma semana antes papai já
tinha prometido uma surra de palmatória,
- Palmatória é feito de madeira dura parecido com um martelo de bater
carne, usado para castigar as mãos -, e foi justamente nessa fossa que eu havia
jogado a palmatória. Com medo da surra dei um fim nesse objeto tão perverso. O
fedor era insuportável o que nos fazia sair do banheiro rapidamente. Eu mesmo
prendia a respiração e tentava fazer o serviço em segundos. Muito tempo depois
de passar os anos aprendemos que esse tipo de toalete era uma construção sábia,
pois nos mostrava o quanto valemos “nada” perante a vida como dizem as pessoas
nos velórios:
-Não valemos nada!
Foi nesse mesmo banheiro
que nos juntamos uma noite para dar as
primeiras tragadas nuns cigarros feitos de folha seca. Engasgamos com a fumaça.
Era ali também que víamos as revistas de
mulher pelada. Era nosso esconderijo nosso “bunker”. Se viesse alguém era só jogar a revista lá no
fundo.
Já boiavam no meio das merdas, Vera Fischer,
Xuxa e outras estrelas internacionais.
E foi por tudo isso que nessa manhã quando o circo chegou
mamãe disse:
-Nenhuns dos três vão. Ou
param de fazer isso ou não vão ao circo.
As irmãs estavam livres, há
muito tempo que dormiam em camas.
Quando o palhaço da perna de
pau andou pela cidade gritando no megafone acompanhamos a cidade inteira. Era
uma aberração depois de tudo que passamos.
-Hoje tem espetáculo? Respondíamos pegando balas que ele jogava:
-Tem sim senhor.
-Tem marmelada?
-Tem sim senhor.
-Tem goiabada?
-Tem sim senhor.
-A que horas?
-Dezoito horas senhor.
-E vocês vão?
-Vamos senhor.
Depois vimos todo o trabalho
dos peões para pregar as toras de madeira, colocar o picadeiro, levantar a
lona, o poleiro, vimos os leões, os macacos. Passamos a manhã inteiro ali
sentado no meio fio o olhar comprido sonhando em ver a passagem furtiva de
alguma bailarina.
Nos dias que antecederam a estreia,
fizemos perna de pau, com cabos de vassoura ou com lata de nescau. Esquecemos
até o jogo de pião, de bola de gude e de empinar papagaio.
Na sexta feira antes da ave
Maria, vi minha irmã com bobs no cabelo. Desconfiei.
-Vocês vão ao circo? Juraram que não,
que estava assim para a formatura no domingo.
Desconfiei e não preguei o olho.
Mas aquele tempo dormia com as galinhas. Cedo. No cair da noite estávamos todos
roncando.
E veio o sonho, o calor nas
pernas. Levantei. Os olhos pregados de remelas, e fui descolando um a um, os
cílios quando tava difícil usava urina. “A melhor coisa para desentupir ouvido
ou tirar remelas dos olhos”. Acordei meus irmãos e vendo que não tinha ninguém em
casa, tiramos a taramela da janela e pulamos.
Descemos pela praça, as luzes todas acesas, passamos a rua do rio, em frente da cadeia, a lona do
circo brilhava. Dentro gargalhadas e músicas. Em frente à porta
estacamos. Não usávamos pijamas como os outros meninos, como mamãe não sabia
costurar, fazia igual à bata dos padres, morríamos de vergonha disso. O
porteiro perguntou vendo nossos trajes:
-De quem são filhas as meninas?
Respondemos em coro:
-Meninas não!
-Oh! Oh! Desculpe os meninos. Como
chama- se seu pai?
-Papai, meu irmão mais velho respondeu.
O porteiro riu.
Era um velho vestido de
palhaço. Tentou com o menor.
-Qual o nome de sua mãe? Ele tirou a
chupeta da boca e falou:
-Mamãe.
-Certo! Certo! Ah! Ah! Ah! Ah! Tão me
pregando uma peça. Ah! Ah! Ah! Vamos tentar novamente. Prestem atenção viu. Todo
pai é papai e toda mãe é mamãe. Mas ambos têm nome.
Virou para mim e rindo perguntou a
mesma coisa.
Eu sempre fui considerado pelos meus
irmãos um lerdo. Pois desde criança tinha o olhar vago, parecia observar algo
ou o nada. Fitava coisas gerais como
o cume das montanhas ou os detalhes das
coisas, o simples tecer de uma teia, o tamborilar da chuva no telhado, o desenho
das nuvens, o barulho dos pés no cascalho. Desconfiava que essa lerdeza no fundo um dia me ajudaria de alguma
maneira, todas essas imagens, sons e cheiros que guardava no íntimo tornariam
quando brotasse em mim talvez meu
verdadeiro ofício que era de escrever.
Aí eu lembrei que Jesus tem nome, que
eu tinha nome, nosso gato Mimi idem e consequentemente nossos pais também.
Tirei a chupeta, limpei a boca com o
pano e falei. Os olhos brilhando:
-Ulisses!
-Ah! Menino inteligente. Ulisses o
herói. Então são os filhos de Ulisses do velho Félix. Hê! Hê! Já cacei muito
pato do mato com ele.
Pegou-nos no colo e nos levou
para dentro todos mijados.
Por dentro o circo era cheio
de cores e felicidade. Quase fomos fulminados por tanta alegria.
Deu tempo ainda de vermos o último ato da peça
“O auto da compadecida”. Desde esse dia paramos de fazer xixi na rede, ganhamos
cada um uma cama e na fala de mamãe deixamos de sermos “bichos” e viramos “Uns
homezinhos”.
03/03/1962
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