segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Amor


                                                  Amor




Na vida tive amores diversos,
De alguma forma não me completou
Tornando-me, frio, amargo e disperso.
Triste espectro  que jamais amou.

Talvez a busca não fora certa,
Nem o sentimento farto bastou,
Busquei longe, e talvez perto.
Nau perdida jamais aportou.

Agora maduro, procuro o candor,
Sem ilusões e rara ansiedade.
Algo bom que me toque na alma.

Nunca  a imortalidade do amor
Mas que seja rico ameno e calmo,
Simples afinal como uma flor.

Lembranças


                                                                                Sonho




Acordei sobressaltado: um sonho numa cidade assombrada.
Lá estavam  meus avós sentados em cadeiras de balanços.
Sem pressa.
Tricotavam. Riam petulantes. O relógio da sala batia doze vezes.
Não deram por mim.
Nesse instante das badaladas, pararam de ri, escutando ou pensando algo.
Olhei o relógio.
No meio da sala um carrilhão.
E o tempo que não passa... E o tempo que não passa...
Ah! O tempo. Há o tempo.
Meu gato Mimi deitado no tapete.
Umas bolas de gude num saco de balas.
Uma caiu e girou pelo canto da parede.
Encontrei! Encontrei!
Encontrei minha bolinha colorida, encontrei!
O pião! O pião! A linha unia as pontas das lembranças.

Ninguém deu por mim.
Mimi correu atrás dando tapas ao vento.
Saltou a porta e saiu.
No centro da praça um parque.
No coreto a banda tocava.
Música! Música!
Veio voando com o vento.
Uma roda gigante.
Um carrossel cheinho de cavalos brancos,
Vazio e girava.
Corri e sentei-me num alazão.
O carrossel girou e girou tão rápido que eu quase perdi o fôlego.
Pensava comigo:
“Não temas desfalecer, pois é só um sonho,
Um sonho mirabolante,
De uma criança encantada.”
E o carrossel girou... Girou...

Sabia, eu sabia que no meio da sala,
O relógio não parava.
TIC TAC TIC TAC
TIC TAC TIC TAC
TIC TAC TIC TAC
 TIC TAC TIC
TAC TIC TAC
TIC TAC
TIC…
Meus olhos jamais vira coisa igual.
O cavalo me levou para todos os continentes.
Voava entre as nuvens.
Nuvens doces de algodão doce,
Doce vida que já foi.

O vento bateu a porta,
Corri de volta para casa.
O relógio parado.
A cena parada.
Pausado.
Já não eram meus avós, mas meus pais.
Os cabelos branquinhos... Branquinhos que dava dó.
O dó que eu tinha era que eles não estavam na mesma dimensão.
Nem prestavam atenção.
Mamãe balançava-se na cadeira,
A cabeça tombada de lado sonhava,
Papai ouvia seu rádio, atento as notícias...
Nem me viram chegar.
Entrei pé ante pé,
Só Mimi miou como fazem os gatos, desconfiados.
Segurei o ponteiro das horas e o tempo parou.
Nesse momento o vento,
sempre o vento,
Entrou pelas janelas, bateu portas e panelas,
E um redemoinho foi tudo metamorfoseando,
E num átimo,
 Criança eu fiquei jovem, fiquei moço, fiquei velho,
E o relógio da sala voltou a funcionar.
A sala vazia,
Só o
TIC TAC TIC TAC TIC TAC TIC TAC...
Indefinidamente até eu acordar.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Amor







Recebi um bilhetinho teu.
Perfumado.
Onde datado  e escrito em letras garrafais:
“Amo-te para sempre.”
Quando em minhas mãos jovens,
Suspiros e afagos.
Desenhado nos cantos com florzinhas miúdas.

Foi na época dos sonhos.
Hoje remexendo no baú das saudades,
 Tal papel esteve em minhas mãos trêmulas.
A vista cansada vislumbrara que,
As flores se apagaram,
Quase murcharam...
Da frase sobrara se muito o sempre.
Do amor nada.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

A cria







                Pessoalmente adoro tua fragilidade,
O bater ritmado do coração, o insuflar do oxigênio para os pulmões,
Tão relevante. No início o sopro. Levante e  Ande!
Adoro o sangue correr nas veias, artérias e arteríolas, irrigando e levando
Calor as carnes e músculos,  deixando-as mornas, apetitosas para  um afago, uma ternura.
Adoro os neurônios nas sinapses, gerando energia, para movimentar o mundo.
Adoro a bunda... A bunda... Abunda.
Abundam odores, humores e tremores nas carnes internas e ruivas.
Adoro o fundo dos teus olhos, a cor de tua íris...
Teus seios alimentam o prazer. Seio da terra que alimenta.
A vagina órgão de lábios que sorriem,
Vulva úmida e ardente, boca sem dente...
Útero que nos guarda, que nos protege da origem ao fim.
Adoro teu corpo.  Frágil. Decadente. Amo o Efêmero.  
A alma não.
A alma é eterna.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O circo





Eu e meus irmãos, somos cinco, três homens e duas mulheres, desde pequeno fomos por assim dizer criados como bichos. Não que tivesse faltado amor, longe disso, fomos criados como dizem, um pão  na mão o pau na outra. Nossa mãe era cuidadosa até demais e queria nos ver sempre limpos, vestidos todos iguais, moda da época, parecíamos pares de jarros, e como lutávamos contra isso esse padrão, ela com raiva de nosso desdém, quando chegavam visitas ao mostrar a casa, costume antigo das pessoas do interior,  falava compassada assim:

          -Esta é a sala, esse é meu quarto, era última moda uma dorminhoca sobre a cama.  E aqui... O quarto dos bichos.

Naquele tempo dormíamos de rede, costume dos nordestinos, e embaixo delas três poças enormes de urina.
Aqui um parêntese. Não era nossa culpa juro. Meu irmão mais velho tentava a todo custo parar esse vício, mas não conseguia. “Um dia não tomei água a noite, não fiquei perto de fogo, pois diziam que o fogo fazia ter a urina solta, e, demorei a dormir vigiando.  Altas horas deu aquela maior vontade de ir ao banheiro, e levantei pé ante pé para não acordar ninguém levantei a perna do calção  sem olhar para o fundo, -   aqueles banheiros que tem um buraco no chão  uma enorme fossa e tínhamos o maior pavor de sair de entre os excrementos qualquer monstro horripilante, - e relaxei deixando o líquido morno descer. Morno sim, pois nesse momento senti o calor nas pernas e atinei que estava na rede, mas agora era tarde, o líquido já descia,  o banheiro fora mais  um logro dos sonhos, e como tinha começado agora era relaxar e sentir  escorrer naquele calorsinho tão bom pelas pernas e que encheu a mesma poça no piso de cimento queimado.”

Uma semana antes papai já tinha prometido uma surra de palmatória,  - Palmatória é feito de madeira dura parecido com um martelo de bater carne, usado para castigar as mãos -, e foi justamente nessa fossa que eu havia jogado a palmatória. Com medo da surra dei um fim nesse objeto tão perverso. O fedor era insuportável o que nos fazia sair do banheiro rapidamente. Eu mesmo prendia a respiração e tentava fazer o serviço em segundos. Muito tempo depois de passar os anos aprendemos que esse tipo de toalete era uma construção sábia, pois nos mostrava o quanto valemos “nada” perante a vida como dizem as pessoas nos velórios:
          -Não valemos nada!

Foi nesse mesmo banheiro que  nos juntamos uma noite para dar as primeiras tragadas nuns cigarros feitos de folha seca. Engasgamos com a fumaça. Era ali também que víamos  as revistas de mulher pelada. Era nosso esconderijo  nosso “bunker”.  Se viesse alguém era só jogar a revista lá no fundo.
         
     Já boiavam no meio das merdas, Vera Fischer, Xuxa e outras estrelas internacionais.

E foi por tudo  isso que nessa manhã quando o circo chegou mamãe disse:

-Nenhuns dos três vão. Ou param de fazer isso ou não vão ao circo.

As irmãs estavam livres, há muito tempo que dormiam em camas.

Quando o palhaço da perna de pau andou pela cidade gritando no megafone acompanhamos a cidade inteira. Era uma aberração depois de tudo que passamos.

          -Hoje tem espetáculo? Respondíamos  pegando balas que ele jogava:
          -Tem sim senhor.

          -Tem marmelada?

          -Tem sim senhor.

          -Tem goiabada?

          -Tem sim senhor.

          -A que horas?

          -Dezoito horas senhor.

          -E vocês vão?

          -Vamos senhor.

Depois vimos todo o trabalho dos peões para pregar as toras de madeira, colocar o picadeiro, levantar a lona, o poleiro, vimos os leões, os macacos. Passamos a manhã inteiro ali sentado no meio fio o olhar comprido sonhando em ver a passagem furtiva de alguma bailarina.
Nos dias que antecederam a estreia, fizemos perna de pau, com cabos de vassoura ou com lata de nescau. Esquecemos até o jogo de pião, de bola de gude e de empinar  papagaio.

Na sexta feira antes da ave Maria, vi minha irmã com bobs no cabelo. Desconfiei.

          -Vocês vão ao circo? Juraram que não, que estava assim para a formatura no domingo.

Desconfiei e não preguei o olho. Mas aquele tempo dormia com as galinhas. Cedo. No cair da noite estávamos todos roncando.

E veio o sonho, o calor nas pernas. Levantei. Os olhos pregados de remelas, e fui descolando um a um, os cílios quando tava difícil usava urina. “A melhor coisa para desentupir ouvido ou tirar remelas dos olhos”. Acordei meus irmãos e vendo que não tinha ninguém em casa, tiramos a taramela da janela e pulamos.  Descemos pela praça, as luzes todas acesas, passamos a  rua do rio, em frente da cadeia, a lona do circo brilhava.   Dentro gargalhadas e músicas. Em frente à porta estacamos. Não usávamos pijamas como os outros meninos, como mamãe não sabia costurar, fazia igual à bata dos padres, morríamos de vergonha disso. O porteiro perguntou vendo nossos trajes:

          -De quem são filhas as meninas?
Respondemos em coro:
          -Meninas não!
          -Oh! Oh! Desculpe os meninos. Como chama- se seu pai?

          -Papai, meu irmão mais velho respondeu. O porteiro riu.
Era um velho vestido de palhaço.  Tentou com o menor.

          -Qual o nome de sua mãe? Ele tirou a chupeta da boca e falou:
          -Mamãe.

          -Certo! Certo! Ah! Ah! Ah! Ah! Tão me pregando uma peça. Ah! Ah! Ah! Vamos tentar novamente. Prestem atenção viu. Todo pai é papai e toda mãe é mamãe. Mas ambos têm nome.
          Virou para mim e rindo perguntou a mesma coisa.

          Eu sempre fui considerado pelos meus irmãos um lerdo. Pois desde criança tinha o olhar vago, parecia observar algo ou o nada.  Fitava coisas gerais como o  cume das montanhas ou os detalhes das coisas, o simples tecer de uma teia, o tamborilar da chuva no telhado, o desenho das nuvens, o barulho dos pés no cascalho. Desconfiava que essa lerdeza  no fundo um dia me ajudaria de alguma maneira, todas essas imagens, sons e cheiros que guardava no íntimo tornariam quando brotasse  em mim talvez meu verdadeiro  ofício que era de escrever.

          Aí eu lembrei que Jesus tem nome, que eu tinha nome, nosso gato Mimi idem e consequentemente nossos pais também.

          Tirei a chupeta, limpei a boca com o pano e falei.  Os olhos brilhando:

         -Ulisses!

         -Ah! Menino inteligente. Ulisses o herói. Então são os filhos de Ulisses do velho Félix. Hê! Hê! Já cacei muito pato do mato com ele.

Pegou-nos no colo e nos levou para dentro todos mijados.

Por dentro o circo era cheio de cores e felicidade. Quase fomos fulminados por tanta alegria.

 Deu tempo ainda de vermos o último ato da peça “O auto da compadecida”. Desde esse dia paramos de fazer xixi na rede, ganhamos cada um uma cama e na fala de mamãe deixamos de sermos “bichos” e viramos “Uns homezinhos”.
                                                       

                                                               03/03/1962

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Era a copa do mundo


      



    Estávamos numa mesa ali na barragem, comendo tucunaré frito com cachaça de cabeça. O espelho do açude Mãe d’água estava tremulando. Canoas de pescadores ancoradas as margens.
      Zé das jumentas começou:
      -Olhe! Com certeza a melhor foi a de 82, visse. Sei escalar todinha, na ponta da língua. Pense num  meio de campo porreta: Zico, Sócrates e Falcão. E os laterais Éder, o canhão e Júnior nosso conterrâneo. Futebol arte.
      Nisso entra Dalvinha no bar. Saia curta. Olhamos pros tornozelos dela. Grossos e roliços. Debruça-se no balcão. Pediu uma caixa de fósforos. Talvez tivesse ido ali, para investigar o que falávamos. Cidade pequena cuida da vida alheia.
 Sai rebolando as cadeiras.
      -Viu?
      -O que Boca mole?Perguntei.
      - Ela tá com rolo por aí.
      -Não acredito, digo. Tão novinha!
      Canhoto calado. Mastigava uma posta de peixe. Toma uma talagada e joga o resto paro o santo. No pé do balcão.
      -Rolo com quem, pergunto.
      -Com Severino do Fenemê.
      -Verdade?
      -É.
      -Aquele que faz frete pra João Pessoa.
      -O Próprio.
      -Que é casado e tem dois filhos de peito?
     -Esse mesmo.
      -Vixe!
       Zé das Jumentas dá uma tapa na mesa. Levanta-se e alisa as mãos. Tonho do bar grita lá da cozinha:
      -Mais um tubo de cana?
      -Vê mais um que hoje tô com a gota serena! Vixe! E  demos uma gargalhada.
      -As mulheres cheias de preconceitos comigo e dão para qualquer um?
      -E ela é boa visse! Eu disse.
      -Ai! Ai! Uma potranca completou Zé das jumentas.
      - Será que é caso antigo?
      Manoel da Kombi passa buzinando. Não escuto a resposta de Zé.
      Encho o copo dos três. Canhoto palita os poucos dentes.
      -Também acho que a melhor foi a de 82. Voltei ao assunto de início. Mais técnica. Mas a de 70 tinha na linha Jairzinho, Gérson, Tostão, Pelé e Rivelino. E trouxe o caneco.
      -Oxente! A de 58 trouxe também o caneco disse Zé das jumentas. E tinha Djalma Santos, Didi o “folha seca”, batia uma falta como ninguém, Zagalo e tantos outros bons jogadores. Esfrega as partes.
      -E você Canhoto, qual sua preferida, perguntei cutucando-o com o pé.
      Ele tomou de um só gole a cachaça, fez uma careta, pegou uma siriguela para tirar o gosto, cuspiu no canto e falou:
      -Se vocês jurarem não me interromper darei minha opinião e conto tudo do jeitinho que aconteceu.
      Aceitamos de pronto, pois não era todo dia que Canhoto falava.
       Um palito no canto da boca.
       -Para mim, que sou mais velho, já vi muita coisa, já passei por muitas secas medonhas e já vi Mãe d´água  sangrar mais de três metros na década de sessenta, uma sangria medonha. Digo e repito.  O melhor time que esses olhos que a terra há de comer viram jogar visse, foi o saudoso 4 de abril. Eh! Time porreta aquele. A seleção brasileira e qualquer outro time ficam  aqui ó no chinelo.
      Ficamos de boca aberta. Não esperávamos por essa. Nem ao menos conhecíamos. Continuou:
      - Lá para década de cinquenta. Um time de monstros E no arco advinha quem pegava tudo? Quem? Quem?
      -Vá fale! Gritamos.
      Não sabíamos. Éramos mais moços. Apontou seu dedo seco para mim.
      -Euuuu? Ele riu com pouco dente.
      -O melhor arqueiro que já vi atuar. Seu pai. Saltava como um anjo. Muito melhor do que Ado, Félix, Leão e tafarel. E ainda pegava sem luvas.
      Nisso rebobinei na cabeça toda lembrança como num filme mudo. Aos domingos, eu fazia o dever correndo, em dia de jogos o dinheiro curto, saia de casa mais cedo à procura do melhor lugar para entrar sem pagar. Muitas vezes era pela torrefação de meu tio. Era só pular um muro, passar por baixo das moitas de melão de são Caetano fugir do olhar dos vigias e pular um esgoto a céu aberto. Pronto. Estava no gramado. Era só comprar uns roletes de cana caiana e ficar sugando o suco doce e assistir a partida em pé ou sentados na  beira do gramado. Ainda levava o estilingue para dar uns tiros em algumas lagartixas pelos muros
      Já quando meu pai era o juiz da partida ele tinha a prerrogativa de nos colocar para dentro. E foi com prazer que fiquei sabendo dessa arte de meu pai como tantas outras, como fazer o melhor pião ou carrinho de madeira. Tive o primeiro caminhão com rodas torneadas e feixe de molas da cidade.
      Olha para os lados e tosse seco. Observa as nuvens. Ele sabe quando vai chover.
      -Teve um jogo aqui bem depois da inauguração do cine CAP lá no DNOCS. Por sinal o primeiro filme que passou foi “O corcunda de NotreDame”. Não gostei. A molecada também não. Só os adultos. Depois passou D`Jango. Um faroeste porreta que só vendo. Foi no dia que Mané da padaria foi ver com toda a família. Na ocasião, quando começou uma cena de  tiroteio, -pense num homem doido da gota -,ele como nunca tinha visto aquilo, sacou da arma, e começou atirar para todos os lados.
      Na delegacia em frente do delegado Bigode ele se explicou desse jeito: “O que você faria compadre. Toda sua família correndo risco de morte, eu tinha que fazer alguma coisa, não é?”. 
      Para o delegado não restava alternativa senão libertá-lo, sem antes falar assim: “Seu Manoel aquilo tudo é ficção, são imagens vindo de uma película, em velocidade dá a impressão de movimento essas coisas”. Mas são somente retratos enfileirados.
      Lembrei quando fiz meu primeiro cineminha. Uma lâmpada cheia d água, uma caixa de sapato e uma lâmpada acesa.
      Ele ainda falou: “Pode ser tudo isso, mas que não ponha em risco minha família.”
      E essa história se espalhou e virou piada contada até na sacristia da igreja Santa Rita de Cássia. Quando o Padre Andrade notou que já estava virando chacota, fez um sermão na missa do domingo seguinte, que era o de ramos, a favor dos humildes e simples e defendendo Seu Manuel, que era pai de família exemplar essas coisas.
       Todos nós sabíamos que não era bem assim, que seu Manuel, andava muito pela rua do rio atrás das mulheres, mas não seríamos nós a delatá-lo. Afinal de contas tínhamos nossos pecados.
      Pois então como ia contando, o time 4 de abril que seu pai jogava, ganhava de todos os times da redondeza, como cajazeiras, Souza, Patos, Pombal. Era o terror da região e se qualquer time de bosta desses aí, até mesmo a seleção brasileira viesse aqui no sertão tomava uma surra de nós. A camisa era igual a do flamengo, rubro negra. Uma beleza que só vendo.
      Pois então numa decisão de campeonato contra o time de Souza, lembro-me disso muito bem, o nosso time 4 de abril seria campeão pelo empate. Pois veja, aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo o juiz tal de Capitão Estevão teve a coragem de marcar um pênalti contra o time da casa.
      Esse homem é louco pensei, mesmo vendo que foi um lance indiscutível.  Nosso center four que era o Orlandão, tinha a fama de mau desde que deixou um paralítico lá para as bandas de Cajazeiras.  Quando viu o ponta esquerda deles fazendo fila nos nossos rapazes, gritava trisca! Trisca! Trisca! E quando viu que não tinha jeito, ninguém derrubava o curisco fora da área, rosnou lá de trás e gritou deixa. Se o Juiz ouvisse marcaria falta. Nisso quando o baixinho tocou na frente e penetrou na área, Orlandão  pulou com os dois pés no pescoço do arataca.  Era um bostinha de nada, mas veloz que nem a luz. No canto da pequena área onde não nasce grama. Subiu poeira na venta. Ouviu-se um estrondo e um apito. Triiiiiiiiiiiiiiiiii!
      A torcida ficou louca, Pedro pistoleiro sacou da arma, queria matar o Capitão  a todo custo, mas disseram que o tal juiz era militar reformado de Piancó e chegou a turma do deixa disso e por bem tudo se acalmou, pois Piancó e Coremas já vinham em atritos de longa data não era certo continuar essa briga eternamente. Somente Joaquina e suas primas, as meninas da rua do rio ainda gritaram “isso é que é um filho de uma rapariga, merece que pegue um cancro no meio do cu, essas coisas de baixo calão que tanto nos envergonha. Pois bem. Quando tudo acalmou fez-se um silêncio bruto. Só as cigarras cantavam no fim da tarde. O centroavante deles se abaixou, beijou a pelota de couro cru, correu e bateu de canhota. Para a esquerda voou a chuteira e seu pai voou atrás. Não havia observado o fato. O filho da puta do ponteiro quando tinha se abaixado soltara o cadarço da chuteira, no intuito de enganar. Ninguém tinha percebido o engodo, a isca visse? Pois olha. Quando o cara chutou a bola com a direita teu pai já estava batido. Foi aí que eu vi uma coisa que até hoje arrepio ao contar. Veja! Mostra os braços. Seu pai  viu que enquanto  ia voando  atrás da chuteira a bola corria mansamente do lado contrário. O arataca já corria vibrando para sua pequena torcida lá perto das bananeiras quando seu pai, - Canhoto me fitou dentro dos olhos, tomou mais uma talagada e continuou, - Seu pai fez uma coisa que só beija flor faz. Parou no ar e nessa zona morta de segundos, enquanto a bola rolava mansa para lado contrário ele retesou os músculos acostumados no trabalho pesado,parou no ar e daí seguiu voando noutra direção. Quando a bola ia cruzar a linha do gol,  puxou-a pelo rabo. A torcida enlouquecera. Pedro pistoleiro sacou o trinta e oito e ficou atirando para cima, Joaquina e suas primas escandalizaram a cidade ficando no meio do campo só de anáguas e uns jovens pegou seu pai colocou sobre os ombros e num pique só, fizeram a volta olímpica.
Fomos campeões.
25/06/82

sábado, 28 de julho de 2012

O dia em que quase virei político







As semanas que antecedem uma eleição são assim mesmo. Aparecem candidatos coloridos, arrogantes, humildes, ricos, pobres, tristes alegres, astutos, broncos, inteligentes, verdes, vermelhos e por aí vai.
-Ufa! Foi a primeira vez que escrevi tantos adjetivos juntos, sem, no entanto, acho eu,  merecer alguma crítica.

 Lição  número um que vemos nalgum manual de escritor se por acaso existisse um. Escritor é bicho difícil. Verdade. Diz assim: Não use o adjetivo a não ser que seja para mostrar ou esconder o personagem. Impressionante.
Não desligo a televisão. Fico observando os tipos. Uma verdadeira fauna.

Lembrei-me de um dia que meu pai me levou para escolher um pássaro como meu primeiro animal de estimação.
Cheguei à feira, pois lá no interior da Paraíba é assim. Mil gaiolas, pequenas, graúdas, de arame, de palito, com duas janelas, com poleiros  e sem.

Assustei com tanta possibilidade. Mesmo eu criado no mato, acostumado em pegar passarinho no ninho. Criava desde filhote até adulto. Todos ganhavam nome mesmo. De gente sim. E aí viravam membro da família.

Por isso falo que seria o primeiro sim, pois não se contam aqueles que vivem como gente, tendo sua própria vida, seu canto, e quando morria tinha o velório e enterro como mandava o figurino. Lembro-me com saudade da gata Mimi.

Ela era um ser da família. Mais até, pois era a única a sentar-se na cadeira de balanço de papai. Mesmo sabendo que poderia acordar assustada com um grito. Era sempre ás seis quando tocava a sirene do DNOCS. Tinha até uma brincadeira com essa sigla. Falávamos: Deus não olha os cossacos sofrerem.

Continuando:
Nós mesmos, os filhos, se por acaso, sentados, ao toque da sirene levantávamos sem demora, para que o travesseiro esfriasse e ele não falasse assim:

-Diacho! Quem sentou aqui com bunda tão quente? Não queríamos ter a bunda quente.

Mimi não. Ficava ali balançando o rabo e de vez em quando abria os olhinhos e miava como se sonhasse. Quando a porta abria saltava de um pulo e vinha esfregar-se em nossas canelas. Uma vez. Duas.  E voltava olhos fechados alisando o pelo  com prazer.

Depois ia para baixo da mesa onde estava a tigela com seu leite. Dava umas lambidas e pulava a janela  para a vida do quintal. Uma vida imensa. Era lá toda sua vida.  Por baixo das telhas, do pé de goiaba, do coqueiro que tinha rabiscado em seu tronco, nomes, segredos nossos, que ela ia caçar os seus ratos.

Nesse ínterim papai vinha do banho, cheirando a sabonete de coco, as chinelas batendo no cimento liso e antes de sentar  batia o travesseiro, virava ao contrário, e ligava o rádio na hora do Brasil. Eram doze olhos no escuro. Éramos seis. Meus irmãos e Mimi.

Hoje é que sei que aquela música que tanta temia era de Carlos Gomes “O Guarani”. As notícias que me fizeram tremer no fundo da rede quando eu principiava em dormir. Essas notícias vinham sempre acompanhadas dessa música. Mimi também não gostava.
Eram como o estalo de chicote no vazio.

“Assassinaram Kennedy”. Numa voz fanhosa. Não tínhamos a menor ideia de quem ele era na época. Depois soube que era presidente dos Estados Unidos, uma grande nação, essas bostas diziam.

Eu achava que melhor que  o Brasil não havia. Era um país que não tinha terremotos, vulcão nem grandes catástrofes. Somente algumas secas avassaladoras, mas como dizia de nós, o nordestino é um forte. Pensava até que os assassinos sempre têm seus motivos. E já sabia que tudo  girava em torno de interesses.

Depois: “O primeiro homem pisou na lua”. Grande merda  eu pensei na época. Eu já havia pisado em espinho de juá que dói tanto, dá até febre, pisado em xique-xique, mandacaru, em bosta de cavalo que dava frieira entre os dedos. Que glória tinha em pisar na lua?

Lembro-me  de meu pai  direitinho, dizendo:
-É tudo mentira desses americanos pernósticos. Eu sei por que vi a cobra fumar. Eles inventam porque são metidos a grande. Vivem colocando o dedo onde não são chamados. Umas borras bostas isso é que são.

Ainda hoje tem muita gente boa que não acredita que o homem foi na lua. Pergunte ao Manuel da venda. Ele vem com mil impropérios.
Mas voltando ao assunto, jamais havia visto tanto passarinho junto. Tinha azulão, sabiá, trinca ferro, rolinha fogo- pagou, galo de campina, tiziu, coleiro, cancão, canário da terra, pintassilgo. Muitos outros que não lembro agora. De todas as cores e tamanhos. E a cantoria só vendo. Parecia a banda de música no domingo no coreto da Praça de Santa Rita.

Ficava só ouvindo apaixonado. Tinha louro também que falava. Só vendo para crê.
Mas isso são lembranças. Preciso voltar ao tema. Como o pensamento voa, já disseram acertadamente.
Tenho que falar das eleições e dos políticos. Tantas cores. As vozes macias. Ficamos até entusiasmados. Tanta lábia. Vão resolver tudo para nossas vidas. Até parece que ficaremos em boas mãos. Papai falou: “Até  mudinho uma vez ganhou.” E cumpria tudo, pois não prometera nada para ninguém. Era surdo mudo.

 Finalmente escolhi um de plumagem linda e amarela. Levei para casa na mão mesmo. “Não carecia de gaiola, dissera meu pai.” Desde esse dia andava a tiracolo com ele. Acompanhava todos os seus passos. Colocava para dormir bem embaixo de minha rede. Até o medo de escuro eu perdi. Ele ficava por ali catando algo pelo piso. Uma beleza só.

Ganhou nome, chamava-se José, e quando virou adulto transformou-se num enorme frango.

A partir daí não tive mais sossego. Primeiro foi meu pai que queria comê-lo. Chorei uma noite inteira. Venci. Depois eram as visitas, não sei se faziam por gozação, mais era só entrar na sala e falava: “Dazinha, quero almoçar esse frango”. Eu arrumava um berreiro só.
Clarice passou por esse perrengue também. Não. Não era minha namorada não. Até poderia ser se ela quisesse. Achava-a fascinante. É. A Clarice Lispector mesmo. Apaixonei-me por ela quando escreveu: “Sou como você me vê. Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania, depende de quando e como você me vê passar”.

Minha mãe tentava explicar que galináceos são criados para ser abatida, a mesma lenga- lenga de sempre que desde a época de Cristo ou até bem antes, se falava, mas nada mudava minha opinião.
E as visitas eram daquelas pessoas que outro já falou. Como se diz delas. Lembrei-me. Recalcitrante. O que é mesmo re-cal-ci-tran-te? Um belo conto. Leiam.

E eu argumentava que tinha pegado amor por ele, essas coisas. Que José era da família já meu amigo íntimo e tal.

E aí foi o dia que quase fui político. Tentaram me comprar como fazem com eles. Prometeram-me  coisas que sempre gostei como ir ao sítio de meu avô nas férias, nadar no rio da turbina, acompanhar os “negros” ferrar o gado de dentro do curral, pular da torre do açude essas coisas que sempre sonhei fazer e nunca deixaram.

 Sou sincero com vocês. Quase sucumbi.  Minha mãe, ela própria, quando veio da capital, fora visitar minha avó Maria mulher de seu Antônio meu avô, que estava internada, trazia nas mãos uma revista de Tarzan. Jogou-a em cima da mesa displicente.

 O título baseado em “As jóias de opar” escrito por  Roy Thomas e   Desenhos de  John Buscema   by Edgar Rice Burroughs ficou a minha frente como que piscando. A capa era Tarzan em segundo plano pendurado no cipó, na mão empunhando o punhal, e em primeiro plano um grande macaco fugindo com Jane em seus braços.
Sabiam meu gosto pela leitura, e era fã número um dos quadrinhos e filmes de Tarzan.

Meus olhos brilharam com ódio. Fiz beiços e corri para o quarto. Minha mãe foi atrás com as mesmas ladainhas, e meu primo mais chato acompanhou-a justamente para saber o desenrolar dos fatos.
Gritei encolerizado.

-Saiam daqui! Saiam!
-Mas filho, dizia ela com a voz pastosa quando queria conseguir alguma coisa, - é somente um frango que está ficando velho.
Com essa frase bati o pé.

-Se matarem José, frisei bem o nome, sumo daqui para sempre. E comecei a chorar copiosamente. Parecia que a guerra seria perdida.
Meu primo sorriu. Minha mãe arregalou os olhos.
-Esqueça filho. Ninguém matará José só se passarem por cima do meu cadáver. E colocou aqui seu ponto final.  A família toda era dramática.
-Tome a revista, ela disse.

José morreu de velho muito tempo depois. E foi enterrado embaixo da goiabeira. Fiz uma cruzinha de palitos de picolé.
A revista eu li e reli mil vezes. Lia apreciando o detalhe dos desenhos, as curvas de Jane em horas solitárias, a ferocidade do orangotango.

Muito mais tarde compreendi que o intruso era o homem branco, ele estava ali para desmatar a floresta, tirar tudo o que ela tinha de mais sagrado, os animais, as plantas os rios, e depois abandoná-la a própria sorte. Acho que essa revista, que quase serviu como moeda suja, ainda existe e dorme tranquila em algum baú velho.

Voltando ao tema principal que era a escolha de um candidato, - me perdoem, pois quando começo a escrever perco-me em detalhes, que só me diz respeito e a mais ninguém, - um conselho: Nunca escolha candidato pelas  plumagens ou canto.

E principalmente escolha finalmente um candidato, de forma que se não der certo em seu mandato, possa ser abatido e assado num belo jantar.

28/07/2012