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No país do carnaval: a morte de
Arlequim
A coisa aconteceu nos idos de
sessenta e quatro, no mês de agosto, mês de desgosto, nessa época Serafim era
um jovem sonhador. Tinha dezoito anos,
sonhos e ânsia de liberdade. Vivia a vida na idéia de um mundo novo cheio de
amor e paz. Como a gazela que sai todos os dias para ruminar sem preocupação
com a existência dos predadores. Esses têm muita fome e precisam se alimentar.
Esse dia, era de manhã, o sol ameno,
ventos calmos, Serafim estava ruminando idéias, com a mente no mundo da lua,
quando súbito os tanques encheram as ruas, a roldana metálica tilintavam no
asfalto moendo tudo que encontrava na frente e foi dado o toque de recolher e
em seu quarto ele acordou de um pesadelo medonho. Agitou a cabeça como se
quisesse acordar, mas tudo o que estava acontecendo lá fora vinha para seu
quarto na imagem distorcida de um pequeno televisor. Era realidade.
Foi percebendo aos poucos. Como a noite cai: O sol se esconde, os pios
das corujas aparecem junto com os grilos e a luz desaparece restando apenas a
escuridão.
Houvera uma ruptura e o país caiu na
mão dos militares. Uma parcela da sociedade apoiou, principalmente os ricos e empresários.
A igreja também. Achavam que seria uma transição. Até a mídia apoiou.
Era perigoso pensar doutra forma.
Assim, entendeu então que precisava
fugir. Jogou umas mudas dentro de uma sacola, calçou o tênis e quando ia sair
algo o jogou para trás com tanta violência que ele caiu de boca aberta sobre a
cama.
Eram três homens. Os dois que entraram
na frente o seguraram pelos braços e o outro veio para cima tentando arrancar
coisas que não sabia. Fala! Fala agora seu meliante!
O que falar, se o que queria era
somente era viver em paz.
O levaram para diversos órgãos, sofreu
torturas que deixaram marcas físicas e psicológicas e a mais nefasta foi uma
que não havia maneira de escondê-la.
A
marca indelével foi segundo ele, graças a sua falta de sorte “fui o bode
expiatório!”.
Seu “Finzinho” como era conhecido, pau
para toda obra. O que diziam dele.
Sozinho ele relembrava e questionava-se
porque não fugira como os outros. Aproveitaram a frase em voga na época: “Ame-o ou deixe-o!” Deixaram. Poderia ter ido para o Paraguai um
tempo, até as coisas normalizarem. Mas achava que a coisa fosse provisória. Venderia
muamba de todos os tipos para seu sustento.
Não deu tempo.
O sorriso agora forçado, diga-se de
passagem, mesmo quando acordava melancólico. Mas não tinha escolha. Mesmo
triste seus lábios não cobria seus dentes, brancos e largos.
O executor quando o pegou disse-lhe
gritando: “deixe essa cara amarrada, o que estamos fazendo é para o bem de
todos! Desamarremos esta cara! Vamos
homem! E assim os dois brutamontes o seguraram pelos braços e o deitaram numa
mesa e o terceiro com uma faca cega, sem
afiação fez o serviço.
Foi à única vez que o viram chorar. Buscaram
as fichas dele em todas as repartições, em toda América latina, na China e até
na Rússia dos Czares. Nada. Serafim tinha a ficha limpa. Não era guerrilheiro.
Nem miliciano. Nem traficante.
O soltaram. Mas as marcas ficaram.
O lábio superior foi cortado rente ao
nariz. O inferior perto do queixo. Não podia usar barba nem bigode. Piada
triste eu sei. É para quebrar o gelo. Só sei contar história assim. Amenizando.
Apaziguando meus instintos. O euphémein em
grego virou eufemismo.
Mas bola para frente que atrás tem
gente. Resolveu assim mesmo ser feliz. O sorriso era possível, estava
acostumado a andar para um lado e para o outro mesmo se o coração chorasse. Por
mais que tentasse ficar sério, mesmo se fosse um Dom Casmurro, não conseguiria,
pois sem os lábios os dentes ficavam a mostra, no quaradouro. Evitava olhar-se
no espelho pelo menos ao acordar quando a melancolia o tomava e fechava os
olhos, para evitar ver-se sorrindo e babando, babando e sorrindo.
Deus meu, que pulha! Acordar assim
sorrindo sem motivo, andar por aí, ao
léu. Isso é muito irritante. Mas logo pensa nos que não tiveram a mesma sorte, desapareceram como fumaça e a
família procura os ossos sem esperança. Não acharam os restos mortais. Não
tiveram um enterro justo, como manda o figurino: Um velório, o corpo, choro nem
que seja de carpideiras, uma solenidade, orações, uma cruz mesmo de madeira
podre, as feridas ainda abertas como cancros incuráveis.
Ele se conformava por isso. Pelas
histórias dos outros. Logo ele que não tinha coragem de matar nem um inseto
tipo Gregor Samsa, quando acordou certa manhã.
Abriu os olhos ao espelho. Os dentes alvos e grandes. A gengiva hígida. Disse-lhe
o dentista um dia: O sorriso é o cartão de visitas. Mas não assim
permanente. Assim parecia uma máscara.
Seria ele um monstro que nem podia beijar? Outros vivem cheios de mulheres. Muitas vezes quando volta à
noitinha vê pelos parques e jardins casais se beijando, eles se limitam ao prazer
intenso do ósculo. Ele não. Como beijar
sem os lábios? Só se fosse à mordidas lacerantes, mas, todas fugiriam dele.
Voltou a fechar os olhos. Bom, tenho que trabalhar; economizar bastante
para realizar o meu sonho. Até lá vou empurrando a vida assim desse jeito. O
tempo passará de qualquer jeito. Salta da cama, tenho que ir, a fome não
espera, ela nos engole sem dó. Ia sobrevivendo. Fazia serviços gerais. Não
tinha preguiça com ele. Limpava quintal, fossas, capinava, e todo tipo de serviços
próprios para máquinas. Nem animais conseguiriam. Sempre quando voltava de algum
serviço, mesmo exausto, o chamavam na rua. Ele atendia de pronto.
Na maioria das vezes em gracejos:
“Seu Serafim
cuidado com os home hem! Eles estão de olho! Se te pegarem agora vão tirar todos seus dentes!”.
Ele abanava a mão em frente à cara suja
como espantasse mosquitos e gargalhava contente. Sua gargalhada parecia àqueles
brinquedos de cordas, rouca e borbulhante, o que fazia muitas vezes as crianças
assustar-se. Os adultos não. Riam dele até dá dor de barriga.
-Não liga filho! É o Serafim!
Muitas vezes era toda uma família que
vinham da missa de domingo, com as melhores roupas, os melhores perfumes,
corados, saudáveis. E divertiam
sobremaneira.
A reposta as pilhérias eram inaudíveis.
Tente falar sem os lábios meus caros
que vão entender o que estou falando. As palavras saíam sem consoantes e eles caiam
nas gargalhadas. Ele também parecia divertir-se. Embora os olhos enchessem de
lágrimas.
Quando rimos desencadeamos uma reação
no sistema límbico, região do cérebro que controla as emoções ou o conjunto de
nervos que liga a mandíbula às glândulas salivares acaba estimulando a glândula
lacrimal. Estava escrito no livro de ciências. Deve ser isso o motivo do seu
riso. Um dos muitos livros que ele achou jogado no lixo.
Compreendeu. Por isso choramos quando
rimos muito.
Um palhaço dos bons, diziam-lhe
batendo em suas costas. Um pulha! Gritava outro.
Depois disso ele seguia seu caminho.
Era o que podia fazer por hora. Ia vivendo de um canto a outro sem fazer mal a
ninguém.
Mas em surdina ele juntava todo o
dinheiro que ganhava para realizar o sonho de sua vida. Anos e anos.
Foi no
natal.
Olhou para o relógio. Em fim chegou o
dia! Eram cinco para a meia noite e dava apenas para
ele sair correndo com o saco nas costas e todas as traquitanas que levava no
seu interior. Estaria preparado? Na rua, viu todos os festejos, as luzes
brilhando de todas as cores e tamanhos; talvez tudo fosse diferente. Sim, mas
seria inimaginável sentir tristeza aquela data que tanto lembrava sua terra
natal seu jardim de infância.
Bom, não era hora de pensar noutras
coisas, teria que ter foco no que ia fazer para não ocorrer nenhum erro. Tinha
treinado algum tempo, o tiro deveria ser certeiro, justamente no coração das
pessoas.
Escolheu
essa data, pois segundo ele os corações estariam moles, ele repetia como um
mantra. “Estão oles!”. A falta dos malditos lábios.
Quando deu meia noite, o sino da torre
completou as doze badaladas e as pessoas desejavam feliz natal, ele saiu do
beco escuro com o saco nas costas, e foi
distribuindo flores e presentes a quem passava, saltando, sorrindo e chorando.
De
início as pessoas ficaram perplexas, sem ação, mas depois foram aceitando de
bom grado.
Esse
dia ninguém soltou pilhérias com ele. Com certeza foi o dia mais feliz de sua
vida. Ele quis desejar feliz natal, mas não conseguia.
Serafim ficou envergonhado ao ouvir a sua voz, as palavras faltando
sílabas, ouviam-se bem as vogais semelhantes um gato miando no telhado, ecoando
em volta, coisas sem sentido e nexo.
Essa noite ele dormiu tão bem que não
notou a chuva cair até pela manhã quando os pingos vindos da janela o
acordaram. Estava satisfeito. Tomou o café rápido e saiu para a rua.
A rua estava cheia de crianças pelos
passeios e praças brincando com os brinquedos de natal. Ele passou ao largo.
Alguém o chamou. Está sabendo da última,
disse-lhe.
Alguém
da sociedade local, homem poderoso, resolveu pedir aos mandatários, veja você
mesmo no papel: que não era possível vê tanta felicidade, naquela cara
repugnante, uma coisa horrível de se ver, andando por ali, nas praças e ruas,
assustando as nossas crianças. E pedia encarecidamente em nome da população,
que em plebiscito resolvesse a questão, questionando os honoráveis cidadãos, dizia
o ofício assinado e datado por muitos, para responderem sucintamente, sem
embromação, se sim ou não, a
obrigatoriedade do uso para Seu Serafim, de uma máscara para encobrir o terrível
aleijão. Que não era possível cruzar com ele andando daquele jeito com a boca escancarada
cheia de dente e babando pelos passeios
e praças públicas de nossa bela cidade. Estava
espantando os turistas. E fazia por fim uma observação: Muitas vezes dava dó,
mas na maioria das vezes dava nojo.
Serafim leu tudo aquilo sem dizer uma
palavra.
A população não se furtou ao pedido e
na câmara, houve grandes debates. No final ganhou o sim. Sim a partir daquela
data, Seu Serafim, seria obrigado, com risco de multa ou prisão em locais públicos a esconder de qualquer
forma seu sorriso, usando para tal, dizia por último o ofício: qualquer coisa,
mesmo um lenço daqueles que os
bandoleiros usavam para assaltar no velho oeste.
Na segunda feira bem cedo o oficial levou
a resolução.
Vale dizer aqui que Serafim era homem culto.
E em suas andanças recolheu a maioria dos livros que mantinha em sua
biblioteca. Gostava de lê a maioria dos filósofos. De Nietzsche repudiou seu
niilismo. Ele acreditava que tudo tinha sentido, principalmente a existência
humana. Ria das idéias dele a respeito de Deus. Como Santo Agostinho, ele
achava que era um predestinado.
Com David Hume
aprendeu que a razão seria o alicerce da sociedade.
São Tomás de Aquino com sua ética e metafísica
e teorizando como a realidade é constituída.
Georg Hegel
com a fenomenologia do espírito, suas idéias de explicar o mundo real.
Com
Descartes aprendeu a frase que pensava as noites de solidão: Penso, logo
existo. Sobre Platão uma nota num canto, talvez para lembrá-lo. Lê mais minuciosamente esse filósofo.
Kant estava
ali pregado no muro. Tinha grifado a proposição de um princípio universal que
não causasse danos para as outras pessoas.
Aristóteles,
numa espécie de redoma, protegido dos mosquitos que rondavam o ambiente.
Ele dizia
que lia tudo, até bula de remédios.
Além de
todos esses autores tinha um bem atual, datava de mil novecentos e quarenta e
sete. A capa tinha sido arrancada, aliás, não dava para advinha-lo um livro, a
não ser pelo texto comum em todos: Todos os direitos reservados. Proibida a
reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer
meios, sem prévia autorização por escrito. Proibida a venda desta edição em
Portugal e resto da Europa.
O autor começava com a letra O e o sobrenome era Carvalho. As folhas que foram encontradas não
davam pistas. Estavam numa lata grande, onde estava escrito: manteiga natural e
sem sal, que Serafim usava como sanitário. Páginas estas todas sujas de excrementos.
Ele usou para limpar-se.
Mas isso não tira o mérito do
escritor. É só objeto encontrado na cena onde se fez a perícia para entender o
que acontecera. Cada um tem suas funções. Seria honra de ter uma de suas páginas usadas em tão relevante fim?
Serafim, lia nesse interlúdio de ócio, além desses livros técnicos, também
a Commedia dell'Arte. Nada melhor para esquecer a realidade que ele vivia. O que o fez se apaixonar por esses personagens principalmente, Colombina,
seu amor platônico.
Quando
veio a ordem de esconder-se atrás de uma máscara ele logo escolheu que seria o Arlequim. Pela sua leveza.
Pela sua paixão.
Assim correu numa loja dessas onde se
vende de tudo e comprou a máscara, e passou a usá-la diariamente. Todos
gostaram. Melhor assim, disseram: E ia ele pra baixo e para cima sorrindo da
vida que levava.
Mas o tempo
é senhor da razão, da ferrugem, da rotina, das rugas...
Assim os mesmos cidadãos
disseram: não dá, disseram. Aquela cara sempre sorridente dava nos nervos. É
preciso mudanças.
Que escolha
outra.
O que fazer pensou
Serafim para agradar a todos?
E correu a loja o mais depressa
possível. Pierrô. Agora seria o pierrô, amante de Colombina.
Logo disseram: Isso é bom! Tudo
resolvido! Pierrô está bem! “a tristeza é razoável, já a felicidade fere como
faca”. A tristeza une pela infelicidade. Esse está bom. Assim não nos fere com
sua alegria, diziam.
Assim mataram o Arlequim, mas Serafim
encontrou forças para divertir as crianças na rua. E se divertia ainda.
Só à noite, ao voltar para casa, todo o
dia mirava-se no espelho e via aquela lágrima caindo silenciosa e foi
entristecendo-se.
Sempre quando estou contando essa
história e chego aqui, desculpe, minha voz embarga, pois me lembro dos textos
daqueles livros saltando em negrito e do sorriso dele, a bondade, me dá um nó
aqui...
Encontrei-o ali, naquela árvore, pendurado
numa corda, enforcado.
O bilhete dizia: Eu só queria ser
feliz!