quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Filhos são eternos

                                                            


                                                                 Filhos são eternos






O que mais temia na vida aconteceu. Morri. A coisa foi de um jeito totalmente imprevisto. E geralmente quando menos se espera. Já havia sonhado caindo de precipícios, nadando em corredeiras, voando sem asas, atravessando labaredas. Sobrevivi a tudo isso. Hoje, um dia qualquer quando dei por mim já havia acontecido. É como um estalo.

Mas o pior não fora isso, a morte propriamente dita, e sim o ódio que passou a crescer dentro de mim de meus familiares. E esse ódio é tanto mais, quanto mais próximo as pessoas.

Minha família era constituída de um pai, uma mãe e um irmão menor.

Meu pai é um homem honesto, trabalhador, cumpridor de seus deveres. Minha mãe do lar abdica de tudo para cuidar dos filhos e meu irmão tem cinco anos, criança ainda, está na idade dos questionamentos e grande curiosidade.

Tudo se passou como de praxe. Foi um acidente na esquina de casa, quando fui buscar uma bola perdida. Perdido ficou eu quando o carro passou sobre mim. Foi morte instantânea como dissera o paramédico que primeiro chegou para atender-me.

Fora o assunto principal toda a semana nos noticiários, nos bares e botequins. Minha escola deu luto de três dias. Meus colegas ficaram traumatizados e as professoras passaram como dever de casa uma redação subjetiva de como estavam se sentindo.

Meus colegas escreveram frases banais de despedida e solidão instintivamente para livrarem-se de seus medos.

Eu de minha parte fiz um rascunho mais ou menos assim: “Eu me sinto agora um velho açude de águas insalubres e estagnadas. O que desejo é que chova tanto e em demasia, que primeiro molhe o rosto das pessoas na rua, e que elas pensem, estou molhado até a alma, e que os riachos escorram enchendo os rios, que os rios transbordem, e essa onda, esse acúmulo de água ao chegar de encontro dessa parede que me mantém reprimido, arrebente-a com estrondo, soltando meus soluços e gemidos.” Não achei grande coisa. Sentimentos reprimidos.

O enterro fora de manhã. Fazia sol e a brisa balançava levemente as folhas das palmeiras. Um passarinho desceu e pousou no fio de luz bem quando eu ia passando e saudou-me com seu canto. Bem te vi bem te vi bem te vi.

Meu pai me levava com o cenho fechado. Do outro lado meu tio e alguns conhecidos. Minha mãe não pode vir. Estava muito abalada. Meu irmão ficara em casa.

A oração do padre deu-me um falso conforto, como uma poesia declamada ao vento. E a magia das palavras fora terrível quando ouvi a terra marrom cair sobre mim.

Senti-me terrivelmente só quando ouvi os passos se distanciarem e os gemidos ficarem mudos.

Ai era eu e eu e mais ninguém. E quando ficamos assim vem à temeridade. Todos os questionamentos de séculos. Passa-se um longo filme aos olhos.

E aí fora o meu maior sofrimento quando voltei para casa. Entrei pela sala vazia, fui direto ao meu quarto, quando cheguei meu irmão dormia de bruços e parecia que o travesseiro estava todo molhado.

Quando entrei parece que ele sentiu, pois nesse momento virou-se e ficou olhando perdido para o teto. Seus olhos estavam vermelhos. Depois olhou em volta estranhamente como dizendo, afinal esse quarto agora é só meu e de mais ninguém.

Levantou-se da cama e eu já sabia o que ele faria. Pegou meu caixote onde guardava meus segredos e o abriu descaradamente. Pegou de um bilhete e ficou meneando a cabeça como sem querer acreditar.

Enxugou os olhos com as costas da mão e foi ao meu guarda roupa. Colocou meu boné favorito e ficou a se olhar no espelho e fazer as mesmas poses que eu fazia.

Não agüentei mais tanto descaramento. Fui à cozinha e minha mãe estava fazendo o almoço. Não cantava mais. E quando colocou os pratos da mesa quase desmaiou. Eram em número de três.

Foram se chegando silenciosos, pareciam zumbis. Papai começou a comer de cabeça baixa, minha mãe não havia dado nem uma garfada, meu irmão tinha tomado um gole de suco, quando caíram todos num choro contínuo.

Levantaram-se nesse momento e se abraçaram gritando meu nome. Eu ali quieto observando.

E assim passaram-se os dias, os meses e os anos. De meu guarda roupa não sobrara mais nada. Minto. Somente o boné que desde a minha morte meu irmão o usava todos os dias religiosamente.

Agora o quarto tinha uma cama só, e na hora das refeições os três pratos emborcados esperavam a hora de serem servidos.

Observei que eles tiraram à maioria das coisas que traziam minha lembrança, como a cama do canto da parede, a bola detrás da porta, a bicicleta do quintal.

Sobrou somente um retrato tirado na praia, onde nós quatro estávamos abraçados e sorrindo pendurado na sala. O mesmo que as visitas quando entravam, perguntavam era esse o menino, e minha mãe respondia contrita: meu filho querido.

E para que não sofresse mais assim, meu pai carregado de coragem colocara num álbum todas as fotos minhas e só eles uma vez por ano folheavam agora já sorrindo.

Qual não foi minha total decepção quando todos quiseram me esquecer. Meu irmão foi estudar fora, minha mãe passou a fazer trabalhos manuais e meu pai começou a escrever contos, poesias e quando se achasse bastante seguro um romance talvez.

Uma noite minha mãe sem mais nem menos começou a gritar, e meu pai da escrivaninha correu assustado, ao vê-la de joelhos se culpar, foi minha culpa meu Deus gritava, não podia ter deixado ele daquele jeito na rua, parecia menino abandonado.

No que meu pai falava, balançando-a violentamente, não se culpe mulher, você tem que esquecer isso, você tem que esquecer isso, deixe nosso filho descansar em paz. Sim, em paz.

Temos que voltar nossa atenção para o outro. Temos outro filho entendeu? Entendeu? Depois pegou numa pequena foto minha e mostrou. Esse já se encontra com Deus.

Ela chorou muito essa noite. Estava com remorso de ter-me tirado da parede. Talvez porque as lembranças minhas estavam se esvaindo. De querer viver mais comodamente sem muito sofrimento.

Na formatura de meu irmão todos estavam lá. Minha mãe bem vestida, um sorriso nos lábios com orgulho, meu pai de terno preto andava de um lado para o outro, nervoso, pois sabia que no discurso do filho, haveria um espaço para um verso seu.

E quando meu irmão subiu a tribuna senti tanta inveja que se eu estivesse vivo tinha desfalecido. Ele discursara muito bem, falou de nossa vida, das dificuldades, e quando veio o verso, sua voz embargara, e nesse momento toda a turma de formandos aplaudiu e deu urra, e meus pais enxugavam os olhos com lenços brancos.

Branco... Branco... Branco... Era o que vinha em minha mente naquele momento. Toda essa cacofonia metia-me medo. Saí dali para respirar algum ar puro. Deixe a felicidade com eles. Esqueçam-me. Esqueçam-me. Será bom para mim, será melhor para eles.

Longos anos se passaram. Os cabelos brancos e o andar cansado chegavam.

Agora já conseguem viver bem sem mim. Apenas pequenas lembranças. Uma lembrança bem viva. Deram-lhe ao neto o meu nome.

E nos jardins quando vê o pequeno correr de um canto para o outro os olhos brilhando com tanta novidade a descobrir, toda uma vida que não vivi, olham quietos e sei que com certeza essas horas pensam em mim.