sábado, 12 de novembro de 2016

Longe dos olhos de Deus









                 Longe dos olhos de Deus


E ele disse-lhe: Porque temeis, homens de pouca fé? Então, levantando-se repreendeu os ventos e o mar, e seguiu-se uma grande bonança.

Primeira:

           Cruzamento da Rua Aristides Fagueiro com a esquina da morte. O movimento intenso de carros e motos. Eu a vi por instante. Ela estava feliz.  Via-se claramente em seus olhos. Uma moça alta, olhos claros, bem bonita, com seus vinte anos.
Quando atravessava a rua um carro azul veio em disparada e pegou-a em cheio. Fez um barulho surdo. 
Morreu na hora.
O trânsito todo parou. Só o atropelador não. Eu corri para vê-la. Aliás, todo mundo.
Virgínia era seu nome, agora todo mundo sabia. Pois ela segurava nas mãos firmes e bem pintadas, esmalte vermelho, seu convite de casamento escrito a mão:
                            
“Lindo é quando alguém escolhe pousar ao teu lado, podendo voar. Podendo encontrar até outros ninhos, outros caminhos, escolhe ficar.
Parece mentira... Resolvemos nos casar.
Dizem que é loucura... Mas esse é o privilégio de amar”


Um convite simples.  Desenhos de pássaros nas bordas.
Embaixo o nome dos noivos:
                            
                    Virgínia & Leandro


Segunda:

Meia noite, hora das feras saírem. Numa rua, um vulto trabalha silencioso no quintal. Com as mãos faz um buraco. Não tão fundo nem raso demais. A terra é escura e molhada com a neblina. Isso dificulta sobremaneira o trabalho do homem. Sim é um homem. Anda em pé e usa um chapéu de palha. Observa o buraco. Mede com um dos braços. Quando se dá por satisfeito levanta-se e entra na casa.

Volta com algo nos braços. Parece uma boneca. Uma mulher o acompanha. Colocam no fundo e vão jogando a terra. Estão enterrando. Sobrou muita terra. A mulher levanta-se e pisa socando a terra. Um pé de criança ainda aparece. A mulher discute com o homem. Depois coloca uma pedra em cima.

Vão dormir.

De madrugada como fazia todos os dias, o cão do vizinho entrava pelo buraco da cerca e virava a lata para comer. Nesse dia, sentiu algum cheiro diferente no ar. Foi até a pedra, levantou as orelhas, e começou a cavar. Cada vez mais perto, rodeava a pedra rapidamente. Enfim pega o embrulho pelos dentes e atravessa novamente o buraco da cerca. Nesse ínterim o vizinho já havia pegado a carroça e já saia para o trabalho de catar papelão, e latinhas, quando viu o cachorro, chegando.

Toma-lhe o embrulho e se assusta com o que vê dentro. Uma criança recém nascida. Escuta o peito, observa a barriga, tudo imóvel, quando observa triste que já se encontra morta.

Coloca-a sobre a mesa, e liga para a polícia. Isso já era manhã de domingo. Às dez horas a rádio patrulha chega. A criança ainda deitada sobre a mesa enrolada em sacos plásticos.

O homem explicava para o policial do rádio que já ia sair para trabalhar, quando viu seu cachorro latindo. Estranhei, disse. Quando vi essa maldade. Os policiais e o homem vão até o buraco da cerca, e vê os vestígios no quintal do vizinho.

-Quem mora aí, questiona o policial.
-Um casal. Uma moça dos seus dezessete anos e um cara mais velho.
O policial tira a arma do coldre e grita:
-Polícia! Saiam com as mãos na cabeça.
O casal com sono pesado ouve algo, e se desvencilha um do outro. Escuta gritando lá fora agora mais alto:
-polícia!

Na delegacia ela explica:
-Minha família não queria nosso namoro, por que ele é viciado, aí resolvi...
-Mas é sua filha... e era linda! Ainda o delegado falou.
-Agora esta feito, acabou! Disse ela chorando. Agora tenho que pagar.


Terceira:


Em um bar. Numa mesa um casal briga:

-Eu sei que vou sofrer!  Ainda tenho muito carinho por ti, mas infelizmente não dá mais, chega de ser capacho. 
O homem toma um gole. A mulher olha nos seus olhos:

-Você jura! Terá coragem? 
Falava isso por que todo mundo sabia que ele era “arriado os quatro pneus por ela”.

-Verdade! Isso é um ponto final!
Joga uma nota em cima da mesa, diz:  fica com o troco, e sai.
A mulher fica sem ação.

Chegando a casa a mulher estampa nas redes sociais:
Solteiríssima. E mais adiante. Feliz e determinada.

No outro dia, ela acordou cedo, foi ao posto de saúde e pegou o medicamento que fazia uso diário: clonazepam. Depois foi a imobiliária e alugou um apartamento a duas quadras do ex.
E a tarde ligou para ele nesses termos:

-Estou fazendo um churrasco aqui em casa, e logo me lembrei de  você. Por que não pensei. Você gosta tanto de churrasco... Podemos ser amigos ou não?
Do outro lado da linha Arnaldo sem saber o que responder acompanhava toda a conversa de Adelaide com o seu inequívoco arrã, arrã.
Ela dizia:
-Convidei também um casal de amigos, é bom para você se enturmar. Agora solteiro né?
Arnaldo surpreso concordou, afinal ainda gostava muito dela, e talvez sobrasse, no final da festa, restos de carinhos.
Quando chegou o samba já rolava, a carne na brasa e a cerveja gelada.
Adelaide vestia um short curto, e o casal dançava.
Ela prepara uma bebida para ele. Acrescenta o medicamento. Em dez minutos ele estava desacordado. Ela pega uma marreta de construção e bate-lhe forte na nuca, que o crânio se esfacela.
Depois com a ajuda do casal de amigos enrolam num plástico escuro e levam para desovar longe.
O lugar era ermo. Só uma empresa de reciclagem. Jogam o embrulho na vereda e tocam fogo.


Quarta:


José levantou cedo. “Tenho que resolver isso meu Deus, estou acabando minha vida nas drogas”.
Caminhou por quilômetros até a boca. Estava fissurado. Pediu fiado. O chefe falou para ele que já tava por aqui com ele, e que ele já devia muito e que era melhor pagar o que devia primeiro.
Ele falou que esperasse mais um pouco, que o pai era aposentado, ganhava pouco e quase não dava para segurar seu vício. O chefe apontou a arma para o seu peito.
-Leva esse cabra daqui! Dá um fim nele!
Arrastaram José até um beco e deram um tiro no meio da testa.
Nesse momento o pai dele já o procurava na vizinhança, quando alguém gritou:
-Seu Pedro! , encontraram agora um presunto, lá na invasão. Parece muito com o filho do senhor!
Chegando ao local o velho reconheceu o filho e acendeu uma vela. A cabeça separada do corpo. O pai lamentou o ocorrido e disse que tinha pedido para o filho parar com as drogas.  “Infelizmente aconteceu isso”, comentou o pai da vítima.
Segundo o delegado do caso, o fato de estar com as mãos amarradas pode indicar que José tenha sido morto em outro local e levado para ali apenas como uma forma de “se desfazer do corpo”. Completou:
          -Deve ser ajuste de contas e como sabemos, nada funciona sem dinheiro, nem igreja.

Quinta:
Zé empurrou a porta e entrou. Casa simples. Um barraco. As mulheres o esperavam sentado na sala. Sim ele tinha duas mulheres, em convívio pacífico: A legítima, que a chamava de Branquela e a amante, baixa e gorda.
 Ao seu encontro:
-E aí Zé, vendeu todas!
-Tudinho! Veja! Retirou o pano que cobria a cesta.
-Ué Zé, mas não é que a diaba tem uma carne boa!
-É mesmo! E a menina como tá?
- Lá no quintal brincando, até comeu também!
-Não brinca! E é, é?
-Pois!
Todos conheciam Zé da coxinha naquelas redondezas. Todas as manhãs, passava gritando, e a molecada repetia: É de gato seu Zé?  Ele xingava com palavrões, depois falava com seu sotaque característico:
-É não miseráveis! E replicava: - É de frangoooo!  seus filhos da puta!
Mas verdade seja dita. Todos gostavam das coxinhas. Dizia-se delas que eram bem preparadas, ótimo tempero, com bastante carne, macia e com gosto indescritível. Era grande a freguesia.
-Vai ao quintal. Vê a menina.  Entra, olha o fogão. Um osso, comprido de aparência de uma tíbia. O pega e fica roendo, as partes que não alcança com os dentes cutuca com os dedos.
Com a cara cheia de gordura pergunta para as mulheres se tinha acabado.
Branquela coça a cabeça e diz, olhando para o quintal:
-Logo temos que buscar mais!
A gorda sentada no tamborete.
-Essa é a mulher, é? Zé solta o osso:
-É! O homem deu para a semana toda!
Vai até a sala e coloca um cd. Fazem um tipo de pantomima, pegam um litro de cachaça e vão beber.
Acordaram com a polícia arrombando a porta.

Só uma pessoa na comunidade não gostava dos salgados. Esta pessoa agora abanava um jornal na cara do marido que lia, entretido a página de esporte: “Oh! Veja isso homem! Leia aqui! Empurrando o jornal para o marido. Ele deixa os esportes de lado e lê as notícias policiais. “Presa família de canibal”. Ela continua: “Esse sujeito aqui, que diz pertencer à seita “alvorecer”, e que mata as pessoas para saciar a própria fome, não é nosso vizinho, o vendedor de salgadinhos? 
Veja o que a policia diz dele: “Ele mata, descarna as vítimas, guarda em freezer e vai comendo no dia a dia. Com o resto faz salgadinhos para vender a freguesia”.
O marido olha com náusea. 
A mulher ainda diz: “Parece ficção, mas esta aqui ó, todos os dias nas páginas policiais”.
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quarta-feira, 9 de novembro de 2016

O mar


   



                                  O mar


 Para uns, são coisas insignificantes; para mim são retalhos de vida que lanço como o faz bem o senhor que atira pão aos pombos  -Etiel Oldlaniram






Eu descobri minha paixão pelo mar, aos doze anos, quando tive que viajar a capital com meu pai, em visita a meu avô internado com uma doença incurável. 
A visita foi estranha porque não pude entrar no hospital e fiquei na sala de espera olhando os rostos sérios passar naquele ambiente insalubre. 
Ele ficaria internado por tempo indeterminado soube depois pelo meu pai, ele explicou como seria o tratamento, um monte de palavras médicas difícil de entender. 
O que eu entendi é que ele não voltaria para casa esse verão.

Depois fomos almoçar e até o ônibus retornar para a cidade natal, tínhamos umas quatro horas a toa. Foi aí que meu pai disse:

          -Diacho!  Já estamos aqui, não custa nada conhecermos o mar!

Não conto a emoção que senti ao ouvir isso. Foi a mesma quando li pela primeira vez um romance de Joseph Conrad. E ele ama o mar. Ou parece amar. Comigo foi amor a primeira vista.

Então pegamos um lotação ali na lagoa, que cruzou quase toda a cidade.

 Passamos pela roleta e pagamos a passagem. Por sinal roleta não existia de onde tínhamos vindo. Mas não eramos bobos, isso não, observamos os outros passageiros para não haver erro. Meu pai também era viajado, já tinha morado um tempo no Rio, quando era solteiro. Na década de trinta.

 Eu estava extasiado com o movimento, o povo andava apressado, quase correndo, pareciam que tinham perdido alguma coisa importante. Talvez o sossego que tínhamos de sobra no pequeno povoado que vimos.
Olhava os prédios com curiosidade.  Como conseguem viver assim um sobre o outro, eu ia pensando curtindo  a viagem.

E assim foi uma meia hora olhando pela janela.  O vento forte fazia-me fechar os olhos  vez em quando. Observei que quando as pessoas chegavam onde queriam puxavam uma cordinha e soava um som estridente indicando que o motorista teria que parar no próximo ponto. Apontei para meu pai. Ele sorriu de volta.

Foi quando eu vi. 
Primeiro veio uma aragem avisar pela janela, um vento pesado, um ar branco que depois soube que era maresia. Depois um braço comprido o manguezal. A vegetação de gramíneas, arbustos pequenos, cajueiros e principalmente coqueiros. Depois veio toda uma amplidão. Um azul esverdeado profundo, parecendo engolir a terra. Estrondo de brumas brancas correndo até a margem. Uma faixa clara onde poderíamos correr descalços sobre a areia.

Que prazer senti quando tirei o sapato apertado. O olhei sem arrogância. Até onde sabia pelos romances, ele era temido. Carecia de respeito.
Tiramos a camisa. Meu pai persignou-se e jogou um punhado de água sobre a nuca. Era para não pegar resfriado. Fiz o mesmo. Fomos eu e meu pai, saltando as ondas, que se aninhavam entre nossas pernas empurrando-nos para trás e para frente.

          -Venha mais Artur! Não tenha medo, ele disse!

Eu estava tremendo de frio. Mas a água era morna, o frio devia ser a emoção, de está ali, naquela grandiosidade de água. Curioso, enchi a concha da mão e perguntei sorrindo:
          -Que gosto tem?
Meu pai sorriu.
          -Só se provar que vai saber, falou.
Eu tomei um gole. Arrepiei.
          Ai! É salgado, falei.
Ele não falou por maldade. Isso não. Era mais por galhofa. É tanto que nunca vi meu pai sorri tanto.
Perguntei depois que ele parou:
          -Aonde vai dá toda essa água?
Ele olhou para o horizonte, fez alguns cálculos e disse:
          -Acho que, se nadarmos seguindo aquela nuvem ali, está vendo?
          -Sim!
          -Chegaremos ao continente africano.
          -Ah!

Não perguntei mais nada. O mar bastava. Não queria perder aquela emoção que estava sentindo. Imaginei os piratas, os personagens dos romances singrando esses mares, em grandes aventuras.

Depois fomos nos enxugar. Enquanto olhava algumas gaivotas no horizonte, pensei no meu avô, sozinho ali naquele hospital frio, e aqui toda essa natureza explodindo, as ondas quebravam bem perto de nós.

          -A maré esta subindo, meu pai falou.

Um mês depois meu avô faleceu. Isso foi há muito tempo.

Até hoje, mesmo adulto, gosto de ver as ondas explodindo na areia, nas pedras, e quando quero recuperar minhas energias, vou de encontro ao mar.


quinta-feira, 3 de novembro de 2016

O Programa




             
             
                              A rua


Eram seis da matina. O vigilante Severino vinha subindo a ladeira em direção ao centro. Trabalhava a noite e vinha morto de sono. No sentido contrário vinham os irmãos Ariosvaldo, Reginaldo e mais um menor.
          
          -E aí mano como vai?  Batem-se as mãos como o usual.
          -Tô morto cara! Estou vindo do trampo. Vinte e quatro horas sem dormir. E aí quem é o intruso?
          -De menor cara, ele tem umas idéias aí, ta afim?
          -Porra estou fora de órbita, mas coé?
          -Vamos fazer um ganho agora. 

Mostra o tresoitão, por baixo da camisa. De menor saiu hoje, da casa de custódia, mostra aí mano. De menor levanta a calça. Usa uma tornozeleira eletrônica. Sorri. Ariosvaldo pega no ombro do outro como fazem os amigos. Fala no ouvido do outro:
          
          -O amigo tá duro pacas, entende precisa arrumar uns para a sobrevivência e aí demos a ideia da loja lá do centro. Mesma coisa de tomar doce de criança. Tem uma mina e um segurança otário entendeu!
          -Sei! Mas como vai ser a comissão?
          -Pô cara dividimos em quatro! Sem apelação!
          -Aí! Tô dentro! Qual minha função?
          -Pô meo, De menor vai chegar na cara dura, arma em riste entendeu. Qualquer coisa de errado ele toma a frente, sabe como é a lei! Eu vou com a mochila guardando os cobres, meu irmão fica na esquina e tu fica de retaguarda, certo. Sem vacilo! Qualquer movimento avisa.
          -Falou mano! Conheço a mina lá de vista! Uma bunda, porra! Se der mole como. Deixa esse agrado pra mim?

          -Qual é malandro, nós é bandido mas temos ética, não somos estupradores não! Mas se tu quer, depois de pegar nossa grana, pode fazer o que quiser!

          -Quero muito! Já tentei ficar com ela, mas a fila da puta não quis! Tá na mira!

                           A loja


Lúcia tirou a blusa e deixou à mostra um seio. Duro. A auréola escura. Pegou outra blusa com um tom azul turquesa e vestiu com certa dificuldade, já que usava uma só mão. As pernas longas e malhadas dificultavam o trabalho. Ao mesmo tempo tirou a calça, a bunda bem torneada, e vestiu de diferente cor para combinar.

Marlon o segurança, a olhava de meio jota há muito tempo, talvez dali surgisse um romance, pois ambos se olhavam, e não segurou o riso ao ver Lúcia com tanta destreza em trocar as roupas dos manequins.
Ele por seu turno pegou todo o dinheiro do caixa, colocou numa bolsa de plástico escura e se dirigiu a sala onde guardava as notas maiores até o horário do depósito na rede bancária. Foi quando ouviu o grito:

          - Assalto! Todos quietinhos e de mãos para cima. 
Marlon só teve o trabalho de fechar a porta por dentro. Porra! Porra! E agora pensou. Lembrou-se que deixara a arma na gaveta. Assim o que podia fazer era ficar quieto e rezar.

De menor veio com a arma e apontou para a cabeça de Lúcia.

          -Aqui seu pilantra! Abre essa porta e passa todo o dinheiro senão vou estourar o crânio da mina aqui! Lúcia estremecera.
Enquanto isso Ariosvaldo ia rapidamente enchendo a mochila com peças de roupa.

Lúcia estava fria. O cano do revólver machucava sua fronte. “Pai nosso que estais no céu... Não me mate! Por favor!

         -Só depende do seu parceiro! Abre essa porta aí! Vou contar até três. Depois o bicho vai pipocar!

-Um...Dois e Pum!

Quando o capitão chegou, tinha cérebro espalhados por todo o teto. 

                             Rádio

O locutor dando ênfase à fala:

          -Estou aqui com o Capitão Dagoberto, boa noite capitão! Agradeço sua presença aqui.

          -Boa noite, Áureo, boa noite ouvintes!
          -Capitão, conheço seu trabalho, um trabalho árduo, competente, fazendo o que pode para a segurança do município, queria saber do senhor o que podemos fazer para melhorar estas estatísticas de terror que hora ou outra aparecem como esse agora da morte da senhorita Lúcia, vendedora, esse crime bárbaro...
          -Olha Sr Áureo, até que esse ano as estatísticas estão favoráveis, estamos combatendo esses crimes e outros, eu criei  a guarda de bairro, coloquei mais homens nas ruas, dita números, continua:  -Mas esses crimes é de difícil prevenção. A lei é frouxa. Logo os indivíduos estarão soltos!

          -Eles, os assassinos, já estão presos?
          -Sim. Meia hora depois do comunicado, saímos em diligencia, e pegamos os quatro meliantes...
          -É verdade que existe um menor?
         -Verdade! E como sempre eles confessam o crime! Assumem tudo! A pena para menores é branda!
O Locutor fica em silêncio. Faz algumas observações a respeito das leis, do ser humano, da maldade...
         -Como se sucedeu a prisão Capitão, eles tentaram fugir? Responda por favor no segundo bloco. Propaganda.

         -Ah! Sempre tentam. Sempre que ocorre crime nessa região sabemos que podem seguir pela rua do rio. Então montamos bloqueio no acesso a uma estrada vicinal  ao Centro. Já havíamos recebido as características do carro, um fusca ano meia nove, branco, que logo avistamos.
 Fizemos a abordagem e conseguimos prender todos eles ainda com a arma do crime.
Ele destacou que todos têm antecedentes criminais, exceto o vigilante.
          -Eles iniciaram alguma reação?
          -Não Sr Áureo, é sempre assim. Quando são cercados parecem criancinhas, até choram, chamam pela mãe...
         -É isso, infelizmente a moça morreu, e agora? Dá sinal para baixarem a musica. Continua: Logo logo advogados, usarão as brechas da lei que são muitas, colocam esses salafrários em liberdade e presa mesmo estará a menina Lúcia, dezesseis anos, uma vida inteira pela frente. Obrigado Capitão Dagoberto, pelo seu trabalho, uma luta constante, que oxalá um dia consigamos viver em paz. O capitão tece os últimos comentários e...
          -Obrigado! Amém!
O contra regra aumenta o volume da música de fundo. O locutor imposta a voz:
         -Vocês acabaram de ouvir: Ronda policial. O programa que não tem medo de falar a verdade doa a quem doer.
Entram as propagandas.







terça-feira, 1 de novembro de 2016

O buraco






                             O buraco

Tinha lido algo, a respeito da criação.  Nele o autor falava sobre a dificuldade dos primeiros passos, exemplificava com frases de outros autores e finalmente dava algumas dicas genéricas a respeito, da relevância das anotações, do escrever sem medo, dos cortes etc.

 Assim ao terminar o livro, sentiu-se como a lagarta que sai do casulo, transformada em uma linda borboleta, apta ao voo, a descoberta, ao primeiro texto.

 Nessa manhã de primavera, onde o sol brilhava lá fora, se achava frente à tela do computador. Abriu o Word e cintilou a página em branco.

Pegou o dicionário, as anotações que vinha fazendo no decorrer da semana, pensamentos, características, conceitos uma parafernália de palavras, e escreveu a primeira frase. Achou que não tinha consistência. 
A primeira frase serve de engodo para o leitor. Tem que ter conteúdo. Deletou.

          -Filho! Vem aqui!

          -Mãe! Eu estou tentando criar algo, uma poesia, um texto!

          -Deixa de vadiagem! Venha aqui!

Osvaldo deixou o computador ligado, minimizou o Word. Sempre tem os curiosos, e desceu ao quintal.

          -Seu pai pediu para você furar um buraco aqui! Temos que fazer uma cisterna! A água está cada vez mais rara.

          -Mas mãe logo agora que tinha uma ideia, o texto começara a correr macio, sem entrave, como um rio de planície.

          -Filho, primeiro o trabalho, depois a vadiagem!

Disse isso trazendo uma cavadeira e uma balde.

          -Mãos a obra, ele disse.

Tirou a camisa e ficou só de calção e descalço. Gostava de sentir a terra sob os pés.

Começou com as mãos mesmo. Nada de utensílios por enquanto. Queria fazê-lo o mais simples possível. Tirou as folhagens. O buraco seria embaixo da mangueira. Ainda bem. Uma sombra refrescante.
Quando cavou os primeiros centímetros já sangrava e doíam as unhas. A terra estava úmida e encontrou por acaso, moradores daquela profundidade. Pequenos insetos e minhocas.

As minhocas são importantes para a agricultura e para os pescadores como engôdos para os peixes.

O solo se cortado em longitudinal parece uma tela a óleo. 
Ia observando tudo isso com seu trabalho braçal. Engraçado que diferente de um texto, ele observou que cansava fisicamente no entanto a mente  estava leve e solta livre para pensar.

Pegou a cavadeira. Bateu firme no solo, e enchia a balde. Depois derramava ao lado. Ia se formando uma montanha roxa. Seria assim a formação das montanhas? Dos montes?

Gotas de suor pingavam na fronte. Ele passava o indicador e aspergia para o lado em gotas. Foi lentamente arredondando as bordas. Ansiava um buraco bem feito com paredes paralelas. Lá para o meio dia ele já desaparecia dentro dele. A terra é morna. Incrivelmente morna. Já podia sentar. E ficar olhando sua obra. A obra tinha lá sua importância, mas não era tudo. Mais ou menos um metro e oitenta de diâmetro e dois metros de fundura. Sabia por que conseguia deitar e ficar olhando as nuvens passando. A terra, essa terra que um dia cobrirá seu corpo, como um cobertor, lhe protegendo do frio, das adversidades do tempo, das intempéries da natureza, guardando seus ossos até tornarem-se iguais, somente pó.

Almoçou com grande apetite. O trabalho braçal lhe deu fome. Os outros dão-nos fastio. Será por isso que a maioria dos escritores do passado morria jovem? Será que a criação de arte suga nossa vida? Suga nossa alma?

Fez a sesta. Em sua casa era sagrado. Logo após o almoço corriam aos quartos. Um sono leve de meia hora. Levantou disposto. Passou em frente ao computador. O cursor piscava. Tinha forma de garra. Ele que quis. Baixou da internet.

A página brilhava a espera de uma palavra, uma frase, um parágrafo. Teclou sem muita convicção:

“A vida é formidável porque é finita”.

Minimiza novamente a janela.
Pegou a cavadeira e a pá. Era hora de continuar o trabalho.  Toca em algo. Uma raiz. Estava viva, pois correu uma seiva. Era o sangue das árvores. Se eu arrancar a mangueira poderá morrer, pensou. Deixou de lado. Servia como escora.
Bateu no fundo com força. Um baque seco. Duro. Uma pedra.
          -Porra!

Lembrou de Drummond: Uma pedra existia no caminho! E agora José?

Bateu e bateu. Nada. Deve ser a ponta do iceberg, se pedra fosse igual às geleiras. “Se não conseguimos remover o problema do caminho, dê a volta, contorne-o”.  
Foi o que fez. Foi contornando-a. Passou dela mais de um metro. Servia de escada. Era da cor cinza.
Um tumor? Um trombo dentro de uma artéria? Uma hemorroida? Essas imagens ridículas apareceram.

Agora tinha arrumado um ajudante. Seu irmão menor. Ele apareceu pela necessidade da obra. Victor. Tinha doze anos.

          -Você deve ajudar seu irmão! Sua mãe disse.

 Depois de lhe xingar de todos os nomes feios, pois estava perto de zerar um game apareceu na borda do buraco.
Trouxe a corda e na ponta a balde. Jogou no fundo. Ele enchia e o irmão puxava para cima, com força. O céu começou a escurecer. Victor jogou a escada e ele subiu. Por hoje chega, disse, se limpando.

Victor saiu alegre. Podia voltar ao jogo. Deixamos o buraco inacabado. Olhou de cima. Era um cone comprido. Vazio. Foram dormir.
O outro dia era sexta feira.

         -Vou passar toda féria nesse buraco, questionou.

         -Essa porra se continuar vamos chegar á china, Victor brincou.

Não era de todo uma má ideia. Chegarmos à China ou outro lugar qualquer. Continuaram  cavando. 
Incrível como o buraco os aproximou, se conheceram de verdade nesse período, mesmo.

Ele falou dos seus jogos. Era sempre uma jornada do herói. No início o herói no mundo comum, vivendo em paz, construindo junto da família.  Depois algo quebra essa harmonia. Pode ser um ataque de uma tribo, um roubo de uma mocinha, que o herói para resgatá-la terá que vencer vários obstáculos e fases. E em cada final de fase terá que lutar com um chefão. E no final do jogo lutará com o maior chefão, o mais perigoso, numa batalha épica de vida e morte, onde o herói usará todos os truques que treinou incansavelmente nas fases e vencendo o inimigo poderá levar de volta sua amada. A maioria dos games é assim.

          -Estou na última fase , para derrotar o chefão!

Findou mais um dia. Victor desceu a escada. Osvaldo ainda ficou lá dentro retirando o resto de terra. A noite tinha caído. Com certeza ele Victor foi zerar o jogo. Era sua vida virtual.  
Vida diferente. Seu irmão entrava na vida de personagens criado por outros, Já Osvaldo vivia a vida de personagens criado por ele mesmo.
Nisso uns braços puxou de volta a escada.

          -Hei! Ainda estou aqui, gritou!

Não ouve resposta.
Ouviu barulho de pá.  Pás de terra caíam sobre ele em abundancia. Alguém queria enterra-lhe vivo. Era isso. Começou a gritar. Em vão. Não lhe ouviam. 

-Eu ainda estou aqui e estou vivo, gritou.

 Por fim pensou. Tenho que fazer algo para safar-me. Saltou no intuito de agarrar a pedra. Estava fora de alcance. Os dedos estavam feridos. Doloridos.
 Mais terra caiu sobre ele, até cobrir-lhe por completo. Aturdido pensava: “Se eu fosse uma minhoca?”. Ia furando a terra até a superfície. Se fosse um verme talvez.
Mas era apenas um jovem tentando fazer um texto, que se transformou num buraco enorme, vazio, lutando contra tudo e todos, só o seu corpo, em posição fetal, engolido agora, sem meias palavras.





segunda-feira, 31 de outubro de 2016

O jogo





                                O jogo

Chegou bem cedo para a partida de dominó. Era sagrado. Todos os domingos depois da missa. Eram amigos de infância. Otávio e Ricardo. Um sabia tudo da vida do outro.
Otávio cumprimentou o amigo, pediu a mulher uma cerveja gelada e os petiscos de sempre: queijo fatiado e azeitona enfiada em palitos.   Baralhou as pedras com cuidado rodando com as duas mãos pela mesa.
Sentaram-se frente ao outro. Pegaram as pedras. Roberto dá início.
          -Hoje quero duas buchudas!
          -Vamos vê!
Depois de duas horas de jogo acirrado, Otávio dá o tiro de misericórdia colocando cabeça de terno nas duas pontas. Sorri.  Faz as contas mentalmente. Saiu quatro pedras.  Tem quatro com ele.  Agora sou o dono da partida, pensa. Chama a mulher.
          -Benhê! Trás mais uma gelada!
Ela entra com a garrafa de cerveja na mão. E na outra o abridor.
Ricardo olha atentas, as pedras.
          -Passo, disse Ricardo.
Otávio coloca uma sexta pedra.
          -Passo novamente, disse Ricardo. Otávio sorri. Levanta-se faz uma pantomima, e diz:
         -Aqui quem manda sou eu! Essa ponta é minha! Viu!
Ricardo sem paciência.
          -Joga!
Otávio coloca a pedra, com força.
          -Bati! E de carroção! Vale dois pontos! Fechei! Faz uma algazarra com o amigo, empurra, bate nas costas.
Depois da festa chama a mulher.
        -Benhê! Mais uma!
Ricardo avisa com gosto.
          -Ela saiu você não viu?
          -E´? Nem vi. Estava tão entretido com minha vitória!
Faz a observação
          -Anda entretido demais, não acha?
          -O que você está querendo dizer?
          -Que ela saiu e saiu com um short tão curto que se andar rasga!
E completa:  
          - Você não tem ciúmes dela sair assim não?
E desabafa para o amigo:
          -Aqui pra nós, com todo respeito.
Ricardo vai até a cozinha. Pega a cerveja. Otavio meche as pedras. Fica pensando.
Ricardo enche os dois copos. Toma o dele de um gole só. Chupa a espuma do bigode. Vai até a porta da sala. Observa se Helena havia saído mesmo. A rua deserta. Carros passam. Volta com as mãos nos bolsos.
          -O que foi, pergunta Otávio. Desembucha!
          -Não consigo ficar calado! Quando sei essas coisas, ainda mais de um amigo! Dá uma raiva! Tenho que contar! Mas é uma bomba!
Otávio solta as pedras. Fica rodando uma na mesa. Parece uma roleta.
          -Acende o estopim amigo! Que venha a bomba.

                                  A bomba

Ricardo toma mais um copo para criar coragem. Respira fundo. Fala.
          -Tua mulher, nunca desconfiou dela?
Olha para Otávio. Ele está pálido. Assustado. Por fim consegue balbuciar algo.
          -Nunca me deu um quê assim de preocupação! A família toda é assim. Da antiga. Quando casam é para a vida inteira.
         -Pois é! São dessas que eu desconfio mais, disse Ricardo.
          -Olha amigo, pare de falar mal da Leninha, pois é uma santa mulher. Aliás, ela vai todos os domingos na missa das sete, comunga com Cristo, e sai muito pouco de casa...
          -Mas esse pouco que sai, segundo a cidade inteira... inteira viu, quando você sai para o trabalho ela sai para os braços do amante. A pergunta é: Como você não sabe? Pois toda a vizinhança está careca de saber e falam por aí que você é um corno manso. E você sabe que nossa amizade não foi feita nas coxas! Isso não! Nossa amizade veio do berço, lá do interior, nossos pais foram vizinhos, compadres, toda essa coisa que faz os laços mais fortes...
          -Peraí!  Você tem provas? Porque essa vizinhança sempre teve inveja de mim, por que Heleninha é um show de bola de mulher, gostosinha, carinhosa e se não provar, toda essa ignomínia contra nós, essa amizade que tanto alardeia por aí, termina por aqui... Por essa luz, por Deus que se você não provar agora, não quero ver você aqui nem pintado de ouro, ouviu?
          -Mas amigo, como provar essas coisas?  Só se armar uma tocaia e como se diz por aí, pegar com a boca na botija!
 Otávio super apaixonado e reticente:
          -Sem provas, sem crimes! Faça o favor, de sair por aquela porta, ganhar o olho da rua, e nunca mais volte aqui! Nunca mais!
Ricardo antes de sair lava as mãos.
-Otávio!  Fiz o que grandes amigos devem fazer agora você faz o que quiser da sua vida. Sabe como o chamam por aí? Otário e não Otávio. Sai e ouve o estrondo da porta se fechando as suas costas. Meio dia Leninha volta.
          -Uai! E o jogo?
          -Dei uma buxuda nele e o idiota saiu morto de raiva.
Helena vai tomar banho. Otávio ouve a água banhar aquele corpo que ele até hoje achava que era só dele. A água corre fazendo cascatas em vários pontos. Ela é uma mulher cheia de encantos. Tenta não pensar, mas os pensamentos negativos chegam como gafanhotos, destruindo o que vê pela frente.

                                       Os Domingos depois

Uma semana depois, Otávio estava sentado numa cadeira balançando-se enquanto aparava as unhas. Helena na cozinha, lavando a louça de ontem. O radio tocando as dez melhores da semana. O locutor:
“Agora vamos tocar a mais pedida da semana:   A linda música que estourou nas paradas: “Infiel”. E claro como diz o título, a letra fala sobre infidelidade. E brinca com os telespectadores.
“ Gente! Traição ninguém merece!”  “Fui! Até domingo que vem com as dez mais! Tchau!” Deixa a música martelando. Infiel! Infiel!
Helena cantarolava. Otávio parou de cortar a unha do dedo mínimo. Ficou procurando naquela mulher, sua mulher há vinte e cinco anos, traços de uma traidora. Que estava até certo ponto tranqüila a seu ver, e procurava detalhes, algum rastro de infidelidade.  
Se questionava: “Uma mulher quando trai ficam rastros? Marcas? Sinais? Como deixam nos homens?”.
Certos sinais que Leninha, procurava, quando ele chegava das peladas, das quintas à noite, ela corria para o quarto e enquanto ele tomava banho ela vasculhava, pegava suas roupas, procurava  cheiros, marcas de batom, arranhões etc. e etc.
Ela chegou ao cúmulo, lembrou.  Um dia de madrugada acordou assustado, com ela medindo seu escroto, pesando com a mão e ele desconfiado perguntou e na época ela disse entre dentes:
          - Você sabia que se o homem transar na noite passada, o escroto fica mais murcho e mais leve? Que se a mulher for inteligente vai saber se o homem está lhe traindo?
 Ela falava assim na terceira pessoa.
E completava:
         -Os homens que tomem tento, que mulher não é boba!
Terminou de cortar a unha e a letra ficou martelando em céu cérebro. Aquilo não era letra de música decente. E soltou a imaginação.
Viu a mulher, nua sobre uma cama qualquer entregue ao prazer mundano. Fazendo as coisas que ele gostava de fazer juntos, com alguém que ainda não tinha rosto, mas tinha todo o resto, até dando dicas de como gostava, assim e assado, mais devagar agora acelera e tal e tal. Um beijo aqui, uma tapinha acolá. Ele foi ficando vermelho, uma opressão no peito e levantou-se.
          -Mas logo terá rosto! Ah! Isso vai!
Leninha o interpela:
          -O que foi?
          -Nada! Pensei alto!
          -Benhê! O Ricardo não vem?
         -Não!
Inventa uma história.
           -Discutimos na pelada de quinta! Uma entrada ríspida que ele me deu!
          -Nossa! Brigou com seu melhor amigo!
          -Amigo! Amigo! Um amigo da onça, isso sim!
          -Ele parecia ser tão cordial!
          -As aparências! As aparências! Vou buscar pão!
E saiu para a rua.

                                   A rua


Chegou à padaria, uma grande fila.  Viu rostos rindo dele nas janelas. Qualquer aceno o assustava. Muita gente. Lembrou-se que quarta era feriado e o pessoal veio todo da capital emendar a semana no litoral. Ele achava um saco à cidade nessa época. Era fila para todos os lados. Nos bancos, caixas eletrônicos, mercados, farmácias.  Segundo ele o povo não tinha coisa melhor para fazer.  Mesmo nas filas, parecem felizes, com vergalhões vermelhos do sol, tatuagens, roupas curtas, uns até de trajes de banhos. A cidade deixava de ser só dos pacatos moradores, e agora pertencia a turba que vinham de todos os lados. Postou-se no final da fila.
 Conversas gerais. A maioria relacionada ao calor ou a vida dos outros.  Pensou: até chegar sua vez, dava para tomar uma ali no bar da esquina, e avisou a pessoa de trás.  Um magricela de óculos, fundo de garrafa. Assentiu com a cabeça. Um tímido pensou. Detesto os tímidos. Uma raça de gente miúda que luta todos os dias para aparecer, e quando acontece, ficam vermelhos, calados e doidos para caírem num buraco.  Sofrem demais para se esconderem da vida.
A gelada não entrou bem. Veio uma azia até a boca do estômago. Lembrou de Helena. Um turbilhão de pensamentos.
Assim que a viu gostara do jeito dela, da sobriedade dela. É claro que também seus atributos. Seios fartos e bunda empinada. Quando tentou beijá-la pela primeira vez no cinema ela pôs a mão no peito dele e questionou:
          -É para casar? Só quando ele assentiu, é que ela beijou-o com paixão, enfiando a língua o mais profundo possível.
Um ano depois desse primeiro encontro ele tentou algo mais. Novamente veio o toco.
         -Sou virgem e só faço depois do casamento!
Nove meses depois se casaram.
A lua de mel passou-se numa chácara de um amigo. Como não era noite de lua ele na hora quis acender a luz. Ela correu para se vestir.
          -Acho uma tremenda falta de pudor a mulher fazer sexo assim às claras. E apagou a luz.
No outro dia os familiares queriam saber se sangrou. Uma cafonice. Sangrou. Será que não foi a fimose? Deixa disso Ricardo. Fui seu primeiro namorado. Ela era Bv. Boca virgem.
Até chegar aos dias atuais, foram dez anos de escuridão total. Agora mais livres das amarras que a sociedade cinge os nós, tinham experimentados quase tudo. Só o sexo anal ainda era tabu. Claro que ele tinha tentado, sem lograr êxito.
Assim balançou a cabeça sem acreditar na história que o amigo contara. Mas esses lances são como chicletes, colam na mente e só se dão por vencidas quando o escritor passa ao papel.
São fatos relevantes da vida que entalham a alma.
E se ela estiver fazendo com outro justamente o que não faz comigo?  E se e se?
 Nisso o quatro olhos levantou a mão. Ele rosna.
          -Tímido imbecil!
Pagou a cerveja. Na fila.
          -Quatro pães moreninhos!
A balconista lhe sorri.
          -Gosto de moreninhos também!
Ele a olha. Os seios meios fora do uniforme. A calcinha marcando por baixo, entrando, pequena, numa bunda enorme. Pega os pães.
          -Próximo! A balconista grita.
A fila anda.
Ele sai.

                               O amigo

Quando retornava para casa uma voz o chama.
          -Otávio! Está fugindo de mim? Era Ricardo. Com roupas e tênis para malhar. Estava suado.
          -Depois de tudo que me falou! Não era para menos.
          -Podemos conversar? Vamos sentar ali naquele bar. Ele reluta, a mulher está esperando, não tem tempo agora, fica para outra vez mas...
Sentaram-se.
          -Uma cerveja, por favor!
          -Já tomei uma ali!
         -Mais uma não vai fazer diferença!
 Tomaram várias. Saíram abraçados até no final da rua. Por fim ele disse ainda:
          -Ela é uma santa e vou provar!
 Otávio seguiu em frente e Ricardo subiu ao sobrado onde morava.
Chegou à varanda. Talvez pensasse assim. “Ali vai um bobo, um corno manso!” Ou “O marido é o último, a saber”. Ou “Tem gente que é cego”.
Mas a verdade é que não pensou nada disso. A mente estava vazia olhando o outro, o amigo, trocando passos tortos pela rua até sumir de vista.

                              Em casa

Quando ele colocou o pé dentro de casa escutou:
          -Mas isso são horas de chegar, para quem foi só comprar o pão? Você está louco?
          -Eu encontrei o Ricardo, e ficamos batendo papo até agora!
          -Quanta coisa para se falarem! Está doido?
          -Você que está maluca mulher! Ora essa! Vá se daná!
Helena nunca vira o marido assim. Arregalou os olhos.
          -É culpa da bebida! Eu sei! Quando bebe perde o juízo, a noção! Amanhã quando passar o pileque, conversaremos!
          -Isso! Amanhã colocaremos os pingos nos is! Nos is, viu?
Ela ainda falou antes de entrar no quarto:
          -É! É bom mesmo! Chega dessa vida dupla!
Ele ficou pasmo no meio da sala, ela bateu a porta.
As discussões eram sempre assim. Não ia a lugar algum.



                                            O caso

Na segunda feira Otávio fez o de costume. De manhã bem cedo, tomou um banho, escovou os dentes beijou Leninha no rosto e no que ela retribuiu com sofreguidão eles fizeram amor pela primeira vez depois que o amigo contara aquelas coisas. Era para aplacar a discussão do dia anterior.
Não se sabe se por sadismo ou cólera, talvez Freud explique, mas  ele finalmente conseguiu penetrá-la por trás. Ela falava que sentia dores e ele mais tesão. E esse jogo foi longe, levando-o a um gozo jamais sentido.
Assim deixa a mulher, toma um banho rápido e corre para o serviço. Até o trabalho foi assoviando. Era seu plano. Senta uns cinco segundos olha uns papéis e pede ao patrão para sair, coisa de vida ou morte diz. “Hoje pego com a boca na botija!”.
 Chega à esquina e espera.
Não muito. Leninha, sua Leninha, sai toda arrumada, olha para os lados e pega um taxi. Ele pega outro. Diz a frase célebre: “Segue aquele táxi!” Muitos filmes têm essa cena. Sendo assim não vou narrá-la. Passam direto pelo centro e toda área comercial. Nada de compras ele pensa. Depois entra no giratório passa o viaduto para o lado das praias. Em frente ao shopping. O estacionamento lotado. O maior palco do capitalismo. Tudo ali é feito para tomar seu mísero dinheiro. Passam direto. Entram num bairro conhecido como dos estudantes. São casas menores para os gastos apertados de quem está estudando forte para crescer na vida. O taxi para. Ela sai. Uma casinha isolada de frente a um precipício. As ondas, lá embaixo quebram-se na encosta. Ela desaparece pela porta e a fecha com cuidado.
Já vira essa cena noutro filme. Não se recorda agora. O traído consegue entrar na casa e escutar todo o diálogo. Não lembra as palavras. Deve ser a raiva. O ódio. No filme há uma tempestade. Relâmpagos clareiam o cômodo escuro. Trovões roncam no céu.
Ele entra. Fica pasmo.


                         No botequim

 Depois de virar o décimo copo Otávio continua:
          -Então meu amigo, eu me esgueirei pelo muro, pelos quintais, e vi. Vi com meus próprios olhos. Tinha levado aquele revólver vinte dois, e o apertava contra a mão, Ela me traia sim, descaradamente. Recebia carinho de outra pessoa, dizia que amava, que adorava, essas coisas bobas que dizemos. Aí não agüentando mais ouvir, joguei meu corpo sobre a porta.
          -E o que aconteceu?
          -O que eu não imaginava!
         -O quê, conta!
          -Calma! Vou contar!
Otávio vira mais um copo.
Continua:
-Leninha, minha Leninha, estava na cama do jeito que sempre sonhei!
Ricardo de boca aberta:
          -Como?! Como!
          -Ela estava nua, como veio ao mundo, abraçada e beijando-se loucamente uma  loira, uma estudante, vinda do interior, com as pernas entrelaçadas...
          -E ... O que você fez? Matou-as?
          - O que eu fiz? Ora bolas! Convidei-me à festa!
          -O que? Que??
          - Isso mesmo que você está demorando a entender! Agora moramos juntos! Precisa ver amigo, que pitéu! São carne e unha!  E eu que não sou bobo nada, formamos o trio mais feliz do mundo.
O amigo diz:
          -Mas e.... E a traição?
          -Que traição amigo? Foi a coisa mais legal que aconteceu comigo nesses trinta anos!
O amigo ficou rindo. Por fim pergunta:
          -E nosso dominó de domingo?
          -Sem falta! Mantemos a tradição, claro!
E brindaram sorrindo.
-Viva a La vida!