Samuel Trevor sentiu a tontura
de sempre, ao volver a cabeça para o sol essa manhã. Enquanto recuperava o equilíbrio, murmurou uma
oração de infância que o salvou outras vezes.
Porém dessa vez a dor fora mais intensa o que
o fez levar a mão ao peito, enquanto a
outra procurou apoio- será que chegou a minha hora, pensou contrafeito.
Passaram pela sua mente num lapso, os filhos,
os amigos e todas essas coisas saudosas, que nos vem em horas de aflição, quando
de alguma forma a morte espreita.
“Diabos, pensou, será que agora me vou sem
despedidas sem nada, aqui distante de tudo, nesse local ermo onde me encontro”.
Para sair do estresse,
escolhera uma cidade do interior longe de tudo.
Arre!
Sussurrou, afastando tais pensamentos. Muitas vezes ao longo da vida pensei na
morte, mas uma coisa distante, que acontecia com os outros, não comigo, esse
cara forte, pensava, insensível a dores e quaisquer outras coisas terrenas.
Samuel
não acreditava em nada, era por assim dizer um ateu. Muito raramente se deixava
levar por alguma conversa religiosa e quando acontecia, parecia que ia se
deixar levar, mas logo a ideia se esvaia no momento em que as pessoas se
afastavam.
O que acontecia era ele ser uma pessoa volúvel
e assim o pensamento dava uma guinada ao contrário como uma pipa solta ao
vento.
Muitos
o chamavam, aqueles, que o olhavam de viés, de “ateu de merda”, “incrédulo nojento”,
e outras coisas mais. Porém ele dizia a seus botões que ninguém sabia ao certo
“a verdade” e que as escrituras eram coisas inventadas pelos homens e qualquer um
poderia ter escrito tais histórias, óbvio que com certeza fora um excelente
escritor, por ser o livro mais lido do mundo, mas, o duro era vê as pessoas
usando o enredo, dessa escrita ditas “sagradas”, loucamente, para se
beneficiarem e enriquecerem de alguma forma. Isso o deixava louco.
Diziam
também dele que era filho de judeu, um degredado, um cigano herege e etc e etc.
Contudo,
ele, Samuel Trevor, tinha a certeza que na hora da morte tudo, como um passe de
mágica se descortinaria, e o segredo seria revelado de uma maneira ou de outra
acabando todas as dúvidas. Afinal dizia ele: “Ninguém voltara do alem para
falar algo. Nos cemitérios reina o silencio”.
Assim seguia vivendo dessa forma, para ele o
que importava era respeitar as pessoas e ajudá-las quando precisassem. Em fim,
tratá-las como irmãos.
Havia
participado de varias igrejas e até terreiros. Mas “infelizmente, em todas,
havia encontrado erros e ilusões”. Dissera ele um dia.
E quando chegavam para pescá-lo ele repelia com
a frase, o chavão, com a voz alta e em bom som: “A religião é o ópio da
humanidade”.
As
pessoas explicava que de certo ele não entendera a palavra e provavelmente se
perdera de alguma forma. No fim diziam: É uma pena. Vais queimar no fogo do
inferno. Ele sorria. E dizia que no seu
entendimento, o criador, deveria ter mostrado mais do que milagres. Gritavam
que ele era igual Tomé. Ele contestava: Quem prova que ele atravessou mares, curou
doente? Não deixou provas irrefutáveis. Segundo ele era preciso mais, não custava
deixar uma grande marca numa montanha, crer somente nas convicções de outros
para ele, eram provas fracas e banais.
A natureza é bela sim, mas tão cruel que certamente
não tem duvidas, o criou quis o caos, pois ao contrário, não teria criado o
homem, os carnívoros, predadores, as catástrofes e afins.
Sua
crença era que fomos soltos pela terra como animais, com a única diferença de
sermos racionais e termos o arbítrio das escolhas, de viver livre e bem em toda
grandeza, mas, usávamos a inteligência para o mal. Deus, dizia ele, se
existisse, teria mais o que fazer ao invés de ficar cuidando de meros humanos
sórdidos e egoístas.
E
assim seguiu a vida, mas agora nesse momento de dor, tudo o que ele vivera,
toda sua vida começou a passar vertiginosamente em detalhes, com curiosa lucidez
e seus olhos castanhos claros via tudo aquilo com certa ironia num sorriso
calmo de canto de boca e de lábios. Como ele gostara da vida, das mulheres, do
mundo. Mas agora sozinho via que tudo que dera importância era nada perto das
coisas que eram tudo.
Com
freqüência deslumbraram-se, com o brilho de emoções vulgares, afagos e gozos.
Mas agora via nitidamente que o que tem valor não custa nada.
Pegou
a lembrar coisas quase esquecidas como o sorriso de uma criança, um abraço
apertado, um carinho, um beijo na boca. Lembrou dos amores. Até pensou numa
menina que tanto a fez sofrer e por isso escrevera um poema este premiado num
festival, segundo os críticos “um poema cheio de versos vivos e ao mesmo tempo
secos, de ironias cruéis”. Não entendera na época, pois estava cego pelos
aplausos.
Mas o
verso tocou tão fundo o coração da menina que ao lê-lo naquelas horas mortas do
dia, ela suicidou-se uma semana depois a pequena menina que ele tanto amou, e
escrevera no final do poema: “olhos
claros e vulva da cor de cebola roxa”.
Recordava com a respiração ofegante, as coisas
impuras e impudicas, as roupas íntimas da menina, as transparências, aderidas à
silhueta, a bunda, a vulva, seios, aquela manhã em que ela
se foi precipitadamente sem um adeus...Sem um adeus...
Nesse
desespero notou a memória excepcional. Claro que isso tudo poderia ser um mero
pesadelo. Impossível está morrendo
quando essas coisas passavam tão reais. Sentia o olfato tão grande como o dos
lobos em caça. A pele eriçava-se.
E se a
vida tivesse sido outra?
Outras escolhas? A profissão, as viagens, as mulheres, os
filhos os parentes, aderentes e mais e mais... Outras vidas se desenrolariam.
Todas essas questões o confundiam.
Se
tivesse casado com a primeira? E com a
segunda? E com a décima?
Se nas
vezes que teve que decidir algo não tivesse sido por sua propensão a tomar
resoluções irracionais, e explosões
imaturas. Se não tivesse sido tão tímido? Se tivesse provado de tudo?
Quem o criou com tal arbítrio para tais
escolhas? Que desígnio o havia feito de
tal forma e defeitos? O que o levara a ter tais escolhas e o desejo de sempre
procurar coisas novas? A quem interessava
essa busca infernal por toda sua vida? Essa curiosidade? Tantos amores? Toda
ansiedade?
Lembrou-se,
de quando se tornou tão sonhador, tão emotivo e racional. – quando criança teve uma grande queda para a
leitura de romances e leu com afinco quase todos os poetas possíveis e
impossíveis. Os livros proibidos. Todos os filósofos e livros de auto- ajuda. Mas não lera tudo o
que gostaria.
Considerações
a parte, sempre foi um sentimental incorrigível.
De
repente ouvira um ruído. O que seria nessa hora terrível, perguntou-se
estupefato. Gente não era com certeza, pois quando fora comprar aquela
propriedade escolheu a dedo nos classificados: A propaganda dizia: O mais
bucólico, silencioso recanto para quem quer ficar longe do barulho da cidade e
de tudo. Dizia o anuncio em letras garrafais.
Será
algum animal silvestre, pensou.
Lembrou-se do primeiro dia que estivera ali e aparecera , um lobo, uma
raposa, até cobras e tejuguaçus. Ninguém
mais viria a essa hora da tarde, lamentou.
O sol
estava para se pôr.
Virou-se a muito custo, graças a um grande
esforço, já que a dor agora descia pelo braço e vislumbrou uma mulher branca e
alta.
Não
era a mulher que contratara para lhe servir, pois ela vinha sempre no início do
mês, e vestia com uma calça de malha apertada. Esta se vestia com um vestido preto
que ia até a altura da panturrilha tatuada com uma foice. Uma capa transparente de cor azul celeste, leve e agradável , por cima do ombro algo que o fez empalidecer. Não viu seu rosto, pois
estava em pé, de costas, mas perscrutou sobre o trapézio a penugem dourada e asas
brancas que o cegou a luz do sol.
De
imediato e sobressaltado, gritou “um anjo alado!”. Inspirou profundamente o
oxigênio bendito que entrou em seu pulmão mais calmo.
“Quem
poderia ser? Seria alucinação?”.
A
mulher se voltou, e Samuel Trevor viu que ela era linda, da cor de cera, a
menina do poema, o anjo da morte – a própria morte da qual sempre temera a
única certeza da vida. Com tristeza, tentou acostumar-se com a idéia da morte
iminente e ainda assim, com todas as forças tentou lutar contra esse ardil,
mas sua força se esvaia.
Logo, pensou, acabou-se a angústia da vida
inteira. Queria falar-lhe, porem estava
mudo.
A
menina não pronunciava palavras. Seus olhos serenos, tinha uma expressão na qual passava significados
profundos, sem esconder seu encanto e sua formosura. Assim Samuel
Trevor ficou muito quieto, lutando com uma escura e admirável perplexidade.
Afinal,
conforme julgava, depois da passagem, teria todas as respostas, e assim foi
sentindo-se mais frio os pensamentos dúbios e vagos e sentindo cada vez mais
perto sua inexistência, os órgãos em falência e foi percebendo tão quão era seu tamanho no
universo, um mero grão de areia e sua visão fora cortada da luz e ele foi jogado
num escuro profundo e sentira-se planando,leve, livre, sem dor, sem pecado, sem
nada, e seus sentidos aumentara assustadoramente e veio uma enorme onda de claridade,
uma luz difusa e ao mesmo tempo contínua como uma infinita página em branco.
Como o
maior temor dos escritores. A terrível página em branco. A morte da criação.
-Ei, pode-me
dizer onde estou? Perguntou a alguém depois de tudo.
-Onde?
Onde? Não sei. Cheguei agora também.
Uma
mulher surgiu da neblina.
Uma
criança brincava ao lado. Disse:
-Pelos
meus cálculos, aqui é onde ficamos depois da passagem.
-Que
passagem?
-A
morte, claro! Essa é uma das inúmeras figuras de linguagem que inventamos para
abrandar a morte, chama-se eufemismo. Algumas delas: A passagem dessas para melhor, Abotoou o
paletó, Dormiu o sono dos justos, vestiu pijama de madeira, comeu capim pela
raiz, cumpriu sua missão, foi para a cidade dos pés juntos, virou presunto,
esticou as canelas etc. Cada um desses eufemismos são criados dependendo do
respeito pelo morto.-Veja com seus olhos esse abismo, tem muita vida aqui...
-Vida!
Mas acabei de morrer!
- Ah!
Não se preocupe! Nossa vida real é aqui. Temos tempo para aprender. Aqui o
tempo não passa.Aqui é nossa morada. Veja
o que podemos fazer.
O
menino correu para o abismo e saltou de braços abertos.
-Cuidado!
A mulher gritou! O menino planou no abismo.
-Nossa!
Que bacana! Você flutua! Disse Samuel. Você é um super herói?
- Que
herói que nada! Isso é só o início. Tudo para mim é novidade aqui.
-Posso
também?
-Claro!
Você agora é um dos nossos!
Samuel
saltou.
-Puxa
vida! Que adrenalina!
-Você
não viu nada...-Está vendo aquela parede? Olha!
E
atravessou correndo.
-Puxa
vida! Então eu morri? Disse Samuel consternado.
-Negativo.
A mulher abanou a cabeça. - Você simplesmente voltou ao estado natural?
-Mas,
e o que somos?
-Chama de espíritos! Somos imaterial.
-E
minha família, como fica?
-Eles
se viram! Quer vê-los?
-Posso?
-Claro!
Só quando queremos! Mas nunca queremos. Para não saber das coisas...
-Ah!
Entendo.
Mas eu
quero ver...
-Então
se afaste do seu corpo. Disse o menino. Isso.
Não tenha medo. Não dói.
-Certo!
-E aquele ali, sou eu?
-Sim.
Quer dizer. Sua carcaça disse o menino rindo. Samuel rio também. A mulher
também. Caíram os três na gargalhada. Depois Samuel ficou sério.
-Mas estou
sozinho! Se não me acharem vou apodrecer ali!
-Logo
acham bobo, não se preocupa, o cheiro, os urubus, alguém chamará a polícia para
as coisas de praxe. Avisarão a tua
família, aos teus filhos...Tudo se resolve. Como dizem: Tem jeito para tudo, só
não para a morte. E riram novamente.
- Eu
estou igual carro velho quando tiram o motor. Só a carcaça!
-Isso
mesmo! O que fica é só a carcaça.
Olhou em volta. Continuou:
-E eles
vão sofrer...Meus filhos a família?
-Sim! Depende
das afinidades. Uns mais, outros menos. Mas você pode ajudar.
-Como?
-Vamos
até lá. Fique ali. Sua mulher vai atender ao telefone. Vai ser um baque.
Aproxime-se dela, vai. Abrace-a.
Samuel
chegou por trás da mulher. Ela sente um calafrio. Levanta-se para vestir algo
mais quente. Ao passar pelo corredor vê Samuel
de terno sorrindo no retrato pendurado na parede. Parou um instante. Súbito
sentiu a presença dele. O telefone tocou três vezes. Atendeu.
-Sim!
Sou a esposa dele! O que aconteceu?
Do outro
lado da linha uma voz calma dizia que o marido falecera, mas que estava tudo
bem, tudo se resolveria...
-Sim!
Sim! Sentou-se. Eu estou calma! Obrigado. E desligou afirmando seus
sentimentos.
“Agora
tenho que ser forte. Meu Deus tive
pressentimento desde que olhei o retrato dele na parede”.
-Está
vendo! Com sua ajuda espiritual ela aceitou mais tranqüila. Sempre podemos
fazer isso. Através da energia da oração.
-Precisamos ir agora! Disse a mulher.
-Prá
onde?
-Prá
fila!
-Que
fila?
-A de
nascimento!
-Mas
acabei de chegar!
-Você
que acha! Contando como contamos na terra já se foram séculos!
-Mas
por que só agora percebi?
-Tem
pessoas que demora mais...Estão muito agarradas entende?
-Sim,
entendo!
-Mas é
assim, temos que voltar outras vezes?
-Claro
como a luz do sol.
-E
você, qual o seu nome?
-Amália!
Fui sua esposa em outra vida!
-Jura?
-Está
vendo esta cicatriz bem em cima de meu peito?
-Um
tiro?
-Sim!
Dado por você num dia de fúria!
-Qual
o motivo?
-Ciúmes!
-Puxa
vida!
-É
minha redenção.
Não falaram
mais nada.
Saíram
voando.
Chegaram
ao topo de uma montanha. Nuvens em volta. Fazia frio.
Uma luz intensa em volta.
-Adiante-se
filho! Disse uma voz.
Ele
adiantou-se.
-Já
escolheu seu destino?
-Estou
em dúvida, posso pensar um pouco?
-Claro
disse o ser na linguagem dos anjos. Todos tem o livre arbítrio.
Ele e
a mulher saíram para um canto. Perguntou a mulher:
-Você
já escolheu?
-Sim!
Já pensei em todas as possibilidades!
-Eu
também! Já decidi! Não quero ir!
-Mas
isso é impossível! Temos que pagar nossos pecados...
Foi
assim que Samuel Trevor nasceu novamente. Primeiro era uma semente trazida no
bico de um pequeno passarinho. O passarinho comeu a fruta e feliz cantava num
galho e defecou a semente em terra boa e logo se transformou numa frondosa árvore.
Mas tinha outras sementes. Era uma parasita chamada erva-de-passarinho que
nasceu no tronco sendo hospedeiro, atingindo o sistema vascular e retirando a
seiva de que precisa para nutrir-se.
Essa era
a nova vida de Samuel Trevor.
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