O jogo
Chegou bem
cedo para a partida de dominó. Era sagrado. Todos os domingos depois da missa.
Eram amigos de infância. Otávio e Ricardo. Um sabia tudo da vida do outro.
Otávio
cumprimentou o amigo, pediu a mulher uma cerveja gelada e os petiscos de
sempre: queijo fatiado e azeitona enfiada em palitos. Baralhou as pedras com cuidado rodando com
as duas mãos pela mesa.
Sentaram-se
frente ao outro. Pegaram as pedras. Roberto dá início.
-Hoje quero duas buchudas!
-Vamos vê!
Depois de
duas horas de jogo acirrado, Otávio dá o tiro de misericórdia colocando cabeça
de terno nas duas pontas. Sorri. Faz as
contas mentalmente. Saiu quatro pedras.
Tem quatro com ele. Agora sou o
dono da partida, pensa. Chama a mulher.
-Benhê! Trás mais uma gelada!
Ela entra
com a garrafa de cerveja na mão. E na outra o abridor.
Ricardo olha
atentas, as pedras.
-Passo, disse Ricardo.
Otávio
coloca uma sexta pedra.
-Passo novamente, disse Ricardo.
Otávio sorri. Levanta-se faz uma pantomima, e diz:
-Aqui quem manda sou eu! Essa ponta é minha!
Viu!
Ricardo sem
paciência.
-Joga!
Otávio coloca
a pedra, com força.
-Bati! E de carroção! Vale dois
pontos! Fechei! Faz uma algazarra com o amigo, empurra, bate nas costas.
Depois da
festa chama a mulher.
-Benhê! Mais uma!
Ricardo
avisa com gosto.
-Ela saiu você não viu?
-E´? Nem vi. Estava tão entretido com
minha vitória!
Faz a
observação
-Anda entretido demais, não acha?
-O que você está querendo dizer?
-Que ela saiu e saiu com um short tão
curto que se andar rasga!
E
completa:
- Você não tem ciúmes dela sair assim
não?
E desabafa
para o amigo:
-Aqui pra nós, com todo respeito.
Ricardo vai
até a cozinha. Pega a cerveja. Otavio meche as pedras. Fica pensando.
Ricardo
enche os dois copos. Toma o dele de um gole só. Chupa a espuma do bigode. Vai até
a porta da sala. Observa se Helena havia saído mesmo. A rua deserta. Carros
passam. Volta com as mãos nos bolsos.
-O que foi, pergunta Otávio.
Desembucha!
-Não consigo ficar calado! Quando sei
essas coisas, ainda mais de um amigo! Dá uma raiva! Tenho que contar! Mas é uma
bomba!
Otávio solta
as pedras. Fica rodando uma na mesa. Parece uma roleta.
-Acende o estopim amigo! Que venha a
bomba.
A bomba
Ricardo toma
mais um copo para criar coragem. Respira fundo. Fala.
-Tua mulher, nunca desconfiou dela?
Olha para
Otávio. Ele está pálido. Assustado. Por fim consegue balbuciar algo.
-Nunca me deu um quê assim de
preocupação! A família toda é assim. Da antiga. Quando casam é para a vida
inteira.
-Pois é! São dessas que eu desconfio
mais, disse Ricardo.
-Olha amigo, pare de falar mal da
Leninha, pois é uma santa mulher. Aliás, ela vai todos os domingos na missa das
sete, comunga com Cristo, e sai muito pouco de casa...
-Mas esse pouco que sai, segundo a
cidade inteira... inteira viu, quando você sai para o trabalho ela sai para os
braços do amante. A pergunta é: Como você não sabe? Pois toda a vizinhança está
careca de saber e falam por aí que você é um corno manso. E você sabe que nossa
amizade não foi feita nas coxas! Isso não! Nossa amizade veio do berço, lá do
interior, nossos pais foram vizinhos, compadres, toda essa coisa que faz os
laços mais fortes...
-Peraí! Você tem provas? Porque essa vizinhança sempre
teve inveja de mim, por que Heleninha é um show de bola de mulher, gostosinha,
carinhosa e se não provar, toda essa ignomínia contra nós, essa amizade que
tanto alardeia por aí, termina por aqui... Por essa luz, por Deus que se você
não provar agora, não quero ver você aqui nem pintado de ouro, ouviu?
-Mas amigo, como provar essas
coisas? Só se armar uma tocaia e como se
diz por aí, pegar com a boca na botija!
Otávio super apaixonado e reticente:
-Sem provas, sem crimes! Faça o
favor, de sair por aquela porta, ganhar o olho da rua, e nunca mais volte aqui!
Nunca mais!
Ricardo
antes de sair lava as mãos.
-Otávio! Fiz o que grandes amigos devem fazer agora
você faz o que quiser da sua vida. Sabe como o chamam por aí? Otário e não
Otávio. Sai e ouve o estrondo da porta se fechando as suas costas. Meio dia
Leninha volta.
-Uai! E o jogo?
-Dei uma buxuda nele e o idiota saiu
morto de raiva.
Helena vai
tomar banho. Otávio ouve a água banhar aquele corpo que ele até hoje achava que
era só dele. A água corre fazendo cascatas em vários pontos. Ela é uma mulher
cheia de encantos. Tenta não pensar, mas os pensamentos negativos chegam como
gafanhotos, destruindo o que vê pela frente.
Os Domingos depois
Uma semana
depois, Otávio estava sentado numa cadeira balançando-se enquanto aparava as
unhas. Helena na cozinha, lavando a louça de ontem. O radio tocando as dez
melhores da semana. O locutor:
“Agora vamos
tocar a mais pedida da semana: A linda
música que estourou nas paradas: “Infiel”. E claro como diz o título, a letra
fala sobre infidelidade. E brinca com os telespectadores.
“ Gente! Traição
ninguém merece!” “Fui! Até domingo que
vem com as dez mais! Tchau!” Deixa a música martelando. Infiel! Infiel!
Helena
cantarolava. Otávio parou de cortar a unha do dedo mínimo. Ficou procurando
naquela mulher, sua mulher há vinte e cinco anos, traços de uma traidora. Que
estava até certo ponto tranqüila a seu ver, e procurava detalhes, algum rastro
de infidelidade.
Se
questionava: “Uma mulher quando trai ficam rastros? Marcas? Sinais? Como deixam
nos homens?”.
Certos
sinais que Leninha, procurava, quando ele chegava das peladas, das quintas à
noite, ela corria para o quarto e enquanto ele tomava banho ela vasculhava, pegava
suas roupas, procurava cheiros, marcas
de batom, arranhões etc. e etc.
Ela chegou
ao cúmulo, lembrou. Um dia de madrugada
acordou assustado, com ela medindo seu escroto, pesando com a mão e ele
desconfiado perguntou e na época ela disse entre dentes:
- Você sabia que se o homem transar
na noite passada, o escroto fica mais murcho e mais leve? Que se a mulher for
inteligente vai saber se o homem está lhe traindo?
Ela falava assim na terceira pessoa.
E
completava:
-Os homens que tomem tento, que mulher
não é boba!
Terminou de
cortar a unha e a letra ficou martelando em céu cérebro. Aquilo não era letra
de música decente. E soltou a imaginação.
Viu a mulher,
nua sobre uma cama qualquer entregue ao prazer mundano. Fazendo as coisas que
ele gostava de fazer juntos, com alguém que ainda não tinha rosto, mas tinha
todo o resto, até dando dicas de como gostava, assim e assado, mais devagar
agora acelera e tal e tal. Um beijo aqui, uma tapinha acolá. Ele foi ficando
vermelho, uma opressão no peito e levantou-se.
-Mas logo terá rosto! Ah! Isso vai!
Leninha o
interpela:
-O que foi?
-Nada! Pensei alto!
-Benhê! O Ricardo não vem?
-Não!
Inventa uma
história.
-Discutimos na pelada de quinta! Uma entrada
ríspida que ele me deu!
-Nossa! Brigou com seu melhor amigo!
-Amigo! Amigo! Um amigo da onça, isso
sim!
-Ele parecia ser tão cordial!
-As aparências! As aparências! Vou
buscar pão!
E saiu para
a rua.
A rua
Chegou à
padaria, uma grande fila. Viu rostos
rindo dele nas janelas. Qualquer aceno o assustava. Muita gente. Lembrou-se que
quarta era feriado e o pessoal veio todo da capital emendar a semana no litoral.
Ele achava um saco à cidade nessa época. Era fila para todos os lados. Nos
bancos, caixas eletrônicos, mercados, farmácias. Segundo ele o povo não tinha coisa melhor para
fazer. Mesmo nas filas, parecem felizes,
com vergalhões vermelhos do sol, tatuagens, roupas curtas, uns até de trajes de
banhos. A cidade deixava de ser só dos pacatos moradores, e agora pertencia a
turba que vinham de todos os lados. Postou-se no final da fila.
Conversas gerais. A maioria relacionada ao
calor ou a vida dos outros. Pensou: até
chegar sua vez, dava para tomar uma ali no bar da esquina, e avisou a pessoa de
trás. Um magricela de óculos, fundo de
garrafa. Assentiu com a cabeça. Um tímido pensou. Detesto os tímidos. Uma raça
de gente miúda que luta todos os dias para aparecer, e quando acontece, ficam
vermelhos, calados e doidos para caírem num buraco. Sofrem demais para se esconderem da vida.
A gelada não
entrou bem. Veio uma azia até a boca do estômago. Lembrou de Helena. Um
turbilhão de pensamentos.
Assim que a
viu gostara do jeito dela, da sobriedade dela. É claro que também seus
atributos. Seios fartos e bunda empinada. Quando tentou beijá-la pela primeira
vez no cinema ela pôs a mão no peito dele e questionou:
-É para casar? Só quando ele
assentiu, é que ela beijou-o com paixão, enfiando a língua o mais profundo
possível.
Um ano
depois desse primeiro encontro ele tentou algo mais. Novamente veio o toco.
-Sou virgem e só faço depois do
casamento!
Nove meses
depois se casaram.
A lua de mel
passou-se numa chácara de um amigo. Como não era noite de lua ele na hora quis
acender a luz. Ela correu para se vestir.
-Acho uma tremenda falta de pudor a
mulher fazer sexo assim às claras. E apagou a luz.
No outro dia
os familiares queriam saber se sangrou. Uma cafonice. Sangrou. Será que não foi
a fimose? Deixa disso Ricardo. Fui seu primeiro namorado. Ela era Bv. Boca
virgem.
Até chegar
aos dias atuais, foram dez anos de escuridão total. Agora mais livres das
amarras que a sociedade cinge os nós, tinham experimentados quase tudo. Só o
sexo anal ainda era tabu. Claro que ele tinha tentado, sem lograr êxito.
Assim
balançou a cabeça sem acreditar na história que o amigo contara. Mas esses
lances são como chicletes, colam na mente e só se dão por vencidas quando o
escritor passa ao papel.
São fatos
relevantes da vida que entalham a alma.
E se ela
estiver fazendo com outro justamente o que não faz comigo? E se e se?
Nisso o quatro olhos levantou a mão. Ele
rosna.
-Tímido imbecil!
Pagou a
cerveja. Na fila.
-Quatro pães moreninhos!
A balconista
lhe sorri.
-Gosto de moreninhos também!
Ele a olha.
Os seios meios fora do uniforme. A calcinha marcando por baixo, entrando, pequena,
numa bunda enorme. Pega os pães.
-Próximo! A balconista grita.
A fila anda.
Ele sai.
O amigo
Quando
retornava para casa uma voz o chama.
-Otávio! Está fugindo de mim? Era
Ricardo. Com roupas e tênis para malhar. Estava suado.
-Depois de tudo que me falou! Não era
para menos.
-Podemos conversar? Vamos sentar ali
naquele bar. Ele reluta, a mulher está esperando, não tem tempo agora, fica
para outra vez mas...
Sentaram-se.
-Uma cerveja, por favor!
-Já tomei uma ali!
-Mais uma não vai fazer diferença!
Tomaram várias. Saíram abraçados até no final
da rua. Por fim ele disse ainda:
-Ela é uma santa e vou provar!
Otávio seguiu em frente e Ricardo subiu ao
sobrado onde morava.
Chegou à
varanda. Talvez pensasse assim. “Ali vai um bobo, um corno manso!” Ou “O marido
é o último, a saber”. Ou “Tem gente que é cego”.
Mas a
verdade é que não pensou nada disso. A mente estava vazia olhando o outro, o
amigo, trocando passos tortos pela rua até sumir de vista.
Em casa
Quando ele
colocou o pé dentro de casa escutou:
-Mas isso são horas de chegar, para
quem foi só comprar o pão? Você está louco?
-Eu encontrei o Ricardo, e ficamos
batendo papo até agora!
-Quanta coisa para se falarem! Está
doido?
-Você que está maluca mulher! Ora
essa! Vá se daná!
Helena nunca
vira o marido assim. Arregalou os olhos.
-É culpa da bebida! Eu sei! Quando
bebe perde o juízo, a noção! Amanhã quando passar o pileque, conversaremos!
-Isso! Amanhã colocaremos os pingos
nos is! Nos is, viu?
Ela ainda
falou antes de entrar no quarto:
-É! É bom mesmo! Chega dessa vida
dupla!
Ele ficou
pasmo no meio da sala, ela bateu a porta.
As
discussões eram sempre assim. Não ia a lugar algum.
O caso
Na segunda
feira Otávio fez o de costume. De manhã bem cedo, tomou um banho, escovou os
dentes beijou Leninha no rosto e no que ela retribuiu com sofreguidão eles
fizeram amor pela primeira vez depois que o amigo contara aquelas coisas. Era
para aplacar a discussão do dia anterior.
Não se sabe
se por sadismo ou cólera, talvez Freud explique, mas ele finalmente conseguiu penetrá-la por trás.
Ela falava que sentia dores e ele mais tesão. E esse jogo foi longe, levando-o
a um gozo jamais sentido.
Assim deixa
a mulher, toma um banho rápido e corre para o serviço. Até o trabalho foi
assoviando. Era seu plano. Senta uns cinco segundos olha uns papéis e pede ao
patrão para sair, coisa de vida ou morte diz. “Hoje pego com a boca na botija!”.
Chega à esquina e espera.
Não muito.
Leninha, sua Leninha, sai toda arrumada, olha para os lados e pega um taxi. Ele
pega outro. Diz a frase célebre: “Segue aquele táxi!” Muitos filmes têm essa cena.
Sendo assim não vou narrá-la. Passam direto pelo centro e toda área comercial.
Nada de compras ele pensa. Depois entra no giratório passa o viaduto para o
lado das praias. Em frente ao shopping. O estacionamento lotado. O maior palco
do capitalismo. Tudo ali é feito para tomar seu mísero dinheiro. Passam direto.
Entram num bairro conhecido como dos estudantes. São casas menores para os
gastos apertados de quem está estudando forte para crescer na vida. O taxi
para. Ela sai. Uma casinha isolada de frente a um precipício. As ondas, lá
embaixo quebram-se na encosta. Ela desaparece pela porta e a fecha com cuidado.
Já vira essa
cena noutro filme. Não se recorda agora. O traído consegue entrar na casa e
escutar todo o diálogo. Não lembra as palavras. Deve ser a raiva. O ódio. No
filme há uma tempestade. Relâmpagos clareiam o cômodo escuro. Trovões roncam no
céu.
Ele entra.
Fica pasmo.
No botequim
Depois de virar o décimo copo Otávio continua:
-Então meu amigo, eu me esgueirei
pelo muro, pelos quintais, e vi. Vi com meus próprios olhos. Tinha levado
aquele revólver vinte dois, e o apertava contra a mão, Ela me traia sim, descaradamente.
Recebia carinho de outra pessoa, dizia que amava, que adorava, essas coisas
bobas que dizemos. Aí não agüentando mais ouvir, joguei meu corpo sobre a porta.
-E o que aconteceu?
-O que eu não imaginava!
-O quê, conta!
-Calma! Vou contar!
Otávio vira
mais um copo.
Continua:
-Leninha,
minha Leninha, estava na cama do jeito que sempre sonhei!
Ricardo de
boca aberta:
-Como?! Como!
-Ela estava nua, como veio ao mundo,
abraçada e beijando-se loucamente uma loira, uma estudante, vinda do interior, com
as pernas entrelaçadas...
-E ... O que você fez? Matou-as?
- O que eu fiz? Ora bolas! Convidei-me
à festa!
-O que? Que??
- Isso mesmo que você está demorando
a entender! Agora moramos juntos! Precisa ver amigo, que pitéu! São carne e
unha! E eu que não sou bobo nada,
formamos o trio mais feliz do mundo.
O amigo diz:
-Mas e.... E a traição?
-Que traição amigo? Foi a coisa mais
legal que aconteceu comigo nesses trinta anos!
O amigo
ficou rindo. Por fim pergunta:
-E nosso dominó de domingo?
-Sem falta! Mantemos a tradição,
claro!
E brindaram
sorrindo.
-Viva a La vida!
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