sábado, 8 de outubro de 2011

A ilha das crianças perdidas

          Nem parecia o dia que ia mudar minha vida. De madrugada minha mãe levantou como sempre fazia, ia para o trabalho, meu pai não aparecera esta noite, devia estar socado em algum boteco da vida. Ela foi dizendo que já ia, que quando me levantasse alimentasse o Pedro, meu irmão menor, que tomasse café e escovasse os dentes, e quem tomará conta de mim, pensei, ainda olhou-se no espelho pregado na parede de tijolos aparentes. Era bonita. Tá mãe eu disse, abrindo os olhos com preguiça, uma aranha tece sua teia entre o caibro e a telha de amianto. Ainda me disse, Ah! Faz os deveres de casa também e estuda um pouco. Disse novamente tá mãe, e virei para a parede bocejando. Na parede pintada de cal branca pendurada, uma traça. Um beijo molha minha face.

          A mãe fecha a porta atrás de si, puxando o véu negro da noite. Os passos, chuva que vai parando. Tenho ainda tempo para dormir. Para continuar o sonho. Espanto uma nuvem de pernilongos que me sugara a noite toda. Relembro o sonho. Montado em um cavalo alazão, correndo pelas planícies, de uma terra desconhecida e distante. Deve ser a terra dos meninos felizes. Acordei com o chamado da mãe.

          Pedro faz barulho sugando e estalando a língua. Engraçado até. Ele ri. Faz isso quando está com fome. Pego a mamadeira de dentro da água morna, e com zelo sem acordá-lo enfio em sua boca. Ele suga quase sorrindo.

          O tic e tac do relógio em cima do criado, cinco e meia, decido dormir mais um pouco. Uma malha a mais a aranha teceu. A traça tinha saído e andava lentamente sem cair da parede. Uma edifica a outra destrói. Galos cantavam.

          Acordei com o sol quente por cima da telha, coando os raios pelos buracos como funis amarelos. Nas réstias voavam partículas minúsculas clareando pontos no chão de terra batida. Vozes de crianças na rua. 

          Pedro levantou-se, olhou em volta, pegou o bico e colocara na boca deixando pendurado um velho pano. Gostava de sentir o cheiro. Abre a porta. Uma lufada de luz invade o pequeno barraco. Fecho os olhos para não cegá-los. “Fica aí! Não vai para a rua, gritei”. Levantei sem escovar os dentes. Fiz os deveres, correndo. Da rua a claridade do sol, muita vida lá fora. O céu universalmente azul, sem nuvens, mostrando sua imensidão. Urubus circulavam. Pedro atento às evoluções.

          Felício... Pausa. Sorri com a língua entre o bico e o lábio. Quê? Perguntei. Queria voar disse ele, como se fosse a coisa mais fácil do mundo. Deve ser tão bom.

          Meninos no passeio brincam de amarelinha. Pego-o pela mão encosto a porta, sentamos no meio fio, à sombra. O menino pula a casa, riscada com giz no chão, já está perto do céu. Pula em um só pé, sem perder o equilíbrio. Passara do purgatório. Súbito uma frenagem brusca. Gritos de socorro. 

          -Deus! É Pedro! Peeedro! 

          Vizinhos acodem. Mil cabeças emergem nas janelas. Respiram aliviados, não são seus filhos. Gritos de dor e de espanto. O tempo uma eternidade. A ambulância chega. Ao pegarem meu irmão, deixaram cair o pano sujo de sangue. 

          Tento recordar como tudo aconteceu. É um turbilhão em minha cabeça. Só sei que aquele céu azul indecifrável, aquele sol morno, toda aquela natureza viva em volta não era capaz de satisfazer-me. Era como um quadro colorido na parede. Abstrato. Frio. Indelicado até. Não que eu não gostasse de arte. Mas a beleza também é cruel. Cheia de regras. A beleza é insaciável. Sempre quer mais. E tudo depende dos olhos de quem a veem. 

          À noite meus pais chegaram do hospital. Queriam saber de tudo. Mas nem eu sei como aconteceu. “Eu tava perto dele quando ele correu para o outro lado”. “Foi muito rápido!” Meu pai gritava, fedia a bebida. Virei a cara para não senti aquele cheiro horrendo. Foi aí que me deu um tapa.

          -Era sua obrigação caralho! Gritava encolerizado.

          Protejo-me com os braços magros. Tomo um chute e caio. Depois outro e outro. Quando estou no chão ainda tento explicá-lo: “Não foi minha culpa!” Ele pisa em mim, como se eu fosse uma barata. Tudo me dói. As costelas, a cabeça... “Tudo passa eu sei. Pedro não vai morrer. Morrer, que palavra feia. Morte! Morte! Morte! Desaparecer. Finar-se.
Uma grande fila. Que pensamento bobo meu Deus. “Sendo destroçado e pensando na grande fila que todos estamos, só esperando o ano, o mês, o dia e a hora determinada”. Eles gostam de mim. É excesso de cuidado. De zelo. Vou melhora. Prometo. “ Santo anjo do senhor meu zeloso guardador”... Rezei. Vou estudar mais. Preciso melhorar minhas notas. Tenho chance. O padre falou que meus pecados eram pequenos, e me mandou rezar dez padres nosso e três aves Maria.

          Mas não contei meu pecado mais grave. Conto agora. Sim. Desejei a morte dele. Do meu pai. Todas as vezes que ele me batia como agora. Ele judia muito de nós, de minha mãe, quando bebe. Um dia sem beber ele me deu um beijo. Como o de Judas. Ainda falou que gostava de mim. Que queria me fazer um homem de bem. Só se for do jeito dele. Um dia pensei em matá-lo. Quando ele pisou no pescoço da mãe. Mas não quero pensar nisso não.


          Mas a vida não era só infelicidade, não. Naquele dia como agora vai acontecer. Eu sei. Sinto que vai acontecer. É meu truque. Maravilhoso. Que eu acreditava só existir nos contos de fadas. Nem merecimento eu tinha. Não sou nenhum príncipe. Nem anjo. Teve até um tempo, um ano atrás mais ou menos que era muito mau; era conhecido como verdadeiro exterminador de passarinhos. Sem dó. Saía pela manhã, foi bem antes de Pedro nascer, e voltava da mata com o embornal lotado de rolinhas. Era para sobreviver eu sei. Vendia para o dono do boteco, lá no pé do morro. Seus fregueses gostavam, dizia.

          Depois que aprendi o truque parei. Toda criança aprende algum truque. Conheci alguns que engrossavam sua a pele como casca de árvore, para não sentir os toques libidinosos dos pais. Mas como eu ia contando, senti um frio nos braços. Depois uma febre repentina. Pensei que fossem catapora, aquelas bolhas se rompendo, eu escondido no fundo da rede, com vergonha da minha cara. Mas já tive disse mamãe. 

          Então vi que eram penugens saindo dos poros. E rápido se alongaram. Observando bem eram penas. No início pensei que era sonho, até belisquei-me. Não tinha aquele pressentimento de que ia acordar-me. 

          Saí para o quintal e alonguei os braços. Indubitavelmente eram asas. Enorme. E foi aquela noite que fiz meu primeiro voo. A perspectiva dos pássaros é linda. Muito ampla lá de cima. Primeiro bati os braços fraco. Receoso. Vigoroso depois. Que bom! Podia voar. Que liberdade. Dei rasantes arriscados. Quase tocando o chão.

          Hoje iria mais longe com certeza. Ódio do meu pai. E agora me sinto mais seguro. As vertigens sumiram. Não tenho mais medo de altura. Levantei-me e abri a janela. A brisa tocou meu peito emplumado. Joguei-me. Seguro. Subindo. Deixei o litoral para trás. Uma grande massa azul e liquida. Era o mar. Cheio de corais. Os rasos e os fundos o coloria. As gaivotas voando. As estrelas pontos de luz.

          Não sei quanto tempo voei. Uma pequena ilha apareceu. Que bom. Poderia pousar ali. Achava-me exausto. Quando aproximei vi que a ilha tava como um pequeno torrão de açúcar rodeado de mosquitos. Eram todos iguais a mim. Fiquei os observando. Todos faziam um planeio desciam retos e tocavam os pés pousando no chão. Para voar corriam em um platô e se jogavam no vazio.

          Aproximei-me desconfiado. Acenaram-me. Estavam tendo aula de voo. Voar é uma arte. Todos gritavam em uníssono: Decolar é opcional, mas pousar é obrigatório. E riam.
Um que parecia o líder falou:

          -Hoje vamos fazer a grande viagem em direção sul.
          “Todos aplaudiam batendo as asas, claro”.
          -Você! Chamou-me.
          -Treine o voo, pois na viagem que faremos enfrentaremos muito perigo. Já que está começando hoje, temos que dá várias dicas. 

          Levou-me ao platô. Corri e me joguei. Um frio na barriga. Bati as asas com força. “ Eles não sabiam que há dias vinha treinando.”

          -Suba! Suba! Gritou o líder. Eu subi o mais alto que pude. Dei um rasante. Fechei as asas, para cortar o atrito e desci vertiginosamente. Quase toquei o mar.
          -Bravo! Aplaudiram.
          -Agora como os beija-flores! Parados no ar. E aprendi várias manobras.

          Fomos deitar que no outro dia bem cedo iríamos viajar. Não consegui dormir de tão eufórico. Não é todo dia que se pode voar. Fiquei olhando minhas asas. Eram longas e esguias. Como pombo. Eram brancas. Na entrada da caverna, o anoitecer, o sol vermelho, e a imagem de milhares de aves chegando ao pôr do sol.

          Não era uma ilha comum. Era uma grande pedreira, escarpada, e do lado mais alto, onde as ondas se quebravam em estrondos, mil buracos nas pedras. Dali se via o mar alto, se perder de vista. E quando o vento trazia as ondas caudalosas, assoviava lobregamente. De manhã o sol esticou-se na superfície, trêmulo e brilhante uma hora amarelo outra prata.
Cedo o líder gritava. “Os novatos mais no centro. Todos entendidos.” Uma grande revoada começou. Parecia bando de andorinhas. Passamos sobre o morro. Os barracos eram quadrados minúsculos. Todos ainda dormindo. Senti saudade de Pedro. “Um dia o buscarei ”. Vontade de ir ao fim do mundo. Sempre sonhei em encontrá-lo. Quando perguntava a alguém onde papai Noel morava, falavam rindo: No fim do mundo! Um dia vou lá, pensava. Mas a liberdade é uma coisa engraçada. Lutamos contra tudo para tê-la, e quando a temos não sabemos usá-la. É como se estivéssemos à beira de um precipício. 

          Foi aí que soube que voar não era coisa fácil. Tem seus estudo e suas experiências. Mesmo tendo minha envergadura. Aprendi porque os iniciantes ficavam atrás. Quando via os patos selvagens voando perguntava: Porque alguns vão atrás? Agora sei. A batida das asas de quem está na frente gera uma corrente de ar que impele para cima a turma de trás.
Aprendi muita coisa. Estávamos voando há dias. Exaustos o líder nos chamou, para aproveitarmos as colunas de ar quente – as correntes ascendentes – e ganhamos altura, voando em círculos a centenas de metros de altura. Não precisávamos bater asa. Era só planar. Agora compreendia os urubus. 

          À noite guiávamos pelas constelações. O cruzeiro do sul. E sempre há estrelas no céu. De dia o sol nos ajudava. Também seguíamos as formações rochosas, os arquipélagos, as matas, os rios.

          Certa manhã, chegamos numa estranha ilha. Parecia deserta. Habitadas por plantas que falavam. Tinha de todas as idades. As cascas de seus caules eram grossas. Depois soubemos que eram crianças metamorfoseadas para se defenderem das caricias libidinosas que os seus pais faziam. Passamos a noite aí quando descobrimos o quanto eram amáveis.
Seguimos viagem dois dias depois de recuperarmos as forças. Voar gasta muita energia. Tudo tranquilo. O sol fresco, as montanhas já a víamos ao longe quando veio uma tempestade e um grande vendaval. Tentávamos manter a rota, mas o vento de través é muito perigoso. Pousamos na ilha depois de muitas tentativas. Aprendi como a cauda é importante no pouso.
Era a ilha dos meninos encantadores de ventos. Eles queriam nos derrubar. Pensavam que eram os grandes gaviões. E aí fiquei com medo. Os gaviões são predadores ferozes. Senti falta de ar. Uma voz como a da minha mãe, implorando para que eu voltasse. Logo quando eles souberam quem éramos, tranquilizaram os ventos. Mas nem eu sabia quem era. Se pássaros ou se anjos. O céu ficou claro, sem nuvens. Só o cheiro de sal e peixe. Gritos de gaivotas ao longe.

          Quando saímos no fim daquele dia, nem imaginávamos o que iríamos encontrar pela frente. Via os rios, pequenos filetes escuros, varizes da minha mãe, contornando as montanhas, no meio das matas, as nuvens pequenos nacos de algodão, se doce encheria a barriga. Súbito uma nuvem escura. Olhei em volta todos voavam assustados fugindo de um grande falcão. Voamos o mais depressa que podemos. Sabia que ele era muito veloz, em caça, quando mergulha alcançam uma velocidade vertiginosa. No meio de muitos ele me escolheu, talvez achando que eu era o mais inexperiente. Eles conhecem. Seus olhos veem de longe. Teria que usar toda minha astúcia e treinamento. Fechei as asas num mergulho. 

          Abandonei-me a força da gravidade. Ele atrás com os olhos cinzentos. Lembrei-me da aula de física. Quando ele parecia que ia me alcançar abri as asas aumentando o atrito com o ar, e ele passou batido com suas garras afiadas. Deu a volta. Olho nos olhos. Era meu pai. Os olhos negros tinha um brilho diabólico. “ Vou te pegar, malandro!” Voei rasante, penetrando na floresta. Voava da direita para a esquerda, de cima para baixo, como um pêndulo. Era minha chance. Pequena eu sabia.

          Meu pai tinha verdadeiras garras. Machucou minha mãe, meu irmão e eu. Teria que ludibriá-lo. Voei o mais depressa que pude e quando parecia que ia chocar-me numa árvore, no último segundo mudei de proa e o grande falcão, de garras terríveis, olhos sombrios, bateu o peito numa lasca de árvore e caiu por terra, ferido de morte.

          Não olhei para trás nenhum momento. Não valia a pena. Juntei-me aos outros na viagem para o sul, agora mais perto, já víamos as pradarias, as planícies, e uma voz longe me gritava: “Volta Felício, volta!” Por segundo pensei em voltar. Por minha mãe e meu irmão. “ Volta Felício pelo amor de Deus!”

          Depois olhei as pradarias, o sol nascendo... Uma grande ilha. “Não! Deixa-me viver aqui. Se sonho não quero acordar. Se vida, viverei aqui na ilha dos meninos perdidos.” Bati as asas mais fortes. 
          “Aqui serei feliz.”











terça-feira, 27 de setembro de 2011

O Poeta



Senhor redator do excelente... Não. Senhor redator do conceituado jornal a gazeta de... Tomei a liberdade de escrevê-lo... Acredito que o senhor não me conheça. Sou uma dessas pessoas comuns que preferem sonhar a viver... Não quero tomar seu tempo creio seja precioso... Assim sem mais delongas a finalidade é que mando uma poesia, com estilo, pureza e amor. Peço o favor se possível colocá-la num canto nem que seja na seção de desaparecidos para que os versos encontre talvez um coração aberto, entre tanta violência, no langor do dia que se finda.

Leia com cuidado e dedicação, pois só agora depois de meio século resolvi mostrá-las. Não serão jamais perfeitas como “O corvo” nem dilacerantes como Drummond, nem tão emotivas como Pessoa, mas o meio termo uma coisa como entre a tempestade e a calmaria, entre o amor e ódio entre a vida e morte. Soará como o sino nos dias de finado, na canção de esponsais ou no réquiem para os mortos. Rompendo todas as amarras, depois de todas as emoções defraudadas, varando matas, desertos de inquietações.

Alberto alongou-se na cadeira se espreguiçando, enquanto calculava que a missiva sendo emitida ao destinatário nessa mesma quarta, talvez no domingo ou mais tardar na segunda ela já estaria publicada por sorte e se Deus quisesse num recanto nobre do jornal, naquela página que ao abrirmos, damos um tempo na velha rotina de notícias trágicas, adentrando num oásis, com palavras cruzadas e versos em um momento lúdico.

Cuidadosamente, passou a língua úmida na parte autocolante e apertou uma página na outra fechou com a ponta dos dedos. Lacrada pensou. Não tem mais volta. Tomou uma xícara de café, saboreou-a e já calculava a emoção que ia distribuir com os leitores, que a partir dali, a poesia impressa, esperariam os dias seguintes ávidos por novidades.

Não almoçou aquele dia, de tanta ansiedade. Pegou o velho guarda chuva e ouvindo os pingos no tecido esticado caminhou pelas ruas desertas. Passou na padaria pegou dois pães. Morava só. Ele e o cachorro, um pequinês preto. Um fazia companhia para o outro.

Era ele primeiro que ouvia suas poesias. Na verdade o único, pois sempre teve vergonha de mostrar para os outros. Quando lia, o coração disparava, suava frio, com tanta emoção, e pensando que jamais se mostraria daquela maneira, se um dia, ficaria refém de todos.

E assim os versos eram guardados depois numa prancheta preta que agora virara com os anos um grande calhamaço marcado no frontispício com a frase: Proíbo-os terminantemente de publicarem qualquer dessas coisas, depois de minha morte. Talvez se lembrando de Kafka que foi traído pelo amigo, e foi publicado indiscriminadamente, e mostrado a população todo seu interior por assim dizer, suas vísceras. Não queria correr esse risco. Se, deveria ser em vida, recebendo todas as distinções que lhe seriam devidas, como a fama, dinheiro, mulheres e principalmente o reconhecimento que é o que todos almejam.

Por isso resolveu escrever para o jornal. Era um jornal pequeno da cidade do mesmo porte, mas com sorte, tomaria forma, e com o tempo, galgando degrau por degrau, alcançaria os grandes.

Voltou de tardinha, quando os galos vão aos poleiros, e vira a lua nascer e todas as estrelas. Lembrou-se que, “certa hora da tarde era mais perigosa”, escrevera Clarice. Por onde passava desejava boa noite aos transeuntes, um dia me reconhecerão e não terão essa frieza, mas uma dor o sufocava no peito. Seria publicado? Gostariam dele? De sua arte? E essa pequena preocupação ia crescendo em seu coração como erva daninha. Tenho que me preparar, pensava. Os escritores que conhecia tinha nas fisionomias o que escreveram ou escreviam. Era como o retrato de seus sentimentos.

E ele era singular. Uma testa curta, sobrancelhas largas, o que fazia ter a cara triste, de abandono, os dentes separados, calvo, olhos castanhos, comuns, e pelos por todo o corpo como o parente mais próximo os orangotangos. Só a voz era macia, romântica até, e isso fez um dia passar por constrangimento.
Atendeu ao telefone, uma voz de mulher, carente querendo alguma informação. E da informação, ela falara depois que tudo foi culpa daquela voz pastosa, sensual e de telefonema em telefonema, decidiram se conhecerem e afinal partiram para um encontro. Quando frente a frente, a mulher, o rosto encovado, daquelas de olhos sonhadoras, cabelos partidos ao meio, os braços sem cor, os olhos amendoados, ao vê-lo, mudaram de direção, envergonhados, e o que saiu fora essa frase que jamais esquecera: “ Não foi o que eu esperava!” A voz... Não condiz com o dono. E sem mais, se despediram.

Nunca o fim de semana fora tão longo. No domingo levantou-se cedo foi à missa das sete, passou pelo jornaleiro, fitou a capa dos livros, um poderia ser o seu, pagou o jornal, leu as manchetes, se torcesse sairia sangue com tanta violência, e leu o horóscopo. Câncer: de 21 de junho a 22 de julho. Combata o nervosismo com exercícios e meditação. Boas notícias vindas à semana que entra. O mistério de uma semente que permanece quieta e crescendo sob a terra, (mas que guarda uma promessa de futuro para o amanhã) está contido no simbolismo de Câncer, que consegue visualizar o que ainda não aconteceu. Essa visão do invisível, esse poder de imaginar e a retenção da memória caracterizam este signo de sensibilidade, impressionável e instável nas emoções como as fases da Lua, o astro que preside Câncer.

O universo está ao meu favor pensou. Agora é só me concentrar no que eu quero, e pensando assim sentiu uma grande liberdade, uma vontade de gritar coisas que estavam sufocadas há anos, caminhou na penumbra, via a sombra de um grande escritor, o sol as costas, fazendo se alongar no piso de asfalto escuro.
Quando abriu a porta o pequeno cachorro latiu o desconhecendo, mas depois do assovio, balançou a cauda benevolente. Jogou o jornal sobre a mesa, colocou ração no prato e empurrou com o pé para debaixo da mesa. Bidu raspou o prato. Depois ficou por ali ao seu redor. E as horas mortas se foram. Sabia que era hora. Alberto retirou do fundo da gaveta sua última criação, e declamou. Bidu sentou-se sobre as pernas traseiras e abanava o rabo com a língua para fora.

Os versos entrecortavam o silêncio da noite. Quando Alberto notava que aquilo poderia ser arte pura,agradar a quem lesse, arrepiava-se os pelos do pescoço. Ou engolia seco, imaginando os aplausos de todas as direções. Aplausos! Aplausos! Aplausos! Nessa hora ele ficava como um maestro com a batuta no ar, dando ritmo a orquestra.

Deitou-se mirando pela janela uma estrela. Sentiu-se como uma; pequeno na imensidão. O que somos? Qual nossa finalidade? Perguntava-se. Questões tão antigas e tão atuais no universo humano. Serenos são os animais que não tem tais questões para resolverem. Veja Bidu. Dormindo agora. Nada de preocupações. Amanhã acordará, comerá o que lhe der, depois correrá de um canto para o outro, e se por acaso encontrar uma fêmea, tentará sem custo seu gozo.

E a liberdade. O que afinal procuramos? Se o que precisamos para viver é tão pouco. Muitos vivem a vida toda num pequeno espaço, entre o trabalho e a casa, entre a casa e o trabalho, quietos, sem reclamação. Mas ai de quem os proibir a passar desses limites. Aí uma força bruta instiga a curiosidade latente, e aquele espaço já não é o bastante, quer mais e até quebrar esses limites, a partir daí se sentirão infelizes.

Eu mesmo, se não fosse essas leituras, esse sonho de vencer, de ser alguém na vida seria muito mais feliz. Não teria essa dor no peito, essa ânsia de ser reconhecido, do sucesso, seria um cidadão comum, que trabalha dia a dia, da casa para o trabalho e do trabalho para casa. Mas não, resolvi sonhar, talvez com a utopia, pois, além disso, há muita coisa para ser conquistado, um sorriso, um aplauso na mente humana.

Alberto acordou cedo, deu comida ao cachorro, riu dos pensamentos da noite, vá Bidu, procure uma amante, abrindo o portão, saindo os dois para a rua. Ele correu para a banca de jornal. Bidu o seguiu um pouco, cheirando a grama, uma esquina, marcando o território, quando viu uma cadela, correu atrás e ficaram se cheirando. Alberto riu novamente. Sentia-se mais leve, suas entranhas seriam mostradas, amiúde. Mas se o custo do sucesso fosse esse, que lhe dissecasse, todas suas fraquezas e sentimentos.

Nada. No jornal não tinha uma linha sequer de seu poema. A manchete era: Mãe abandona filho, recém-nascido no lixo. Conta os detalhes. Veio do norte, pobre, mora na favela, não conseguiria sustentá-lo. Lembra de uma vez que descobrira uma ninhada de ratos no porão de sua casa. Como cuidam bem de seus filhotes. Arriscam-se serem caçados pelos gatos, fogem das ratoeiras, descem por canos, para cuidarem dos filhotes. Não os abandonam assim. Só nas crises de alimento, aí tem menos filhotes.

Confirmou olhando todas as seções que não havia notícias boas. Porque somos assim? Preferimos as notícias más. Violência, violência... Na parte que falam das pessoas só falam coisas decadentes, maliciosas.

Escreve outra carta. Muda o tom. Mais áspera. Contundente. Para tocar o homem tem-se que usar das mesmas armas. Dos mesmos elementos. Faz uma poesia dramática, rima pus com luz, sangue com mangue, cidade com infelicidade, morte com corte, da navalha na carne com arte.

Esperou mais uma semana. Nada. A Manchete era: Bala perdida atinge menina que ia para a escola. Morena, gostava de ler, em sua mochila foram encontrados camisinhas e um livro de poesia.

Do livro não se falou mais nada, nem da poesia. Da menina que se chamava Maria, uns falaram que era uma desavergonhada. Tão nova levando na bolsa camisinha. Como se o amor fosse vulgar. Hipócritas! Hipócritas!
E se... Pensou longamente. Escrevera uma última carta. Fria. Monótona. Lera para Bidu. Ele balançou-lhe o rabo. Arrepiaram-se os cabelos. Pedras no caminho. Montanhas imóveis, duras, concretas, enormes.

Naquela manhã de domingo a manchete no jornal: “Homem suicida-se em seu pequeno quarto, na rua tal, quadra tal”. Continuava: Um solitário. Tendo como amigo um pequeno cachorro de nome Bidu. Com muita insistência é que conseguiram tirar o corpo, já pálido e duro, pendurado na corda, pois o velho amigo o protegia de todos que se aproximavam. Quando o levaram no rabecão, ouviu-se um uivo triste que fez
alguém exclamar: “Sente tanta dor como se fosse humano”.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Dez coisas que levei anos para aprender:


Muitos escreveram inclusive Fernando Veríssimo, e eu:

Dez coisas que levei anos para aprender:

1-Os homens só se acertam quando tem os mesmos interesses.
2-Num papo em grupo, todos esquecem os próprios defeitos e falam dos outros como fossem perfeitos.
3-Amigos de verdades ás vezes enchem o saco, nunca os dedos da mão.
4-As invenções vêm das necessidades dos homens. Isso é a pura verdade, sendo assim se fosse imprescindível inventariam a paz.
5-A verdade é uma só. O ponto de vista é que muda dependendo do personagem.
6-A mulher é ótima mãe, boa amante, mas como esposa deixa a desejar.
7-No diagnóstico o médico não olha a cor da tez. Olha a cor do dinheiro.
8-O amor é físico, logo degenera.
9-Se a morte não for o ponto final, com certeza será uma reticência.
10-Os olhos veem o que ver, o cérebro transforma no que quer, o coração dilui e finalmente o ânus expulsa.
Tentem vocês também e boa sorte.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

O último texto


Meu último texto

Li duas crônicas de ótimos escritores, Rubem Braga(Meu ideal seria escrever...) e Fernando Sabino(A última crônica)onde eles discorrem como queriam sua crônica ou poesia se soubessem que seria a última.

Eu no afã de aprendizagem correria de pupilo, essas coisas de iniciante, perdoem-me, escrevi também, ladeando ombro a ombro com tais.

Enorme foram suas sombras, mas espero que tirando as influências que podem até ser maléficas, estruturei meu texto, sofrido, saído palavra por palavra com dificuldade e ao mesmo tempo corrente com tão enorme proximidade.

Como falam os que gostam da gente “vá pela sombra” sabendo que andar livre e ao sol requer experiência, fui pela fresca aproveitando uma sombra ali outra aqui. Eis o texto:

Queria a escrita pela escrita. Palavras pesadas que fizesse sofrer e amenas que fizesse sorrir. As letrinhas caíssem do teclado como uma chuva branda e às veze tempestade. Cheio de adjetivos para colorir. Verbos e verbos ação. Substantivos muitos. Sem eles como nomear?

Só vi um problema que me deixou atarantado. Observem bem a pontuação. Notaram? Desde cedo vi. Dizem coisas que às vezes não queremos. Um perigo. Uma vírgula no canto de um olho é lágrima ressecada. E nesse árduo trabalho diário, tais palavrinhas saíssem pretas e tortas e como amontoados de iiiiiiii ferissem como tachas caídas no chão, cheio de vírgulas chorosas.
Saudade, saudade e saudade. Ah! Palavra bonita. Escreve quem a sente. Amor rima com dor já disse o poeta. O ponto é uma barata no porão. Não teria ponto, ficaria um texto aberto sem reticências, pois são três baratas em filas indianas. Elas vêm andando...

Til teria alguns. Nuvens pairando no ar. Sonho, sonho. Já soletrou? So-nho. Enche a boca. O coração também. Vejam: Mão, pão, não, ilusão, perdão. Enfeita. Esperança, palavra radiante. Dois pontos: Socorro! Baratas subindo na parede. Exclamação Ah! Não! Duas. Uma espremida pela porta. Interrogação? Uma barata e uma cobra. “Aspas” Parecem rugas ou rusgas. Cedilha bicho de rabo. Ponto e vírgula insetos; circunflexo só em careca é chapéu ou em ovo, cara de palhaço em você não tem graça. Não sem pontuação. Sem pontuação coisa supérfluas. São signos que nos lembram de insetos e detesto-os. Ah! Deixa a pontuação. Aos insetos interessam os insetos, eu cuido da emoção e só.

terça-feira, 13 de julho de 2010

O macaco e o milho


O macaco e o milho


Certo grego, autor de fábulas famosas deu aos animais, vozes muitas vezes mais sensíveis e inteligentes que os humanos. Esopo era seu nome. Foi daí que me lembrei de uma história, se não me falha a memória, quem me contava era minha ama de leite, Maria, quando eu nas minhas estripulias sofria algum ferimento. Era o melhor remédio para as dores.

Deitado numa cama macia ouviu-a e a imaginação ia longe. Esquecia das dores, de tudo e de mim.

Vou contar a mesma história como ela fazia, cheio de caras e bocas. Para mim era como um elixir curava minhas dores, para vós se tirar-lhes um sorriso já fico pago, se nem isso, vão ao banheiro, talvez estejam enfezados.
No reino dos animais numa picada estreita vinha um macaco de nome “Chico”, sorriso na cara, arisco, brincando com um caroço de milho. Enquanto jogava o caroço para cima e pegava com a mão, com a esperteza que sabemos dos macacos ele imaginava: “Plantarei esse grão, que me dará com sorte uma espiga de milho, e estas outras dezenas e outras centenas e milhares e no futuro serei rico, até chamado o rei do milho”. Sonhando assim vinha quando numa curva o caroço caiu dentro de um toco rachado na beira do caminho. Tentou de tudo que é jeito sem conseguir recuperá-lo.
Cansado apelou para o toco.

-Toco me dá meu caroço de milho?
-Não dou.
-Então eu vou falar para o fogo, para o fogo queimar o toco e o toco me dá meu caroço de milho!
E assim fez:
-Fogo queima o toco para o toco me dá meu caroço de milho.
O fogo respondeu:
-Não queimo.
-Então vou falar para água apagar o fogo, o fogo queimar o toco e o toco me dá meu caroço de milho.
-Não apago.
-Então vou falar para o boi beber a água, a água apagar o fogo, o fogo queimar o toco, e o toco me dá meu caroço de milho.
E o boi disse:
-Não bebo.
Então vou falar para a vaca, para a vaca mandar o boi, o boi beber a água, a água apagar o fogo, o fogo queimar o toco, o toco me dá meu caroço de milho.
A vaca respondeu:
-Não mando.
-Então vou falar para o homem matar a vaca, a vaca mandar o boi, o boi beber a água, a água apagar o fogo, o fogo queimar o toco, o toco me dá meu caroço de milho.
O homem falou:
-Não mato.
-Então vou falar com a mulher para a mulher mandar o homem, o homem matar a vaca, a vaca mandar o boi, o boi beber a água, a água apagar o fogo, o fogo queimar o toco e o toco me dá meu caroço de milho.
-Não mando, falou a mulher.
Então vou falar com o rei, para falar com a mulher, a mulher mandar o homem, o homem matar a vaca, a vaca mandar o boi, o boi beber a água, a água apagar o fogo, o fogo queimar o toco, e o toco me dá meu caroço de milho.
O rei em sua majestade falou:
-Não.
-Então vou falar com a rainha, para a rainha mandar o rei, o rei ordenar a mulher, a mulher pedir ao homem, o homem, matar a vaca, a vaca mandar o boi, o boi beber a água, a água apagar o fogo, o fogo queimar o toco e o toco me dá meu caroço de milho.
A rainha:
-Não!
-Então vou falar com o rato, para o rato roer a rainha, a rainha mandar o rei, o rei ordenar o a mulher, a mulher pedir ao homem, o homem matar a vaca, a vaca mandar o boi, o boi beber a água, a água apagar o fogo, o fogo queimar o toco, e o toco me dá meu caroço de milho.
E o rato respondeu:
-Não!
-Então vou falar com o gato, para o gato pegar o rato, o rato roer a rainha, a rainha mandar o rei, o rei mandar a mulher, a mulher ordenar o homem, o homem matar a vaca a vaca mandar o boi, o boi beber a água, a água apagar o fogo, e o fogo queimar o toco e o toco me dá meu caroço de milho.
O gato miou:
-Não!
-Então vou falar com o cachorro, para o cachorro pegar o gato, para o gato pegar o rato, o rato roer a rainha, a rainha mandar o rei, o rei mandar a mulher, a mulher ordenar o homem, o homem matar a vaca a vaca mandar o boi, o boi beber a água, a água apagar o fogo, e o fogo queimar o toco e o toco me dá meu caroço de milho.
-Não, latiu o cachorro.
-Então vou falar com o leão para o leão comer o cachorro, o cachorro pegar o gato, o gato pegar o rato, o rato roer a rainha, a rainha mandar o rei, o rei mandar a mulher, a mulher ordenar o homem, o homem matar a vaca, a vaca mandar o boi, o boi beber a água, a água apagar o fogo, e o fogo queimar o toco e o toco me dá meu caroço de milho.
A majestade o rei dos animais era ano de política, falou assim urrando:
-Pode deixar que eu como o cachorro! O cachorro ouvindo latiu enraivecido:
-Pode deixar que pego o gato. E o gato:
-Pode deixar que como o rato. E o rato:
-Pode deixar que rôo a rainha. E a rainha:
-Pode deixar que peça ao rei. E o rei:
-Pode deixar que eu mando a mulher. E a mulher:
-Pode deixar que eu mando o homem. E o homem:
-Pode deixar que eu mato a vaca. E a vaca:
-Pode deixar que eu mando o boi. E o boi:
-Pode deixar que eu bebo a água. E a água:
-pode deixar que apago o fogo. E o fogo:
-Pode deixar que queimo o toco. E o toco:
-Toma teu caroço de milho.

Moral: Quer resolver um problema fale com o chefe.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Nem só de amor...


Uma ratinha, por incrível que pareça, amava uma serpente. Acreditem! Há na natureza essas coisas inexplicáveis. Um porco que mama numa vaca, um cachorro vive pertinho de um gato. Exemplos não faltam.

Por sorte que souberam que Jesus amou a Judas. Que o povo preferiu Barrabás e que aquele dia sombrio, Nero lavou as mãos. É o que faço agora na vossa presença sem escrúpulo nenhum, naquela de que vamos ver o que acontece.

E foi isso. Diariamente a ratinha em cima do muro, note bem, via seu amor deslizar calmamente entre a grama do quintal, soberba. Oh! Serpente, bicho peçonhento, se ama, qual a natureza de teu veneno. Fora culpada em desencaminhar no paraíso. Era assim que a ratinha a via.

De tanto se encontrar aconteceu a paixão, e da paixão para o amor foi um pulo. Desesperada ficava a pensar, por que Deus na sua onipotência não a presenteava com o amor entre outras espécies.

-Senhora cobra, tenho muita curiosidade em conhecê-la, mesmo sabendo que em séculos sou de longe a preferências em suas presas.

-Oh! Ratinha. Peço-te perdão pelos meus. Desce daí e vem para a relva conversarmos melhor.

-Minha cara! Sou tímida, mas te confesso sem pudor. Amo-te loucamente, como Romeu amou Julieta, desde o primeiro dia que te vi.

-Eu de minha parte já a amo também. Vem mais perto, pois o amor é carente de afeto e de toques. Quero sentir teus pelos macios, teu pequeno coração bater perto do meu.

Desceu um pouco desconfiada e quase se sentiu desfalecer, como que hipnotizada.
-Oh! Que pele sedosa. Tuas escamas são lisas.

Nisso a serpente deu o bote. Em segundos o veneno iniciou a paralisia. A ratinha se enrubesce.

-O que é isso? Dou-te afeto tu me picas! Por que fazes isso? Não me amas como eu?

-Eu te amo bem sei, mas meu instinto... Meu instinto! Oh!

E foi engolindo devagar, degustando a presa.

O caminho



Um menino, os seus sonhos, era diferente de todos. Queria ser escritor. Então os pais contrataram os melhores professores, que deram pilhas e pilhas de livros para ele ler. Primeiro os clássicos de todas as escolas, e épocas. O menino descobriu que se lesse um livro por dia teria que viver quatrocentos anos.

Então pediu o menino: “Resumam essa lista”. E os professores de imediato o fizeram. O menino calculou que desta maneira teria que viver ainda até os trezentos anos. E rira de si mesmo. Não era nenhuma tartaruga para viver assim, tanto.

“Diminuam mais pediu. Senão passarei minha vida estudando e não sobrará nenhum dia para o grande ofício.”

E assim fora feito. A lista diminuíra drasticamente. Mas o menino já era homem. Lia desesperadamente contra o relógio.

Um professor dera a idéia de ler poucos livros, mas esmiuçando, descarnando, desossando. Sabia de cor todas as passagens, as cenas os cenários as reflexões.
E isso fora feito. Lento, gradual, suando em gotas, deslumbrado. Parecia estar pronto.

No grande dia, a página branca. Branca e branca. Quando escrevia, parecia outro, era como tivesse encarnado em seus ídolos.

Recorreu a um velho escritor. Ele dissera. “Escreva, escreva e escreva. Hoje mudo, às vezes com vozes de outros, vá em frente sem medo, escolhendo as palavras. Um dia, para seu espanto, descobrirás tua voz.”

Depois da voz, escreva, leia e escreva. Depois corte, corte e corte. Leia e escreva.

Conto de Esopo


O homem bom o falso e os macacos.
Conto de Esopo.


Esopo foi um grande fabulista, o maior deles. Foi ele quem desenvolveu o gênero narrativo na Grécia no 6º. a.C na Grécia. Suas fábulas (620—560 a.C.), contavam histórias em que os animais dialogavam e ao desenrolar da história passavam lições de caráter e sabedoria.

Dois homens um bom e um falso chegaram ao reino dos macacos. Sabendo disso o monarca ordenou a vinda deles a sua presença. E aí perguntou ao falso:

-O que os homens pensam a meu respeito?

O homem falso respondeu que todos achavam um excelente rei, seu povo extraordinário, e seus soldados os mais valorosos.

Feliz da vida o rei premiou-o com belas mulheres e muito dinheiro.

O homem bom presumindo que ao mentir o rei dera ao falso tantas coisas,então se ele falasse a verdade seus prêmios seriam melhores.

E o rei fez-lhe a mesma pergunta, no que ele respondeu verdadeiramente:

-Majestade, vocês não passam de macacos.

Irado o rei mandou matá-lo.

Moral da história: Quem ama receber lisonjas detesta a verdade.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Primeira carta


Oi, Filho, Deus te proteja sempre.

Levado por algo que chamamos de saudade, palavra esta que dizem só existir na língua portuguesa, mas que mora em meu coração redigi este e-mail(Antigamente seria uma carta ou missiva) para começarmos, se você quiser, fique isto claro iniciarmos um diálogo entre pai e filho.

Nada de original nisso. Depois que li Ana e Pedro(cartas) Livro de Vivina de Assis Viana e Ronald Claver, onde eles usam a carta para se conhecerem, tive a mesma idéia.

Poderemos contar coisas que nos acontece no dia a dia e por estarmos longe, fica-nos um vácuo que preencheremos quem sabe a partir de hoje.

Não aceito a desculpa de “não sei escrever” ou falta assunto. Às vezes olho no olho acontecem essas coisas talvez pela emoção, e aí dar aquele silêncio. Mas o que é o silêncio entre amigos senão uma sinfonia que só quem ama ouve.

A escrita filho, ela é feita de muito suor e exercício. Aí está mais um motivo para tal. Sabendo que a redação é importante em qualquer ramo de atividade, mataríamos dois coelhos de uma só cajadada. Treinaremos nossa prosa e ao mesmo tempo trocaremos figurinhas.

Um abraço do seu pai,
Ubá, 13 de maio de 2010

P.S Comprei um álbum da seleção para relembrar os velhos tempos. Quem sabe não trocaremos figurinhas novamente.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Parecia sonho



“Por acreditar que a violência, ainda nos constrange.”
Aldo Marin

“HOJE NÃO TEMOS MAIS A OPÇÃO ENTRE VIOLÊNCIA E NÃO-VIOLÊNCIA. É SOMENTE A ESCOLHA ENTRE NÃO-VIOLÊNCIA OU NÃO EXISTÊNCIA.”
Martim Luther King

Foi na saída de um shopping Center. Eu fui lá pra mode ver as vitrines. Era meu sonho de vida inteira. Assim. E como são bonitas. Dá gosto em ver. Não fui para comprar não, isso não. Não tenho dinheiro. Fui realizar um sonho antes de morrer. Não tenho casa, não tenho família, lugar para dormir.

Aproveitei a roupa que ganhei de um pastor que me quer em sua igreja. Umas histórias de vida eterna esses troços que não entendo. Talvez ele seja político não sei. Sei muito pouco. Sei muito, assinar meu nome. Só. Severino de Assis Silva.

As vitrines só faltavam falar. É. Surgem assim como fossem voar sobre nós. Se oferecendo como mulher da vida. Umas mocinhas sorriem assim de muitos dentes para você dentro das lojas. Dez vezes no cartão. As lanchonetes têm fotografias que dá água na boca de só ver. Meu estômago começou embrulhar de fome. Era para mim como “televisão de cachorro”, aquelas máquinas de assar frango que fica nos botecos. Eles só olham coitados. Como eu me senti agora. Um cão.

Doía na vista tudo aquilo, aquela fartura que nunca sonhei. Senti-me como dentro de um paraíso. Vi nos olhos das crianças, o brilho que se perdera nos meus. Os brinquedos corriam e falavam como se fossem gente. Gente melhor do que eu. Mesmo assim me senti tão feliz como pinto na merda. Mesmo sabendo ser como erva daninha num jardim.

Subi várias vezes à escada rolante. Único brinquedo gratuito por ali. O resto é o olho da cara. É sim. Da hora. Nunca me diverti tanto.
Estava quase me sentindo como um deles, quando na saída alguém me estirou a mão. Olhei para ele, estava sujo, desleixado, barba por fazer, fedendo a fumaça, encardido, cheio de remelas, a pobreza na cara, sem dentes, olhos opacos.

Olhei de lado, sorri intimamente e falei: Não tenho trocado agora! E ainda: Afaste-se! Não me importune! Dei as costas e andei. Sem olhar para trás. Depois xinguei, Caralho! Puta que o pariu! Não se pode ser feliz um dia? Um dia. Dia. Diabo!

Observei-o. Segui-o de perto. A sombra de mim mesmo. Ele entrou numa rua escura, parou, olhou em volta, deitou-se sob uma marquise. Aproximei-me devagar. Com receio, talvez com pena. Olhei de perto. Uma ruga surgiu em sua testa, o infeliz. E foi nesse instante quando ele parecia sonhar, pois estava sorrindo, que eu joguei o álcool e taquei fogo.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Cena


A cena é esta, cheia de anseio,
Caos, morte e devastação.
A terra seca falta o seio,
És pó e ao pó, tornarão.

O abutre e a presa, certa comiseração,
Afastado, olhos baixos, sereno,
A presa meu Deus é humano,
Curvado, uma criança negra e o pequeno

Corpo, raquíticos entregue a desolação.
Como manterei minha procriação?
Questiona o abutre, solene.
Esse é meu instinto. E completa:
O do homem não sei...

terça-feira, 23 de março de 2010

O espelho


Quando ao espelho
Vejo-me melancólico,
0lhar frio e estrambótico,
Cabeça, corpo e membros;
Crânio, boca e massa encefálica;
A voz verborrágica,
No rosto marcas de risos e raiva,
No mesmo espaço
Como disfarces;
No centro o membro fálico,
Impulsionado por emoções bizarras,
O semblante pérfido às raízes
A derme modelada, noutras vidas,
Pensamentos, disformes;
Distancio-me do espelho, e choro.
E na dor imploro,
O avesso da carne.
Não sou quem eu sou, nem que vejo,
E sim a imagem invertida de mim mesmo.

A morte do escritor






De manhã o escritor morreu,
Sereno,
Solene,
Pequeno e
Só.
Sem nenhum aceno ou algo que o valha,
Terremoto,
Maremoto... Nada. O que restou,
O olhar agudo entre as flores,
Fixos,
Como a fitar,
As dores do mundo.

Último verso



Queria meu ultimo verso,
O reverso do universo.
Conciso e inciso,
No concreto.
Discreto.
Abjeto no espasmo
De um orgasmo.

sábado, 20 de março de 2010

Pindorama



Irerê quando saiu da floresta para a praia, achou que era o único morador daquele mundo. Saiu assim mesmo pelado, foi banhar-se na manhã fria, sentindo os peixes beliscarem seu sexo, e ficou ali deitado, curtindo a imagem exuberante das matas, o azul do céu, o horizonte liso. Olhou para trás de si e viu a floresta densa, escondendo sua morada, toda sua família achava-se protegida, pela mãe terra, e sorriu de tanta felicidade.

Nesse momento, olhou estupefato, duas vezes para o horizonte agora enrugado. O que seria aquilo Tupã, deus misericordioso, pensou, levando às mãos a boca. Algo grande boiava, nas águas e se dirigiam em sua direção. Pensou nos filhos e mulher na oca, inocentes em seu descanso. Desconfiado notou, que do grande bicho, saíram dois filhotes que pareciam taturanas com as pernas nadando ao seu encontro.

Saiu da água de um pulo só. Sem roupas pegou uma folha de bananeira e cobriu as suas safadezas. Os seres estranhos, “branquelos”, pararam as margens e desceram com grandes artes na cabeça, olharam para ele e pensaram: “São simples andam nus e facilmente ludibriáveis.” Andaram na praia, olhou as matas, o céu... Viu que um deles tomava nota de tudo, escrevendo.

-Caminha! Caminha! Veja que aves tão lindas. Duas araras namoravam numa árvore. Irerê não perdia nada, observava que os brancos pisavam em utensílios de couro, não andavam descalços, e cobriam suas vergonhas completamente.
-Que calmaria. Depois vieram as correntes marítimas, por sorte descobrimos esse paraíso, mais riquezas para nosso rei.
-Muito bem, desfraldem a bandeira. Declaro por Deus e pelo rei sermos donos de toda essa ilha, e de tudo que nela exista.
-Cabral: dou ordem para baixarem as velas da “Pinta” e “Nina”?
-Claro! Claro! Vamos pernoitar aqui. Montem as barracas.
Homens cortavam paus aplainava o chão e Irerê os observava quietos, no canto. Três homens que pareciam serem chefes adiantaram em sua direção.
-Raios! Falou um deles, já vi esse filme antes.
-Parece que foi ontem, hehehehehe!
-Ofereçam presentes para ele. Coloquem ali para ver se ele se aproxima.
Irerê aprofundou-se na mata e em meia hora voltou com toda a tribo. Olhavam extasiados para os objetos, espelhos principalmente, e fitavam-se olhando seus espíritos.
-Uns ignorantes. Vejam como são vaidosos, olham-se sem parar.
-Você acha que nossa civilização tem muito que ensinar para eles?
-Sem dúvidas sem dúvidas!
-Senhores: Aqui estou pensando com meus botões, se pudéssemos levar para a corte, um espécime desses, que sucesso faria.
Oh! -Oh!-Oh!-Oh! –A nossa rainha ficaria louca!
-É pena, mas não viemos para isso? Queríamos descobrir o caminho para as Índias. Deixemos para os futuros colonizadores.

Era um belo dia de abril. As araras voavam em algazarras, como crianças a brincar, gaivotas paravam no vento e mergulhavam nas águas azuis trazendo pequenos peixes no bico, as ondas quebrava em estrondos, o vento ricocheteava nas árvores cantando uma estranha melodia. Irerê pensava: “Tupã finalmente ouviu minhas preces. Será minha salvação e de todo o meu povo. Com a amizade desse povo e todo o seu poder nos protegerá de nossos inimigos.”

Foram convidados para subirem nas caravelas. Eram construções grandiosas, jamais vista pelo seu povo, sonhava conseguir todo aquele poder, toda a fortuna que a vida dá.
Nessa noite e nas subseqüentes o Pajé e toda a tribo rezaram agradecendo á benção conseguida.
Na manhã do sétimo dia as caravelas zarparam levando ouro, a casca de uma árvore com tinta rubra e presentes, prometendo logo voltarem para ensinarem toda uma cultura, mostrarem um novo Deus, e a salvação eterna.
Irerê ficara só, na praia, olhando o horizonte, até que ficasse liso e sentiu um aperto no peito, uma grande solidão lhe abatera no meio da mata, sonhava sem saber quão perigoso são os sonhos.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Sonhar é preciso




Desde criança todos os dias ele fazia a mesma coisa. À noite, orava para Deus, pedindo proteção,e depois que a mulher dormia, procurava um lugar sem luz onde pudesse contemplar o firmamento e o brilho das estrelas. Nesse momento o coração ficava pequeno ante a grandeza das coisas. Em sua fé havia muita esperança e amor; ansiava por dias melhores. Sentia-se um solitário.

Fizera noventa anos, recebera os presentes, fora um dia tranqüilo, sem sobressalto, mas havia em seu olhar algo como uma névoa sombria. Os filhos todos foram morar longe, alguns até em outros países, “tocando” a vida como dizia. Com os nós dos dedos repuxou as rugas envoltas dos olhos para enxergar melhor. Quem algum dia chegará a conhecer o coração humano? Debruçado a janela, olhos no alto, o cabelo como cachos de algodão, sacudia ao vento.

Súbito ouviu sons as suas costas, e viu a mulher arrastando os chinelos no cimento, com a cara de assombro.
-Ah! Meu bem, não conseguiu dormir também? Ora, ora, esse calor.
- Não se preocupe. Vim tomar um pouco d água.
-Porque não me pediu?
-Não queria acordá-la.
A mulher cordão de ouro no pescoço, brincos dourados, vaidosa não obstante ao tempo. As rugas eram como um terreno recém arado. Nas mãos, o terço em constante oração.
O mar jogava-se todo sobre a areia. Entrava no outono, e ao longe se ouvia o tombar das ondas.
-Veja José, as três Maria, apontava com o indicador.
-Não as aponte com o dedo, nascem verrugas horrendas, dizia em criança. É, e além o cruzeiro do sul. Baixou os olhos por momento. -Alguém mandou notícias?
-Não! Sonhei com eles hoje. Todos reunidos em volta da mesa, como no tempo de crianças.

-Tempo que não volta mais...

Sentiu-se cansado, os dias passavam, olhava na caixa de correspondência por notícias que nunca vinham. Acordava, orava, calçava os chinelos, ia escovar os dentes e ouvia o eco dos passos de Maria em direção ao portão. Se houvesse uma carta, uma sequer, ouviria os passos apressados em sua direção, e na pequena sala protegidos da claridade, bebiam juntos as palavras tão escassas. A voz saia embargada. Sem cartas, não havia ecos, só o marulhar da água, sobre as flores do jardim. Aguava-as.

Uma estrela cadente iluminou o céu. “Venha, vamos façamos um pedido juntos, quem sabe não se realiza?”

Olhou para fora e o silêncio era mortal. Nem atrás das longínquas montanhas sibilava sequer o vento. Só o barulho das ondas como o ressoar do tempo. Cabrum... Cabrum... Cabrum...

“Se ela soubesse, que fiquei todos esses dias, aqui quase a noite inteira, ah! acharia estranho e talvez quisesse mandar-me ao médico para mais uma consulta, diacho sei que não preciso de médico”.

Outro dia outra noite.

-Ann! Estava longe em pensamento, desculpe. O que você disse?
-Que chegou carta de Osvaldo ontem. Ele está bem, para não se preocupar, que um dia ele volta para tomar conta de nós.

“Não soube responder como chegara ali. Mentalmente revia as imagens do roteiro que fizera. Passara por vielas escuras e más cheirosas, ouviu suspiros que outrora o faria gelar, mas que ali pelo contrário, enrubescera somente, deslumbrado de felicidade. Sentiu cheiros e sons da infância. Vida que se apresentava aos seus olhos jamais imaginados. Sentiu tanto fulgor e felicidade como quando lera seu primeiro livro. Em ambos, os momentos, um clarão iluminara-lhe sua mente, acordando-lhes os sentidos que até ali se encontravam embotados.

-Estava lembrando-se da minha juventude. Como toda a vida fui um tímido.
-Não! Achei você até bem ousado. Lembra que me roubou da casa dos meus pais. Foi a maior prova de amor.

“Olhares convergiam para ele, sorrisos, dentes, línguas, gengivas vermelhas, pernas e seios fartos. Mulheres em trajes mínimos andavam de um lado para outro. Ah! Paraíso! Parou sob um poste. Olhou as estrelas. Cálidas brilhavam na imensidão. Porque tanto solidão meu Deus! Porque o homem é tão só, perguntava a si mesmo. Penumbras sobre os olhos tristes.

Uma mulher desprendeu-se do grupo e atirou-se sobre ele. Chegou com intimidade e perguntou de chofre se queria divertir-se. O cheiro de perfume ordinário penetrou-lhe pelas narinas deixando-o tonto, talvez pela emoção da proximidade, das carnes fáceis. “Coitado, tão tímido o menino.”

-Toda sua família era contra nosso namoro.
-Quando te vi chegando à igreja me apaixonei.

“Das janelas saia um halo divino. Foi puxado pelas mãos. Seguiu-a sem fitá-la. “Para onde meu Deus, se nem sei quem sou?”O medo o atormentava. As pernas, peraltas, foram adiante, ouvindo no beco o eco dos seus passos, distante, como se fossem de um espectro. No ar tenebroso o cheiro de perfume e fumaça. hipnotizado.”

- Tive insônia todos esses dias.
-Por que se preocupa demais com as coisas.
- Vim aqui para tomar um ar, estava muito abafado.

“Bem perto, ouvia gemidos, gargalhadas pérfidas, e esse ambiente de perdição davam-lhe arrepios e uma grande liberdade. Entrou numa casa e foi levada a um quarto, idêntico ao da mãe. No canto um pequeno guarda roupa, uma cama larga e lençóis amarrotados. Atrás da porta, quase escondido, um pequeno oratório, a bíblia com a página marcada, no chão uma vasilha com água. Orai por nós, mãe. As mãos frias, tanta ingenuidade. Um corredor escuro, no fundo lamparinas com luz mortiça. Na cabeceira um grande crucifixo feito de madeira escura. Ouviu o canto da mãe, onde as lágrimas molharam. Santo anjo do senhor iniciou uma oração.”

-Em que pensa agora?
-Nada. Coisas sem importância. Ele vem quando?
-Não falou. Talvez no fim do ano, não sei. Sinto tanta saudade.

“Orou em silêncio, soletrando as palavras lentamente. A pele tomou a cor do pecado. Rubro. Era como uma serpente num corpo de anjo. Ela estava ali nua e eu só na minha solidão. Uma névoa pairava sobre aquele lugar soturno e mágico. O coração apertado as mãos suadas e frias. Ouvia frases como ecos. “Seja homem! Passamos todos, “por isso”.”

-Ah! Ele não liga pra gente. Nem me lembro do seu cheiro e de sua voz.
-Criamos os filhos para o mundo. Maria alisou com as mãos o vestido enrugado-Como não vi estas coisas! Poderia te fazer companhia, relembrar nosso passado, tão lindo...

-Não quis importunar, dormias como uma criança. Olhou os pés naquela noite abafada.
“-Sente aí que já volto! A mulher saiu cantarolando alguma coisa imperceptível. A nudez era fria. Volveu os olhos para o alto além da janela e nos morros para além das casas soavam tambores e cantavam-se canções. Estava imóvel, petrificado. Voltou. Ela olhou-o com olhar evidente. ”Deite-se filho! Dito isso o puxou de encontro a suas carnes tenras. Amoldamos a melhor posição e conforto.” Riu consigo mesmo.

-Que tens?
-Recordações... Recordações...
-Pelo menos estou nessas cenas?

“Beije-me querido! Os corpos se procuraram. Corações batiam. Abraçaram-se. Os tambores calaram, e no momento em que as carnes cederam, um sentimento de posse e volúpia os atingiu tão violentamente que parecera ouvirem sussurrarem palavras de amor, e em segundos ele sentiu uma força, uma liberdade abrindo-lhe as portas para a vida. E foi, como o lampejo dos poetas em plena criação.”

-Maria me dê à mão. E puxou-a para fora. Saíram de mãos dadas pela areia.
-isso é loucura! Estamos velhos, sorria indecorosa.
-Venha! Venha! Olhe o luar, que coisa mais linda! Não deixemos para amanhã...
-Tanto tempo não fazemos isso. O sereno vai nos fazer mal, ai meu Deus que loucura!
O vento batia forte na palma dos coqueiros.

-Olhe as ondas, veja, entre, a água está morna. Crianças. Jogaram água para cima, viam as marcas feitas pelos pés na areia. Marcas! Marcas! Em tudo e todos ficam marcas. Exaustos sentaram–se na areia. Um clarão já deixava avermelhadas as ondas, viam o sol nascer. Uma luz brilhava no horizonte deixando as águas da cor de prata. Ela deitou-se no seu ombro, ardente.

- Esses últimos dias estão nebulosos, fico todas as noites me perguntando... Olhando para o universo.
-Pobre homem, deitou-o em seu colo. –Tolo! Sozinho todos esses anos.
-Veja Maria aquele navio. Sim. Aquele quase sumindo no horizonte.
-O que tem?
- Vai ele, em sua rota na certeza que um dia chegará, em seu destino...
-Sim! S-sim! Com certeza!
-A mesma coisa aquela estrada ali, ta vendo? Depois da ponte sabemos que tem outra estrada e outra e mais outra entende.
-sim.
-Mas há muito tempo, depois que nossos filhos se foram, meu coração é só um buraco aqui no meio que não tem fundo de dor.
-Deus meu, como não notei antes.
-E... Coçou o olho para não chorar – Você sabe que a maior tristeza dos pais é o esquecimento dos filhos não sabe?
-Bobo! Bobo! Os nossos não nos esqueceu. Eles são ocupados, nada mais.
-E nesses dias, que fiquei sem dormir cheguei a uma conclusão: Se queres matar alguém, não precisa de violência, de nada a não ser deixá-los na solidão...
- Mas temos um ao outro.
-Leio esses romances cheios de promessas, e que no final nada acaba bem e a mocinha fica sabendo que fora enganada, que tudo, tudo mesmo, fora um engodo.
-isso não passa de ficção.
-Viu aquele barco? E se ele jamais encontrar terra! Navegar, navegar... A esperança vidrada nos olhos dos marinheiros. Dias após dia. Pergunto: Seriam mais infelizes conhecendo a verdade? Hem! E Se todo esse tempo eles tiverem enganados, séculos e séculos sem fim, e que a terra for somente uma miragem, no único propósito de manter- nos calados a respeito das grandes aflições da humanidade? Se tudo fora urdido pelos poderosos, para que fiquemos como cordeiros sem grandes revoluções, sem atrapalhá-los em seus tronos e suas riquezas. Hem!

-Homem, tenha fé.
-Foi tudo que eu fiz todo esse tempo. Acreditar! Acreditar! Acreditar! E se acaso, for só um grande sonho. O homem sempre foi propenso a sonhar...
-Não se martirize assim.
-Deus... Agora sei, não vivemos sem sonhos...
-Calma! Homem, esse frio vai-lhe fazer mal. Tão quente tua mão.
O olhar sombrio. Levantou a cabeça como que febril.
-Que banalidade, seguir um sonho...
-Vamos para casa, vou fazer um chá e tudo vai melhorar.
- Seria tudo um sonho louco que o homem inventou, com medo da solidão das guerras, do seu extermínio? -E... Se no final nada acontecer. O que será de nós? Se depois da ponte só encontrarmos o vazio? Pobre de mim, pobres de nós...
Se a verdade fosse outra, não a de nossos sonhos...

-Esta é a fé. Nada além nem aquém.
-Ah! Como sofro com essa incerteza. É como chorar nossos mortos sem corpo presente. Sempre o vazio. O cadáver pelo menos nos dá consolo, mesmo na tristeza. Abandonaríamos os sonhos, a ficção, não seríamos ludibriados pelos escritores, esses criadores do engodo. Existirá alento?
-Creio e só.
- Acho que perdi a fé em tudo, e isso esta me trazendo uma grande tristeza. Passou a mão na barba por fazer. E você francamente acredita?
-Quem sou eu para duvidar? Não penso nisso. Veja a natureza, que esplendor! Alguém muito poderoso a criou.

-E... Se for apenas um sonho... Um lindo sonho... Minha grande tristeza é que a partir daí veríamos as estrelas... somente como pontos reluzentes. Teríamos nossa única certeza inexorável. O fim... E dormiu exausto no colo da amada.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Estorvo


“Meu nome é Rita, mais conhecida por “Ritinha do sinal”. Vendo balas e chicletes para sobreviver. Sou filha de “ninguém”. Sou órfã de pai e mãe. Pareço forte mais por dentro sou frágil e necessito de carinho. Tem dias que me sinto tão só que pareço que não existo. Nem minha sombra costuma me acompanhar. Agora tenho dez anos mais ou menos, não tenho certeza, pois não tenho certidão de nascimento. Às vezes tenho fome que me dói o estômago, mas o que me dói mesmo é quando vejo famílias, cruzarem meu caminho, dentro de carro com os vidros fechados, que inveja me dar, dói-me aqui moço aponta o peito, e começa a chorar.

No dia que me senti assim, tudo doía dentro de mim. Minha pele queimada pelo sol ardia. Minhas pernas trêmulas me arrastavam sem vontade de ir a lugar nenhum. Os transeuntes me olhavam talvez com dó e seguiam seus caminhos. Ninguém pára para ajudar.

Chegava perto de uma lanchonete e logo o dono sinalizava para afastar-me. Não queria assustar os clientes, moço. Uma criança sorria ás vezes e eu devolvia o sorriso cariado. Um senhor de bigode me deu um pacote de biscoito-nunca tinha comido algo tão saboroso. Como foi bom. As dores passaram e eu já conseguia sorrir.
Saí dali e fui para o sinal. Tenho que ganhar meus trocados, moço, pois logo estarei com fome novamente. Muitos carros quando me vêem, sobem seus vidros, com medo de mim, como se eu pudesse feri-los. Eles é que estão me ferindo. Abaixo os olhos. Já estou acostumada. Agradeço aqueles que me compram as balas com gritos de alegria. Sei que a vida está feroz. Vi muita gente morrer neste sinal, mas não tive escolha ou a vida me escolheu, não sei.

Um dia encontrei meu anjo ou demônio. Usava óculos escuros, sapato de couro fino, depois vim saber que era pelica, ele mesmo que falou camisa de linho, cabelo bem cortado e uma bonita mala preta. Parou no sinal pedindo informação, e do interior do carro veio uma música baixinha, uma brisa fria e um cheiro gostoso de conforto. Ajudei com informação ele perguntou meu nome, me deu biscoito e prometeu um dia voltar, quando tivesse mais tempo.

Enquanto ele não voltava sofri muito, usei droga, passei fome, vi a vida passar com incrível rapidez. Envelhecemos mais rápido na rua sabe. Talvez por falta de afeto. Chorei e como. Depois vi que lágrimas não regam flores.
Mas o homem do carro preto voltou e, todo dia passava ali e me deixava comida. Conversava comigo, dizia que qualquer dia me levaria para conhecer a praia. É meu sonho, sabe moço. Já vi na televisão. É água que não acaba mais. Quando cheiro cola, tenho esses sonhos. O sonho de ver o mar, de ter uma família esses sonhos impossíveis. Tenho amigos que já morreram. Hoje as drogas são muito misturadas, faz muito mal, mal mesmo. Acordei quantas vezes , tremendo, suando frio, parecia que ia morrer.

Volto a falar do meu anjo. Foi num dia assim que o vi pela primeira vez. O carro preto sempre reluzente parou e me comprou balas. Nesse dia estava com febre, e quando ele abriu os vidros saiu um ventinho frio de dentro. O ar era perfumado. Que cheiro bom. Perguntou pelos meus pais, onde eu morava, se preocupou comigo. Deu-me biscoito e ficou me observando. Eu gostei até. O seu olhar parecia atravessar-me. Lembro que ouvi muitas buzinas. Os moralistas eu sei. Comi devagar me deliciando.
Às vezes sumia meses e nesse tempo era ruim doutor. Tinha dia que chovia e fazia um baita frio, e não conseguia vender nada. Tinha que cheirar para enganar a fome. Dormia em cima de papelão. Um belo dia ele reapareceu. Tinha bebido, vi pelos seus olhos. Estavam tristes por incrível que pareça moço, tinha tudo e tava triste. Foi nesse dia que ele me levou. Feliz, fiquei olhando as nuvens.

Deixei o vento entrar pela janela, soprar meus cabelos, aquilo me dava uma impressão de liberdade. As nuvens tinham formas variadas. Vi bonecas, ovelhas, casas, muitas casas. Queria ter uma com tudo dentro. Um Pai, uma mãe e muuuuitos irmãos. Sim, uma família grande. Cachorro também. Um jardim na frente. Cheio de rosas vermelhas, Eu amo rosa vermelha. Os postes passavam rápido.

Quando olho ele esta sorrindo para mim, com aqueles dentes branquinhos, pareciam fileiras de coelhinhos. Olhei envergonhada para o chão. Senti um calor estranho e a face esquentou, parecia desejo. Quem mora na rua sabe dessas coisas. Não há como fugir. O ar é convidativo. Toca uma música lenta, peço para colocar um funk. Ele acelera. Um poste dois postes, três postes... Levanto o vidro. A película negra escurece o interior. Sinto o poder. Quando estamos confortados, protegidos, o medo some. Vi meninas como eu no sinal. Abri o vidro para que me reconhecessem em vão. Queria mostrar-lhes que eu não era a mesma de outrora.

Vi ele ficar sério. Era um homem bonito, destes que aparece na televisão, usava relógio, celular, camisas de mangas compridas, e os braços peludos e o peito também. Vi tudo de relance, pois o que me importava era os postes passando rápido lá fora, as pernas pelas calçadas nos passeios de final de tarde, o movimento calmo do carro.
Foi aí que senti a sua mão fria passar sobre minhas pernas e sorri. Sabia que nada nesse mundo era de graça. O que eu dava a ele era o que ele não tinha: amor, atenção, em troca teria comida e o brilho que o dinheiro dar. Aquele passeio poderia sair caro. Cruzei as pernas fugindo das carícias.

Lembro a primeira vez que tentaram comigo. Foi um garoto lá da rua. Tive medo. Ele não veio com carinho, era só aquele pinto duro encostando-se a mim naquele momento o cheiro de sexo me aborreceu. Empurrei-o e saí em disparada. Depois ri muito dele. Ele ficava me rodeando como cachorro.

Esse ricaço agora era diferente. Tinha estilo. Bala na agulha. A primeira vez que fui ao motel com ele, ele teve que dar grana para o porteiro. Sei que existem essas coisas. Eu sou “de menor”. O dinheiro abre portas, abre pernas, abre cabeças, talvez abra até o céu se existir. Subimos pro quarto, um quarto maneiro, com espelhos no teto. Eles gostam de ver suas safadezas. Filmam, tiram fotos. Eu ficava só rindo.
É estranho o que eles nos pedem. Teve um que pediu para eu fazer xixi nele. Não vacilei, dei a maior cagada no puto, era minha vingança, com esses ladrões. Só saio com grã-finos, eles gosta de meninas novas, virgindade, essas coisas. Teve um há muito tempo que me ofereceu uma boa grana pela minha, mas na época era boba, tive medo essas coisas. Depois dei para um carinha comum que soube me pedir. Nesse tempo acreditava no amor.

Depois fui pegando as maldades. Sei que não há amor, só sexo. Teve um deputado, cheio de influência, sei por que ouvi falar no celular, e fiquei quietinha escutando o safado. Ele falava em suborno numa tal de empreiteira, essas coisas que não entendo bem. Esse tal me pediu para penetrá-lo com o dedo, fiquei com nojo, peguei um pau, dos maiores e enfiei sem dó no cu do puto. Ele gemia e eu enfiava mais. Faço isso para me vingar dessa bandidagem. São os maiores culpados de tudo isso que acontece por aí. As cidades enchem de favelas, as favelas têm gente como nós, e só queremos viver em paz, mas eles não deixam, tomam tudo de nós, nossas casas, nossos alimentos, nossas almas.

Acho que já perdi a minha quando nasci. Se houve um sopro de esperança passou longe de mim. Nasci órfã como já falei. Comi o que o diabo amassou. Teve um que queria me comer, falava o tempo todo quando lhe vendia bala no sinal. Um dia saí com ele. Ele queria cheirar a branquinha, peguei com um amigo do morro, misturei pimenta para ver o desgraçado gritar. Queimou toda sua narina. Quis me bater, falei que era “de menor” e o puto ficou com medo da polícia.

Sei que essa vida não me levará para lugar algum, mas quem disse que tenho rumo? O que eu quero é mostrar a cara da sociedade, tirar sua roupa, mostrá-la em pelo. Também não ligo felicidade só em novela, mesmo assim só no final quando o mal é descoberto, mas aqui na real não é assim como na ficção, as coisas demoram, tem vagabundo que vive a vida inteira sem castigo.

E se existe Deus ele só observa. Foi como vi na televisão, adultos estuprando crianças, pela tela minha emoção veio embotada, largada. Não fiz nada. Se eu visse ao vivo e a cores, tomava minhas resoluções, não deixaria barato para eles, jogava pedra na cara, furava o bicho na faca, pois esses não merecem perdão nem minha nem de ninguém a não ser Deus que dizem perdoa tudo, e aí não creio, como pode desculpar esses bárbaros, puros animais. Pensando bem compreendo Ele. Visto de longe, as coisas perdem sua importância além do mais deve ter muito problema para resolver.
De onde vim, vou te contar se tiver tempo de ouvir. Puxa a cadeira e escuta.
Imagine o sertão, o sol a pino, meio dia a sombra embaixo dos pés. O calor molha a camisa e a alma. Assim sempre. Calor, suor e as cigarras cantarolando ininterruptas, deixando nas pessoas uma moleza só. O jumento procura a sombra de algum juazeiro, contrastando com os galhos secos e esquálidos da caatinga. No céu o farfalhar das asas pretas dos urubus a procura de carniça.

Bem ali atrás do morro a casa de pau a pique, coberta de palha como manto de retalhos. Às paredes, deixam a mostra galhos entrelaçados, cheios de rugosidades, como chagas abertas. Há duas janelas, uma para a cozinha, onde sai uma lufada de fumaça escura, outra do único quarto, no parapeito manchas nodosas de corpos que se recostaram ali a ver o horizonte cinza e vazio. Foi aí que dizem que nasci.

O piso de terra batida, no interior, um fogão de lenha ardia, requentando a pouca comida, uma mistura de feijão e água, alimento para aquele dia. Na sala uma rede onde dormia uma criança, mosquitos acordavam-na de minuto em minuto o semblante triste. Todo o sofrimento do mundo. Na curta vida já deixaram grandes marcas. Dois olhos profundos em três anos apenas. São os mesmos que olham para vocês agora estupefatos. Mãos longas e finas jaziam sobre o ventre flácido essas mesmas que não se cansa de pedir. Novamente os mosquitos passeiam sobre a testa estreita. Acorda-a. Chora. Um choro pequeno, sem grandes aflições. Como um grunhido de um pequeno cão.

Meus pais já sabem, morreram na grande seca. Sobrevivi por milagre, talvez por eu ainda for obrigada a pagar todos os meus pecados. Ou vingar todas as minhas dores, eu não sei. Como e porque o matei foi assim de repente. Estávamos nos amando como diz, ele me penetrara por trás, e fungava que nem cachorro foi quando veio com essa idéia que me enlouqueceu. Disse no meu ouvido o depravado: “Me chama de pai, vai minha filha”. Fiquei zonza com aquilo. Ele tinha bebido, estava meio grogue e aí não conseguiu se desviar das estocadas que lhe dei com uma faca. Piquei todo como se mata um porco. Jamais pensei em ser sua filha. Filho da puta era o que ele era. Acho que somos como gado no pasto, soltos na vida.”

segunda-feira, 8 de março de 2010

O retorno



Adão acordou com uma dor apertando-lhe o peito. Docemente olhou para dentro de si perscrutando, os sentimentos que volta e meia o atormentava. Sombrios. Tentou conectar-se como fazia todos os dias à internet, conversando com pessoas representadas por avatás, sem conseguir seu intento. Havia um vácuo, um vazio que a cada dia aumentava tornando-o estranho e melancólico.

De um dia para o outro sentiu, saudades do tempo remoto, quando as pessoas conversavam pelas manhãs, em bares e esquinas. Imaginou-se entrando, bem cedo naquelas padarias de outrora, o cheiro de pão quente, onde nas filas se falava de nada ou de alguma coisa sem importância, as notícias do dia a dia. Se não conhecesse a pessoa iniciava-se falando do clima, mas que logo se falava da mulher, dos filhos, da vida.

Começou abominar esse modo de vida moderno, trancafiados em apartamentos, fugindo das contaminações que diariamente aparecia nas doenças raras e por isso, tudo era feito através do computador pessoal, desde a mais simples coisa a mais complexa, como estrelar um ovo ou fazer sexo com uma parceira.
A família há muito perdera a referência, já não era a base, havia coisas mais sérias como o prazer e a fantasia. Os filhos eram encontrados em grandes magazines, todos adquiridos na grande rede, descriminados de acordo com a cor, raça, sexo e perfil físico e psicológico.

Era só escolher, produto altamente acabado, concebidos em provetas e laboratórios sem deformidade, seja físico ou psicológico. Assinava-se um termo de compromisso, se responsabilizando pela total educação daquele novo ser, e que declarava jamais o utilizar em benefício próprio se comprometendo a criar um cidadão livre para no futuro saber fazer suas escolhas sem amarras.

Havia a educação primária secundária e definitiva, seguindo-se a risca apostilas disponibilizadas em sites feitos pelos maiores educadores da “administração”, conteúdo estes pragmáticos para uma vida correta e ditosa sem sentimentos dúbios e tentadores. Pois, tais sentimentos fragilizavam o ser humano tornando-o mais propensos a infecções e pensamentos danosos ao próprio desenvolvimento.

As doenças a muito que fora extinta, e vivia-se em espaços estéril sem bactérias e vírus. O sexo era todo automatizado e as partes sujeitas a toques eram revestidas por materiais plásticos e lubrificantes bacteriostáticos. No ato só poderia dizer poucas frases como “nos adoramos simplesmente para o nosso crescimento e prazer” ou alguns gemidos próprios para despertar a libido do parceiro, porém jamais demonstrar paixão como abraçar longamente ou puxar os cabelos ou xingar, indecorosamente.

Era nesse mundo criado pelo homem, que Adão se encontrava perdido, lembrando-se de imagens passadas, que não expiraram ainda de sua alma. E nessas cenas como em flashes rápidos, se via pedindo a benção aos pais, reunidos em torno da mesa, de manhã o cheiro do café fresco, as brincadeiras na rua, como jogar pião, soltar pipa, futebol no campinho e tantas outras.

Namorar de mãos dadas numa pracinha qualquer, trocarem beijos em público sem protetores, sentir a saliva doce, exalar os feromônios gritar “eu te amo” ouvir uma canção alta, dançar na chuva.
Quando saia de carro, a rua branca e sadia lhe davam uma tristeza sem fim, as árvores sem cheiros, os pássaros voavam num túnel de vidro, sobre os edifícios, para não contaminarem o ambiente. A brisa era soprada por grandes aparelhos de ar condicionados tratados e purificados.

O sol a muito extinto, a luz vinha de um teto de aço, de lâmpadas poderosíssimas.
Os gramados eram de plásticos para não nascerem ervas daninhas nem insetos. Tinha uma diversidade de cores e formas. Nunca as crianças foram tão silenciosas. Os sentimentos eram cruzados pelo olhar, pois não se podia tocar, a não ser com os braços robóticos por trás de grossos vidros. A carícia fora descuidada em prol da saúde e da longevidade. Como os olhares eram tristes esse tempo.

Foi por um acaso que encontrou este arquivo de Word em seus documentos secretos:
“Quero te conhecer, correr todos os riscos. Procura-me nas salas de conferências, Eva.”
Foram longas noites acordados. Eram representados por dois desenhos simples, chamados de avatar- Na teogonia bramânica, cada uma das encarnações de um deus, especialmente de Vixnu, segunda pessoa da trindade bramânica; Ícone gráfico escolhido por um utilizador para representá-lo em determinados jogos e comunidades virtuais. Estes representavam eles.

Depois veio o desejo de se ver pessoalmente.
No início olhavam-se de longe. Ele tentava adivinhar seu perfil, loura ou morena, seu cheiro, a cor dos olhos. Ela queria ouvir o timbre da voz, saber de seus sonhos. Ficavam a uma distancia segura, mais ou menos mil metros, umas vezes ficavam em pé, acenavam, sopravam nas mãos beijos invisíveis, outras desenhavam corações com as mãos e riam em gargalhadas que terminavam em lágrimas.

Um belo dia ele desceu da montanha e chegou ao vale. Ela fez o mesmo caminho ao encontro dele. Olhou o pequeno riacho passar sob os pés, coberto por placas de vidros. Como gostou de pescar noutras épocas. Ela olhava as flores artificiais, sem abelhas nem borboletas atrás de seu néctar.

Aproximaram-se. Já não agüentavam tanta emoção. Um lampejo no céu como um clarão de metal. Deram-se as mãos. Tão macias notaram. O coração borboleta presa na mão. Pulsar de animal aprisionado. Beijaram-se. Deus que suavidade. A pele pêssego maduro. Fecharam os olhos e ficaram na delícia do tato. Maciez, pelos, músculos...O côncavo no convexo, aguçaram os sentidos, os cheiros, o sabor, os sons de aconchego,saliva, líquidos, molhando, retesando, lubrificando, acoplando, despejando, sugando, amando, gozando e sussurrando “eu te amo”.

Os carros dos patrulheiros os cercaram. Fizeram um círculo grande deixando as marcas no gramado verde. Falaram pelo rádio alto-falante. “Mãos para o alto!” A brisa que soprava agora era morna com cheiro de querosene. “Desrespeitaram as leis e serão castigados”. “Vão, saiam pelo portão, no final dessa estrada, seguindo a grande muralha. Sofrerão as conseqüências dos seus atos, e assim a partir de agora não serão mais imortais, perderam esta prerrogativa; a partir de hoje ficam sujeitos a todas as doenças e dores; se amarão como os animais, e os filhos nascerão de parto.

Eva olhou Adão, mirou os homens atrás de si, puxou-o pela mão que se encontrava fria pelo anseio, desamparado, sentiu toda a brisa fria, as cores berrante da natureza, o canto dos pássaros, o perfume das flores e atravessou o portal.