O buraco
Tinha lido
algo, a respeito da criação. Nele o
autor falava sobre a dificuldade dos primeiros passos, exemplificava com frases
de outros autores e finalmente dava algumas dicas genéricas a respeito, da relevância
das anotações, do escrever sem medo, dos cortes etc.
Assim ao terminar o livro, sentiu-se como a lagarta
que sai do casulo, transformada em uma linda borboleta, apta ao voo, a
descoberta, ao primeiro texto.
Nessa manhã de primavera, onde o sol brilhava
lá fora, se achava frente à tela do computador. Abriu o Word e cintilou a
página em branco.
Pegou o
dicionário, as anotações que vinha fazendo no decorrer da semana, pensamentos,
características, conceitos uma parafernália de palavras, e escreveu a primeira
frase. Achou que não tinha consistência.
A primeira frase serve de engodo para
o leitor. Tem que ter conteúdo. Deletou.
-Filho! Vem aqui!
-Mãe! Eu estou tentando criar algo,
uma poesia, um texto!
-Deixa de vadiagem! Venha aqui!
Osvaldo
deixou o computador ligado, minimizou o Word. Sempre tem os curiosos, e desceu
ao quintal.
-Seu pai pediu para você furar um
buraco aqui! Temos que fazer uma cisterna! A água está cada vez mais rara.
-Mas mãe logo agora que tinha uma ideia,
o texto começara a correr macio, sem entrave, como um rio de planície.
-Filho, primeiro o trabalho, depois a
vadiagem!
Disse isso
trazendo uma cavadeira e uma balde.
-Mãos a obra, ele disse.
Tirou a
camisa e ficou só de calção e descalço. Gostava de sentir a terra sob os pés.
Começou com
as mãos mesmo. Nada de utensílios por enquanto. Queria fazê-lo o mais simples
possível. Tirou as folhagens. O buraco seria embaixo da mangueira. Ainda bem.
Uma sombra refrescante.
Quando cavou
os primeiros centímetros já sangrava e doíam as unhas. A terra estava úmida e
encontrou por acaso, moradores daquela profundidade. Pequenos insetos e
minhocas.
As minhocas
são importantes para a agricultura e para os pescadores como engôdos para os
peixes.
O solo se
cortado em longitudinal parece uma tela a óleo.
Ia observando tudo isso com seu
trabalho braçal. Engraçado que diferente de um texto, ele observou que cansava fisicamente
no entanto a mente estava leve e solta
livre para pensar.
Pegou a
cavadeira. Bateu firme no solo, e enchia a balde. Depois derramava ao lado. Ia
se formando uma montanha roxa. Seria assim a formação das montanhas? Dos
montes?
Gotas de
suor pingavam na fronte. Ele passava o indicador e aspergia para o lado em
gotas. Foi lentamente arredondando as bordas. Ansiava um buraco bem feito com
paredes paralelas. Lá para o meio dia ele já desaparecia dentro dele. A terra é
morna. Incrivelmente morna. Já podia sentar. E ficar olhando sua obra. A obra
tinha lá sua importância, mas não era tudo. Mais ou menos um metro e oitenta de
diâmetro e dois metros de fundura. Sabia por que conseguia deitar e ficar
olhando as nuvens passando. A terra, essa terra que um dia cobrirá seu corpo,
como um cobertor, lhe protegendo do frio, das adversidades do tempo, das
intempéries da natureza, guardando seus ossos até tornarem-se iguais, somente
pó.
Almoçou com
grande apetite. O trabalho braçal lhe deu fome. Os outros dão-nos fastio. Será
por isso que a maioria dos escritores do passado morria jovem? Será que a
criação de arte suga nossa vida? Suga nossa alma?
Fez a sesta.
Em sua casa era sagrado. Logo após o almoço corriam aos quartos. Um sono leve
de meia hora. Levantou disposto. Passou em frente ao computador. O cursor piscava.
Tinha forma de garra. Ele que quis. Baixou da internet.
A página
brilhava a espera de uma palavra, uma frase, um parágrafo. Teclou sem muita
convicção:
“A vida é
formidável porque é finita”.
Minimiza
novamente a janela.
Pegou a
cavadeira e a pá. Era hora de continuar o trabalho. Toca em algo. Uma raiz. Estava viva, pois
correu uma seiva. Era o sangue das árvores. Se eu arrancar a mangueira poderá morrer,
pensou. Deixou de lado. Servia como escora.
Bateu no
fundo com força. Um baque seco. Duro. Uma pedra.
-Porra!
Lembrou de
Drummond: Uma pedra existia no caminho! E agora José?
Bateu e
bateu. Nada. Deve ser a ponta do iceberg, se pedra fosse igual às geleiras. “Se
não conseguimos remover o problema do caminho, dê a volta, contorne-o”.
Foi o que fez. Foi contornando-a. Passou dela
mais de um metro. Servia de escada. Era da cor cinza.
Um tumor? Um
trombo dentro de uma artéria? Uma hemorroida? Essas imagens ridículas
apareceram.
Agora tinha
arrumado um ajudante. Seu irmão menor. Ele apareceu pela necessidade da obra.
Victor. Tinha doze anos.
-Você deve ajudar seu irmão! Sua mãe
disse.
Depois de lhe xingar de todos os nomes feios, pois estava perto de zerar
um game apareceu na borda do buraco.
Trouxe a
corda e na ponta a balde. Jogou no fundo. Ele enchia e o irmão puxava para
cima, com força. O céu começou a escurecer. Victor jogou a escada e ele subiu.
Por hoje chega, disse, se limpando.
Victor saiu
alegre. Podia voltar ao jogo. Deixamos o buraco inacabado. Olhou de cima. Era
um cone comprido. Vazio. Foram dormir.
O outro dia
era sexta feira.
-Vou
passar toda féria nesse buraco, questionou.
-Essa porra se continuar vamos chegar
á china, Victor brincou.
Não era de
todo uma má ideia. Chegarmos à China ou outro lugar qualquer. Continuaram cavando.
Incrível como o buraco os aproximou, se conheceram de verdade nesse
período, mesmo.
Ele falou
dos seus jogos. Era sempre uma jornada do herói. No início o herói no mundo
comum, vivendo em paz, construindo junto da família. Depois algo quebra essa harmonia. Pode ser um
ataque de uma tribo, um roubo de uma mocinha, que o herói para resgatá-la terá
que vencer vários obstáculos e fases. E em cada final de fase terá que lutar
com um chefão. E no final do jogo lutará com o maior chefão, o mais perigoso, numa
batalha épica de vida e morte, onde o herói usará todos os truques que treinou
incansavelmente nas fases e vencendo o inimigo poderá levar de volta sua amada.
A maioria dos games é assim.
-Estou na última fase , para derrotar
o chefão!
Findou mais
um dia. Victor desceu a escada. Osvaldo ainda ficou lá dentro retirando o resto
de terra. A noite tinha caído. Com certeza ele Victor foi zerar o jogo. Era sua
vida virtual.
Vida
diferente. Seu irmão entrava na vida de personagens criado por outros, Já
Osvaldo vivia a vida de personagens criado por ele mesmo.
Nisso uns
braços puxou de volta a escada.
-Hei! Ainda estou aqui, gritou!
Não ouve
resposta.
Ouviu
barulho de pá. Pás de terra caíam sobre
ele em abundancia. Alguém queria enterra-lhe vivo. Era isso. Começou a gritar.
Em vão. Não lhe ouviam.
-Eu ainda estou aqui e estou vivo, gritou.
Por fim
pensou. Tenho que fazer algo para safar-me. Saltou no intuito de agarrar a
pedra. Estava fora de alcance. Os dedos estavam feridos. Doloridos.
Mais terra caiu sobre ele, até cobrir-lhe por
completo. Aturdido pensava: “Se eu fosse uma minhoca?”. Ia furando a terra até
a superfície. Se fosse um verme talvez.
Mas era
apenas um jovem tentando fazer um texto, que se transformou num buraco enorme, vazio,
lutando contra tudo e todos, só o seu corpo, em posição fetal, engolido agora,
sem meias palavras.
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