Do site futebol de rua(desenho)
Codi
O ano era
1980. Íamos disputar a
pelada mais importante da vida. De um lado os meninos da rua de baixo,
com camisa, do outro, o time do galo assado, sem camisas.
Tínhamos nos preparado toda a semana.
Codi tinha roubado todas as meias das meninas da beira do
rio, o que fez elas ficarem todas alvoroçadas e não era para menos, pois era
sexta feira e elas tinham de se prepararem para os seus clientes.
A bola ficou
grande e leve.
Codi recebeu
esse nome quando decretaram no Brasil o AI-5.
Foi em setenta e cinco. Creio que o pai dele foi o primeiro a sumir.
Talvez por ser dono de banca de revista, a única da cidade, por ler muito,
sabia das coisas, não parava de falar dos milicos e um dia o levaram.
Gostava
quando ele emprestava para nós revistinhas de mulheres
peladas. Levávamos lá para a pedra grande, na curva do rio e enquanto olhávamos as figuras das
mulheres em diversas posições, tocávamos punhetas memoráveis.
Lembro que
codi sempre tinha as figurinhas que completavam o álbum. Os meus por mais que eu comprasse ficava
faltando algumas. Batíamos o bafo. Era ali que eu ganhava as que faltavam. Eu
era bom naquilo. Batia sobre a figurinha com a mão em forma de concha. Não
tinha erro.
E aí Codi
trouxe a bola. Ficamos a manhã inteira treinando faltas, pênaltis, chutes, pois
nunca se sabe quando vai precisar. O
time do galo assado era famoso na retranca. E tinha um beque e um Center forward
muito bom. Nos achávamos melhores do que
eles. A gente já tinha TV preto e branco em casa, eu mesmo tinha visto, Pelé,
garrincha e todos os canarinhos jogarem juntos. Meu pai tinha comprado um vidro
que colocava em frente a TV e ficava um pouco colorida. Só um pouco. Por eu ter
visto ao vivo e a cores pensava saber o gingado deles.
O time do
galo assado não tinha visto. Eles tinham ouvido o Brasil ser campeão em setenta
nos radinhos. Não tinham televisão. Os locutores falavam tão rápido que de
certo eles não aprenderam o gingado e seria presa fácil.
Codi
ensinava as dicas para mim. Bate assim de” trivela” na bola com esses três dedos
de fora do pé que ela pega o maior efeito e engana os goleiros. Agora dá de
bicuda. A bola não vai muito certo mais engana os caras. Agora se quiser bater
colocado bate com o peito do pé.
Eu sabia que
Codi tinha aquela cara amarrada devido ao pai ter desaparecido. E a partir daí
Codi ficou largado, vivia na rua e sabia de muita coisa ruim e por isso todos
os outros o respeitava.
Um dia ele
desapareceu da pelada. Todo mundo ficou procurando. Só fomos achar ele meia
hora depois. Ele estava atrás de uma jumenta com as calças abaixadas. Quando a
gente chegou ele saiu de dentro dela, e mijou na grama seca.
-É para não pegar doença, disse.
-Alguém quer?
Vareta quis.
-Como faz, perguntou.
Codi ensinou. Ele dava verdadeiras aulas.
-Sobe nessa pedra, cospe em cima e coloca. Depois é só mexer. Quando
sentir uma coisa estranha é que gozou.
Vareta
terminou e perguntou:
-Mais alguém?
Ninguém
quis. Aí ele deu uma tapa na anca da jumenta que saiu em disparada.
Fomos todos
tomar banho no rio.
No outro dia
a pelada ia começar. O nosso Goal Keeper
era” vareta”, Centre Back, Pé de anjo, Central Midfielder eu, e o Center forward, Codi.
A Pelada estava
bem jogada bola lá e cá. O Center forward deles deu uma bicuda que a bola veio
numa velocidade e força tal que pegou no meio da minha cara. Meu nariz até
zuniu de dor. Não fiz de rogado. Quando ela ia descendo eu fiz que ia chutar e
dei um balãozinho por cima do back dele e Codi com sangue nos olhos, pegou a
bola descendo com o peito do pé numa força tão grande que passou no meio dos
braços do keeper deles e foi bater no
canto onde a coruja dorme. Saímos gritando gol gol e gol. Estava no meio do
segundo tempo quando dona Zilda mãe de
Codi chegou na beirada do campo gritando:
- Vem filho, acharam seu pai!
Eu tirei o suor que ardia meu olho direito com o dedo e
joguei no chão. Arrumei o calção e sai correndo atrás deles também. Foi a
primeira vez que vi Codi chorar. Ele corria arrancando seu cabelos sem acreditar.
Assim
chegamos todos a beira do rio. Um cara tinha cavado com uma pá uma vala e
dentro dela restos do que fora uma pessoa, um crânio que parecia sorrir, ossos
com resto de carne apodrecida e roupas puídas. Tinha muitos urubus em volta.
Mesmo assim dona Zilda caiu de joelhos, agradecendo a Deus:
-Obrigado senhor! Obrigado! Agora
podemos enterrá-lo e dormirmos em paz.
Só depois de
adulto eu entendi aquilo.
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