quarta-feira, 30 de abril de 2008

Ana e Abel


Ana e Abel

Na estrada poeirenta, um ônibus lotado, corta as serras em marcha reduzida. A paisagem passa como num quadro na janela. Para a maioria, das pessoas ali era enfadonho, olhavam-na com desdém. Porem intimamente um velho encontrava no seu coração encantos que lhe foram queridos.

Um garoto da poltrona da frente, abre a janela, e deixa entrar uma brisa conhecida. Era o cheiro das pastagens verde, dos umbuzeiros, dos marmeleiros e tudo o mais que trazia recordações, tantas.

Há muito que planejara aquela viagem, sendo possível agora depois de tão longos anos. Via ali retalhos de sua vida. A grande barragem e a torre da igreja surgiam em todo seu esplendor, nos olhos arregalados do sol; encantado. Fora feliz ali.

Inspirou vagarosamente como se fosse a primeira vez, o ar fresco da manha.

O garoto irrequieto grita:

-Olha um povoado mainha.

-Não amole menino, por causa de uma reles vila!Deixe-me dormir.

O ônibus desce a rua principal, gemendo sobre os paralelepípedos, contorna a praça principal, passa a igreja.

O atrito dos pneus acorda um bando de andorinhas, que voam em volta da torre, quando o sino badala cinco horas. A cidade acorda lentamente.

Abel era o nome do homem.

Há muito tempo, atrás, saíra dali a correr mundo, atrás dos sonhos. Depois descobrira, que ser feliz lá fora, longe de tudo e dos seus, era sofrido e quase impossível.

A felicidade era algo difícil e inatingível.

Nunca compreendeu porque seu grande amor, depois de mil juras, sumira sem deixar vestígio. Jamais a encontrou novamente.

Já fizera mil vezes mil, aquela viagem, no mesmo horário, na mesma poltrona, agora um pouco encardida. Na conta do tempo, a eternidade.

Puxa a cortina com mãos tremulas, fecha os olhos e perscruta o fundo da mente. Ver vestida de branco a imagem de uma jovem. Os cabelos voam ao sabor do vento. Sorria.

Ele retira do bolso, um pequeno papel roto, onde contem um poema. Lê em voz baixa.

O ônibus para na pequena rodoviária.

As pessoas arrastam seus pertences, e vão despedindo do motorista. Ele esta só, sem bagagem. Só o poema e seu destino.

Despede-se do motorista, e passeia na praça deserta, a mesma que lhe vira crescer correndo entre os canteiros floridos. Sobe os degraus e chega ao adro, senta-se no banco, que quando jovem sentava e sentiu o calor dos olhos que o espiavam, por entre a renda escura. Entra na pequena igreja. Ajoelha-se e faz o sinal da cruz. O ar denso como se fosse um sonho. Como explicar o inexplicável? Voltava ali a flor da idade, naquele fatídico dia com diploma na mão e agora estava velho.

-Que me aconteceu? –Pensou. Não era sonho. Um estrondo naquele momento quebrara o silencio e uma forca extraordinária rasgou o metal como finos tecidos, deixando todos perplexos e amedrontados. Quando silenciou o terrível barulho de coisas retorcidas, ele andou sobre a desordem em que se encontrava no interior do veiculo. O que vira chocou-o sobremaneira.Restos de poltronas e malas jogados de lado e corpos desfeitos em agonia. Súbito como acontece com todo ser, na lei da sobrevivência, no egocentrismo do ser humano, toca-se primeiro, no desespero de estar ferido. Ufa! Saíra ileso observou. Os membros se encontravam inteiro e por sorte nada lhe faltava no lugar. Só o pequeno papel que trazia nas mãos, despreendera-se das suas mãos ao choque e o inocente poema pousara no corredor manchado de sangue. Olhou para fora. A paisagem era a mesma dos dias bonitos do sertão. O dia estava claro e o sol brilhava. Porem uma melancolia tomou-lhe conta por momento. Correu ao alcance do papel. Pessoas cruzavam seu caminho em desespero. Gritos ecoavam por todos os lados, como no inferno de Dante. Como seria bom despertar daquele pesadelo? –Pensou.Porem tentou de todas as maneiras possíveis.Não era aquele da infância, em que sonhávamos sabendo que, a qualquer momento poderíamos acordar. Tínhamos o destino nas mãos: Se bom, prolongávamos o mais que podíamos. Se ao contrario, ruim, teríamos somente o trabalho de abrir os olhos.

A imagem era forte, tinha corpos despedaçados por todos os lados. Oh! Deus, que tristeza! Vidas que jamais chegarão a seus destinos. Lamentava pelos conhecidos eventuais, embora não sendo amigos íntimos, a viagem lhes aproximaram. Para onde iriam? Perguntava desconsolado. Em todos os destinos, haveria uma espera em vão. Alguém choraria, e os soluços se perderiam na distancia. Correra a sua poltrona. Onde estariam seus pertences? Estava completamente arrasado.Acabara de tomar nesse momento uma importante resolução. Tirou devagar o poema do bolso e entregaria a sua amada. O tempo e inexorável. Vivamos a vida hoje, como se fosse o ultimo. Para que o orgulho, e todas essa mazelas que nos entregamos no dia a dia, se no final o que importa e o amor. E todas essas coisas materiais que nos faz tanto “bem”, não nos levam a lugar nenhum. Isto de pensar que e melhor que os outros, e que merece mais consideração e somente vaidades fúteis.

Queria sair dali, pois se achava oprimido, e não tinha como ajudar, pois todos estavam nas mãos de profissionais. Procuraria Ana e lhe pediria perdão. Olharia no fundo dos seus olhos e como uma nau perdida pediria orientação.

Olhou para o relógio no pulso. Deus! –pensou. O relógio parou. O tempo tinha passado e via que o sol estava mais quente e as cigarras cantavam mais forte àquelas horas.Se não houvesse havido esse contratempo, estaria todo em seus destinos. Lembrou-se agora das comemorações de Santa Rita, a padroeira do município. Teria começado? Este grande acidente mancharia este dia? Lembrou-se de anos passados, das quermesses, dos parques de diversões, dos bilhetes trocados, do dia em que a vira pela primeira vez. Ela estava vestida de branco, imaculada, fazia a primeira comunhão. No adro da igreja beijara pela primeira vez. Sinos tocaram na torre espantando as andorinhas. Ela correu para longe envergonhada. Saberia agora ela deste acidente? Se souber, encontrava-se preocupada. Sua ausência a deixava mais sofrida. Tinha que avista-la mais rápido avisando da sua sorte, evitando assim tanto sofrimento. Seus olhos encontraram-se com os do menino do banco da frente: Estupefatos. Olhavam-se como quem não se viam. Era evidente que estava bem, pois se apalpara todo, e somente sentia um pouco de frio e uma melancolia. O corpo se achava todo dolorido, que não era para menos, vinham de uma longa viagem. O resto estava bem. Havia um barulho de serra cortando metal, e um horrível clamor que vinha de fora. O ônibus chorava. Lamentos vinham de todas as direções, tentou acalmar os ânimos. Levantou-se e disse:

-Calma que o socorro já vem! Todo o alarido talvez não tenha deixado o ouvi-lo.

Alguém gritou de fora com uma voz sofrida.

-Abel! Meu Deus! Ele lá esta.

Sua vontade fora sair dali, ir ao hotel, tomar um banho refrescante, jantar, as seis horas fazer uma oração, e depois sair ao encontro do amor. Sussurrou baixinho “Ana”.Mas aquilo tudo o deixou limitado, a voz um pouco falseava, talvez emocionada. Os outros não o entendiam.

Levantou-se com uma certa facilidade e saiu. Achou um pouco interessante cruzar pelas pessoas como que as transpassava. Isto o deixou extasiado. Tentou chamar a atenção dos outros porem estava impossível, talvez devido ao grande tumulto. Movimentava os braços como um pendulo, agitava-os em todas as direções, observando contrito que ninguém o observava. Pensou encher os pulmões e juntar todas as forcas num grito. Talvez assim os notassem. Mas o ar da tarde não o inspirou e o cheiro doce que exalava dos marmeleiros tornara-se inodoro agora. Assim a brisa da tarde tal como um raio-X atravessava-o. Enfurecido reuniu todas as forcas e impulsionou-se no ar. Atravessou o teto do ônibus e ficou pairado a uma distancia e altura como se estivesse sobre uma montanha, e dali via tudo em seus detalhes, minuciosamente. Sentira uma opressão no coração.O ônibus estava jogado num canteiro, e sobre ele, rasgando-o ao meio, uma carreta carregada de madeira. Impossível alguém sobreviver aquele acidente. Persignou-se. Dera muita sorte. Pessoas vestidas de branco e vermelho corriam de um lado para outro. Olhou em volta aturdido. Viu as ruas de sua infância. Isto lhe trouxe uma calma. A grande barragem se encontrava deitada, como um grande réptil. De um lado as águas geladas de mãe dágua do outro um pequeno rio que serpenteava entre as gramas verdes separando a pequena cidade. Coremas. De um lado o D.N.O.C.S(Departamento nacional de obras contra as secas), bairro proletário, e de outro o centro, dos comerciantes e pescadores. Aquelas ruas simples vira toda sua infância. Os banhos de rio, os jogos de bola, o açude grande, correra todos os recantos que ficaram como filmes em sua lembrança. E foi ali que conhecera Ana. Ana era pequena e tímida. Tinha os olhos de farol. Grandes faróis que mostravam o caminho às naus perdidas. Para quem aqueles olhos fitavam agora? Sentiu uma pequena vertigem, talvez o medo de altura. Impossível ficar aquela altura. Teria que tomar a atitude correta. Ouviu soluços distantes. Disse a si mesmo: Tenho que ajudar meus semelhantes. Não devo me preocupar, pois alguém procurara por mim. Foi descendo devagar como um balão que lentamente perdia o gás. Quando chegou rente ao chão, vira Ana aos soluços. Chorava beijando alguém que jazia deitado a seus pés. Aproximou-se cuidadosamente, enciumado. Por quem vertia tantas lagrimas? Sentiu-se traído e sofria com tanta infelicidade; quando fitou e reconheceu-se naquele cadáver. Ana tinha o poema nas mãos, e chorava desesperada. Ele calou-se a despeito de tudo. Ouviu ainda alguém retira-la segurando-a pelos ombros, dizendo:

-Vamos! Tenha forca! Tudo esta acabado!

O silencio era mudo, negro, completo.

O ônibus coberto com um grande plástico escuro. No alto as estrelas brilhavam numa linda noite de vaga-lumes.