terça-feira, 27 de setembro de 2011

O Poeta



Senhor redator do excelente... Não. Senhor redator do conceituado jornal a gazeta de... Tomei a liberdade de escrevê-lo... Acredito que o senhor não me conheça. Sou uma dessas pessoas comuns que preferem sonhar a viver... Não quero tomar seu tempo creio seja precioso... Assim sem mais delongas a finalidade é que mando uma poesia, com estilo, pureza e amor. Peço o favor se possível colocá-la num canto nem que seja na seção de desaparecidos para que os versos encontre talvez um coração aberto, entre tanta violência, no langor do dia que se finda.

Leia com cuidado e dedicação, pois só agora depois de meio século resolvi mostrá-las. Não serão jamais perfeitas como “O corvo” nem dilacerantes como Drummond, nem tão emotivas como Pessoa, mas o meio termo uma coisa como entre a tempestade e a calmaria, entre o amor e ódio entre a vida e morte. Soará como o sino nos dias de finado, na canção de esponsais ou no réquiem para os mortos. Rompendo todas as amarras, depois de todas as emoções defraudadas, varando matas, desertos de inquietações.

Alberto alongou-se na cadeira se espreguiçando, enquanto calculava que a missiva sendo emitida ao destinatário nessa mesma quarta, talvez no domingo ou mais tardar na segunda ela já estaria publicada por sorte e se Deus quisesse num recanto nobre do jornal, naquela página que ao abrirmos, damos um tempo na velha rotina de notícias trágicas, adentrando num oásis, com palavras cruzadas e versos em um momento lúdico.

Cuidadosamente, passou a língua úmida na parte autocolante e apertou uma página na outra fechou com a ponta dos dedos. Lacrada pensou. Não tem mais volta. Tomou uma xícara de café, saboreou-a e já calculava a emoção que ia distribuir com os leitores, que a partir dali, a poesia impressa, esperariam os dias seguintes ávidos por novidades.

Não almoçou aquele dia, de tanta ansiedade. Pegou o velho guarda chuva e ouvindo os pingos no tecido esticado caminhou pelas ruas desertas. Passou na padaria pegou dois pães. Morava só. Ele e o cachorro, um pequinês preto. Um fazia companhia para o outro.

Era ele primeiro que ouvia suas poesias. Na verdade o único, pois sempre teve vergonha de mostrar para os outros. Quando lia, o coração disparava, suava frio, com tanta emoção, e pensando que jamais se mostraria daquela maneira, se um dia, ficaria refém de todos.

E assim os versos eram guardados depois numa prancheta preta que agora virara com os anos um grande calhamaço marcado no frontispício com a frase: Proíbo-os terminantemente de publicarem qualquer dessas coisas, depois de minha morte. Talvez se lembrando de Kafka que foi traído pelo amigo, e foi publicado indiscriminadamente, e mostrado a população todo seu interior por assim dizer, suas vísceras. Não queria correr esse risco. Se, deveria ser em vida, recebendo todas as distinções que lhe seriam devidas, como a fama, dinheiro, mulheres e principalmente o reconhecimento que é o que todos almejam.

Por isso resolveu escrever para o jornal. Era um jornal pequeno da cidade do mesmo porte, mas com sorte, tomaria forma, e com o tempo, galgando degrau por degrau, alcançaria os grandes.

Voltou de tardinha, quando os galos vão aos poleiros, e vira a lua nascer e todas as estrelas. Lembrou-se que, “certa hora da tarde era mais perigosa”, escrevera Clarice. Por onde passava desejava boa noite aos transeuntes, um dia me reconhecerão e não terão essa frieza, mas uma dor o sufocava no peito. Seria publicado? Gostariam dele? De sua arte? E essa pequena preocupação ia crescendo em seu coração como erva daninha. Tenho que me preparar, pensava. Os escritores que conhecia tinha nas fisionomias o que escreveram ou escreviam. Era como o retrato de seus sentimentos.

E ele era singular. Uma testa curta, sobrancelhas largas, o que fazia ter a cara triste, de abandono, os dentes separados, calvo, olhos castanhos, comuns, e pelos por todo o corpo como o parente mais próximo os orangotangos. Só a voz era macia, romântica até, e isso fez um dia passar por constrangimento.
Atendeu ao telefone, uma voz de mulher, carente querendo alguma informação. E da informação, ela falara depois que tudo foi culpa daquela voz pastosa, sensual e de telefonema em telefonema, decidiram se conhecerem e afinal partiram para um encontro. Quando frente a frente, a mulher, o rosto encovado, daquelas de olhos sonhadoras, cabelos partidos ao meio, os braços sem cor, os olhos amendoados, ao vê-lo, mudaram de direção, envergonhados, e o que saiu fora essa frase que jamais esquecera: “ Não foi o que eu esperava!” A voz... Não condiz com o dono. E sem mais, se despediram.

Nunca o fim de semana fora tão longo. No domingo levantou-se cedo foi à missa das sete, passou pelo jornaleiro, fitou a capa dos livros, um poderia ser o seu, pagou o jornal, leu as manchetes, se torcesse sairia sangue com tanta violência, e leu o horóscopo. Câncer: de 21 de junho a 22 de julho. Combata o nervosismo com exercícios e meditação. Boas notícias vindas à semana que entra. O mistério de uma semente que permanece quieta e crescendo sob a terra, (mas que guarda uma promessa de futuro para o amanhã) está contido no simbolismo de Câncer, que consegue visualizar o que ainda não aconteceu. Essa visão do invisível, esse poder de imaginar e a retenção da memória caracterizam este signo de sensibilidade, impressionável e instável nas emoções como as fases da Lua, o astro que preside Câncer.

O universo está ao meu favor pensou. Agora é só me concentrar no que eu quero, e pensando assim sentiu uma grande liberdade, uma vontade de gritar coisas que estavam sufocadas há anos, caminhou na penumbra, via a sombra de um grande escritor, o sol as costas, fazendo se alongar no piso de asfalto escuro.
Quando abriu a porta o pequeno cachorro latiu o desconhecendo, mas depois do assovio, balançou a cauda benevolente. Jogou o jornal sobre a mesa, colocou ração no prato e empurrou com o pé para debaixo da mesa. Bidu raspou o prato. Depois ficou por ali ao seu redor. E as horas mortas se foram. Sabia que era hora. Alberto retirou do fundo da gaveta sua última criação, e declamou. Bidu sentou-se sobre as pernas traseiras e abanava o rabo com a língua para fora.

Os versos entrecortavam o silêncio da noite. Quando Alberto notava que aquilo poderia ser arte pura,agradar a quem lesse, arrepiava-se os pelos do pescoço. Ou engolia seco, imaginando os aplausos de todas as direções. Aplausos! Aplausos! Aplausos! Nessa hora ele ficava como um maestro com a batuta no ar, dando ritmo a orquestra.

Deitou-se mirando pela janela uma estrela. Sentiu-se como uma; pequeno na imensidão. O que somos? Qual nossa finalidade? Perguntava-se. Questões tão antigas e tão atuais no universo humano. Serenos são os animais que não tem tais questões para resolverem. Veja Bidu. Dormindo agora. Nada de preocupações. Amanhã acordará, comerá o que lhe der, depois correrá de um canto para o outro, e se por acaso encontrar uma fêmea, tentará sem custo seu gozo.

E a liberdade. O que afinal procuramos? Se o que precisamos para viver é tão pouco. Muitos vivem a vida toda num pequeno espaço, entre o trabalho e a casa, entre a casa e o trabalho, quietos, sem reclamação. Mas ai de quem os proibir a passar desses limites. Aí uma força bruta instiga a curiosidade latente, e aquele espaço já não é o bastante, quer mais e até quebrar esses limites, a partir daí se sentirão infelizes.

Eu mesmo, se não fosse essas leituras, esse sonho de vencer, de ser alguém na vida seria muito mais feliz. Não teria essa dor no peito, essa ânsia de ser reconhecido, do sucesso, seria um cidadão comum, que trabalha dia a dia, da casa para o trabalho e do trabalho para casa. Mas não, resolvi sonhar, talvez com a utopia, pois, além disso, há muita coisa para ser conquistado, um sorriso, um aplauso na mente humana.

Alberto acordou cedo, deu comida ao cachorro, riu dos pensamentos da noite, vá Bidu, procure uma amante, abrindo o portão, saindo os dois para a rua. Ele correu para a banca de jornal. Bidu o seguiu um pouco, cheirando a grama, uma esquina, marcando o território, quando viu uma cadela, correu atrás e ficaram se cheirando. Alberto riu novamente. Sentia-se mais leve, suas entranhas seriam mostradas, amiúde. Mas se o custo do sucesso fosse esse, que lhe dissecasse, todas suas fraquezas e sentimentos.

Nada. No jornal não tinha uma linha sequer de seu poema. A manchete era: Mãe abandona filho, recém-nascido no lixo. Conta os detalhes. Veio do norte, pobre, mora na favela, não conseguiria sustentá-lo. Lembra de uma vez que descobrira uma ninhada de ratos no porão de sua casa. Como cuidam bem de seus filhotes. Arriscam-se serem caçados pelos gatos, fogem das ratoeiras, descem por canos, para cuidarem dos filhotes. Não os abandonam assim. Só nas crises de alimento, aí tem menos filhotes.

Confirmou olhando todas as seções que não havia notícias boas. Porque somos assim? Preferimos as notícias más. Violência, violência... Na parte que falam das pessoas só falam coisas decadentes, maliciosas.

Escreve outra carta. Muda o tom. Mais áspera. Contundente. Para tocar o homem tem-se que usar das mesmas armas. Dos mesmos elementos. Faz uma poesia dramática, rima pus com luz, sangue com mangue, cidade com infelicidade, morte com corte, da navalha na carne com arte.

Esperou mais uma semana. Nada. A Manchete era: Bala perdida atinge menina que ia para a escola. Morena, gostava de ler, em sua mochila foram encontrados camisinhas e um livro de poesia.

Do livro não se falou mais nada, nem da poesia. Da menina que se chamava Maria, uns falaram que era uma desavergonhada. Tão nova levando na bolsa camisinha. Como se o amor fosse vulgar. Hipócritas! Hipócritas!
E se... Pensou longamente. Escrevera uma última carta. Fria. Monótona. Lera para Bidu. Ele balançou-lhe o rabo. Arrepiaram-se os cabelos. Pedras no caminho. Montanhas imóveis, duras, concretas, enormes.

Naquela manhã de domingo a manchete no jornal: “Homem suicida-se em seu pequeno quarto, na rua tal, quadra tal”. Continuava: Um solitário. Tendo como amigo um pequeno cachorro de nome Bidu. Com muita insistência é que conseguiram tirar o corpo, já pálido e duro, pendurado na corda, pois o velho amigo o protegia de todos que se aproximavam. Quando o levaram no rabecão, ouviu-se um uivo triste que fez
alguém exclamar: “Sente tanta dor como se fosse humano”.