terça-feira, 19 de novembro de 2019

Uma bandeira de respeito







                  Uma bandeira de respeito



          Estava dirigindo-me ao clube Mangueiras, na manhã de domingo, aonde vou praticamente todos os finais de semana, quando me deparei no cruzamento da beira rio com a  Santos Dumont, creio eu, embaixo do sinal, um rapaz portando uma faixa com os dizeres:

         Se apóia o impedimento do ministro do STF buzine.
Lembrei que seria em todo o Brasil tal manifestação.
Eu fiquei entusiasmado em saber que um jovem estava largando de lado a diversão para lutar por algo.
Alguns gatos pingados buzinaram, outros como eu passamos em silêncio.
          Imediatamente fiz uma reflexão para entender melhor o ato em si, questionando-me primeiramente qual a função do juiz do supremo.

          Segundo o Google, um dos maiores sites de conteúdo, o Supremo Tribunal federal é o órgão máximo do poder judiciário e seus ministros têm a principal função de proteger a constituição que é a norma mais importante do país.

          Soube também que a demanda do jovem era porque o ministro votou contra a prisão após segunda instância e que segundo o jovem, levaria a liberdade com esse ato, milhares de  investigados, réus de todos os tipos e raças, chegando ao motivo principal do ódio que era a soltura do ex- presidente Lula.

         No entanto sabe-se que não é assim. Existem várias maneiras de manter o acusado preso se for necessário e legal, que determine a lei.

          Não quero ponderar sobre a segunda instância aqui, pois já comentei em artigos anteriores. Quem tiver a curiosidade leia no meu blog.

          Busquei informação e de acordo com vários juristas o ministro foi correto em seu voto. Seguiu criteriosamente o que diz a constituição no artigo referente à matéria sendo assim o pedido esdrúxulo.

          Só restava então tentar entender o rapaz que segurava a faixa e os outros manifestantes que buzinaram na ocasião, visto que, o ministro só fez o que espera-se dele,-  a defesa da carta magna promulgada em 1988 pelos deputados e senadores votados para serem constituintes aquele ano e só uma nova eleição daria poderes para esboçar uma nova, partilhada em debates  com toda a sociedade.

          A não ser que essa turma queira que o ministro burle a lei.
Hipoteticamente falando, o tal rapaz deve pertencer a uma sociedade paralela que está surgindo e que tentam manipular a todo custo os poderes constituídos ao seu bel prazer, como fizeram na adolescência com os pais,  garotos mimados que são.

          Essa sociedade nos seus sonhos tresloucados, não é de hoje, tentam impor no grito idéias extravagantes e antidemocráticas  do tipo: Volta a ditadura, fechamento do congresso, pena de morte etc e etc.

          Vestem-se de verde amarelo como se a bandeira e essas cores fossem exclusividade deles, como marcas famosas de roupas estrangeiras.

          Não se importam com a vida alheia, sem empatias com nada a não ser seus ídolos, que são pastores de várias denominações que visam exclusivamente o lucro, donos de televisões que não passam de contraventores de jogos de azar e empresários que são contumazes devedores da receita federal.

          Afirmo que se a faixa fosse: Buzine para diminuição da pobreza, da melhora da saúde e excelência na educação,  eu buzinaria entusiasmado e creio com certeza que seria  ensurdecedor o barulho.

          Pois a luta boa e grande que merece uma bandeira nesse país é: a diminuição das diferenças sociais, da fome e da miséria.



terça-feira, 12 de novembro de 2019

Fim








                                           Fim



Creio que seja a primeira vez que leem algo começado pelo fim. Quis fazer dessa forma porque esta história veio assim sem pé nem cabeça e seu desenrolar vai parecer para o leitor  incauto, uma piada de mau gosto, mas não é. Essa historia acontece nos lares, isto não tenho nenhuma dúvida.

Todos os casais passam por três fazes distintas que são:

A fase da lua de mel onde tudo é perfeito e doce.
A fase lua de fel onde tudo é defeito e amargo.
A fase  de eclipse onde não há lua, nem luz no fim do túnel.

É nessa fase que encontramos Seu Artur e Dona Margarida.
Ambos aposentados e sós. Os filhos já vieram e foram; os netos vieram e cresceram;
 Enfim o lar era um ninho vazio.
Só restou a implicância um com o outro.
          -Artur você já notou que parece um pato?
          -Como assim?
         -Aonde você vai deixa tudo molhado. Se escovares a dentadura deixa o lavabo todo molhado, se usa o vaso, o vaso fica todo molhado... E não é só isso... Agora de uns tempos para cá ronca e solta gazes na maior altura...
       -Não ronco querida!
      -Qualquer dia eu gravo tudo com o celular e posto no youtube para todo mundo vê! Você sabe como são as redes sociais. Destrói qualquer  vida mesmo a quase  perfeita. Imagine a sua que é só defeito.
O velho ficou quieto. Ele tinha lá suas reclamações também.
Ele sempre reclamou dela, de deixar o tapete bem junto da escada. Um tropeço e quebraria o pescoço. Ou as muitas  vezes que ela errou no sal, sabendo que era um veneno para ele.
Ou ele comprar aquele maravilhoso pudim e deixar a mostra bem perto da água na geladeira sabendo que ela era diabética.

Imaginem o que duas pessoas sozinhas que se odeiam(elas se conhecem demais para ter algum amor), morando na mesma casa, dormindo na mesma cama são capazes de fazer?  Solte a imaginação leitor. Com certeza suas histórias serão bem mais diabólicas do que a dos escritores, isto tenho certeza, pois os escritores muitas vezes ficam temerosos de colocar no papel o que pensam, com receio de se mostrar. Sim. Os escritores além de serem  tementes a Deus odeiam os críticos. Tem uns que usam codinome, heterônimos ou até fazem trabalhos anônimos para se esconder.
Vou deixar aqui embaixo um espaço para vossos desenvolvimentos.
Sejam criativos.




O certo é que os velhos foram dormir e nunca mais acordaram. Esqueceram o gás ligado.





O Alfa e a menina









                                            O alfa e a menina



Sou aquele homem que perdeu a virgindade na vila boêmia da cidade natal. Todas as putas do lugar eram conhecidas. Cruzavam conosco na missa dominical. Elas doavam o dízimo semanal. Já falei disso antes. Foi em setenta e quatro. Estávamos na ditadura de Geisel. Ele oferecia uma abertura para a volta da democracia. Eu estava mais preocupado em outras aberturas. Havia treinado bastante com as prostitutas e já era hora de comer minha namorada eu pensei esse dia. Nessa época nossos pais diziam “segurem suas cabritas que meu bode está solto”. Foi assim que eu aprendi.
Estávamos no sofá. Não sabia se ela queria, eu queria e isso bastava. Ela era linda. Criada totalmente ao contrário. Enquanto eu passava o dia treinando sexo ela treinava ser mãe com as suas bonecas. Vamos vê o que vai dar essa disparidade.
Nesse dia foram dormir mais cedo. O pai era retireiro, tinha cem vacas para tirar o leite bem cedo. A mãe igualmente ajudava o velho na lida. O irmão mais novo ficou me vigiando até quando pôde. A gente sempre inventava algo para ele fazer. Buscar um copo d água, Ir lá fora vê se ia chover, mas aquele dia ele dormiu como uma pedra.
Só ficou acordado o bode e a cabrita, o lobo e a ovelha.  
Ela levantou-se como fazia todas as noites e veio beijar-me na boca longamente para despedir-nos. Eu agarrei-a pela cintura e disse ao seu ouvido, hoje eu quero mais. Ela disse que não, que o que eu estava pensando, só depois de casados.  Que jamais ia ceder, que sabia como eram os homens etc e etc.
 Eu estava mais seguro, sabia o que a mulher esperava nesse momento. Já tinha praticado de tudo com as prostitutas.
Quero comê-la eu disse.   
Ela hesitou um pouco, mas me beijou longamente. Avancei a mão por entre suas pernas.
Ela tinha o sonho de casamento com véu e grinalda, na igreja, leu todos os livros dos autores românticos principalmente Shakespeare e os primeiros de Machado de Assis. Eu lia somente os romances de Machado em sua fase realista.
Mundos diferentes. Ela fora criada brincando de boneca. Tomar conta da casa, da cria. Eu fui criado como bode solto. Como Alfa.
Com muito custo consegui que ela deixasse colocar por cima da calcinha. Ela estava excitada também. Perguntava toda hora se eu a amava. Eu te amo, te amo, te amos eu teria dito mil vezes mil  enquanto ela deixava-me avançar mais.
Falei a frase crucial. Deixa eu colocar só a cabecinha...
E deixar colocar a cabecinha não tem mais volta ou tem ida e volta.
Enquanto ia e voltava ela não parou de falar um minuto:
Você promete não me abandonar ela dizia. Prometo, prometo, prometo mil vezes mil, um milhão ai gostosura eu dizia.
Ela ficou com uma cara de Madalena arrependida.
Depois chorou em meu ombro lágrimas mornas não sei se de felicidade ou de tristeza.
Não achei muito interessante, devia ser porque era a primeira vez dela.  Ela limpou as lágrimas, jogou os cabelos para traz com um pouco de timidez.  Ela quis beijar mais, mas eu estava satisfeito e a beijei na testa.
Ela não dormiu essa noite.  Eu dormi um sono pesado.  


sábado, 9 de novembro de 2019

O Alfa


Quadro de Toulouse Lautrec(Pintor francês impressionista conhecido por pintar a vida boêmia) retirado do site  https://frenchmorning.com/plus-que-quelques-jours-pour-voir-toulouse-lautrec-a-arlington/





                                                              O alfa


Eu sou um homem.  Estou na vila boemia de minha cidade natal. Precisamente em 1974. Já tomei uma cachaça para ganhar coragem. Tenho medo no olhar. Nosso passado machista me fazia temer esta missão. Por isso enchia a cara para ganhar coragem.

Da rua esquerda ela veio. Não sabia o nome nem queria saber. Ela era miúda. Dirigiu-se a mim com a cabeça baixa e perguntou se eu queria me divertir. Eu disse que sim. E pedi- lhe para que ela me mostrasse seu corpo.  Ela hesitou um pouco, mas depois abaixou a calça até os joelhos.  Tudo era interessante. Era a minha primeira vez. Um tufo de cabelos cobria ali entre as pernas sobre a fenda. Ela riu, jogou os cabelos para traz com uma desenvoltura de quem fazia aquilo diariamente. Bebi mais uma cachaça.  Ela pediu para ver o tamanho do meu órgão eu relutei mas como estava rígido tirei e mostrei.  Suas mãos eram mornas. Meu coração quase explodiu em sua mão. Eu criei coragem e perguntei-lhe quanto à diversão me custaria. Ela disse sem me largar que ia fazer para mim um precinho especial. era para virar  freguês, ela disse mordendo minha orelha. Aqui somos de fino trato, disse.

Combinei voltar no dia seguinte. Receberia o dinheiro da mesada. Ela beijou-me na maçã  do rosto e sumiu no beco escuro. Eu tirei os óculos embaçados pelo seu hálito quente e limpei na camisa. Fiquei pensativo e tomei mais uns goles. Paguei o boteco e sai. Peguei o circular e fui direto para casa.  As pessoas me olhavam. Será que desconfiavam do que eu pretendia? 

Entrei em casa passei direto pela sala ao quarto. Deitei vestido mesmo só tirei os tênis. Olhei para o teto horas.
Suspirei. Seria medo de falhar?

Cedo levantei. Coloquei uma cueca nova.  Olhei no espelho os dentes, o hálito, o nariz os olhos e por último dentro da cueca.
Inspeção de rotina. Ficou rígido.

Desci no ponto final.

Entrei na viela escura e subi ao quarto. Ela me recebeu com um sorriso e me fez deitar na cama. Deitei de frente para a janela todo vestido. Ela disse-me, não bobinho fique só de cuecas. Tirei a roupa e fiquei olhando pro teto. Acendi um cigarro que ela pegou dos meus lábios e deu um grande trago.

Ela colocou-se frente a mim. Disse que meu bigode ainda era ralo. Ela de pequena ficou enorme. Eu olhei os seios dela. Ela disse que eu podia pegá-los devagar para não machucá-los. Levei uma das mãos e toquei o bico com um dedo. Era como uma grande verruga. Ela olhou dentro de meus olhos.  Um menino. É o que ela via.

Eu via uma mulher experiente. Coitada. Já fora como eu, mas a vida lhe tomou a inocência. Tivera família, talvez. Agora vivia sozinha ela e o cafetão que estava lá fora. Qual o motivo de ter virado uma prostituta?  Faço ideia, mas não me importo.

Tenho os olhos nebulosos. Súbito ela montou em mim e colocou tudo para dentro. Quase não tive trabalho. Ela subia e descia vertiginosamente. Enquanto isso, eu não pensava noutra coisa a não ser contar para a turma da esquina. Se, demorou cinco minuto foi muito. Ela tinha outros fregueses. Não nos beijamos na boca. Ela tinha os dentes estragados.
Agora eu estava mais calmo. Mais dono de si.  Ela não gozou. Era profissional. Só fingiu uns gemidos.
Limpei-me no banheiro.  Dei uma nota mais alta do que o combinado. Fique com o troco eu disse. Ela pegou a nota e socou entre os seios. Agradeceu minha bondade.
Volte mais vezes ela disse que na próxima poderemos variar as posições. Eu disse que sim e saí.

Li no cartaz pregado no orelhão: Aninha, inteirinha, bunda empinadinha, atende prive, homens, mulheres e casais. Sem frescura.  Anal, vaginal e oral.
Anotei o nome dela.
Somos implacáveis. 

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Não me pergunte o motivo


       Foto sugada de http://obviousmag.org/j_domingues/2015/como-nasce-um-escritor.html




          Um belo dia depois de sair de um castigo, - minha mãe tinha imposto escrever do próprio punho “Eu estou arrependido” cem vezes numa folha de papel almaço, tinha xingado alguém de filadaputa,-  ressabiado  fiquei ali a beira da estrada sob a mangueira, que todos respeitávamos, afinal ela nos dava  três coisas essenciais: O fruto, a sombra e a algazarra dos passarinhos ao cair da tarde.

          Emburrado eu cavava a terra fazendo um buraco. Foi quando os meninos da rua do rio, ao passarem para a escola me gritaram:

          -Estais cavando um buraco para chegar ao Japão moleque?

          Eu não respondi, mas confesso que fiquei encafifado. Será que se a pessoa cavar, dia e noite e noite e dia sem parar chegará ao outro lado da terra? Seria interessante, ah seria. Sair de um buraco no meio do Japão! Eles ficariam tão assustados que me olhariam com os olhos fechadinhos.

Assim não parei de cavar. Mas tarde outro passou:

          -Cuidado menino, pois cavando assim com tanto afinco, pode bem daí jorrar petróleo!
Dessa vez não pude segurar o riso. Sabe que seria o máximo! Eu, euzinho, o maior produtor de ouro negro da terra, do universo, das galáxias?
Seria um Sheik. Usaria aqueles turbantes, teria um castelo, um harém para meu deleite. Só assim talvez Maristela olhasse para mim. Ela a causadora principal do xingamento. Aquela presunçosa, ridícula e gananciosa. Não! Ela não é gananciosa, pois quando ela me beijou atrás da porta eu ainda não era Sheik. Ela é só um pouquinho chata e beijoqueira. Só.
Continuei cavando. Ainda não tinha decidido nada. Também se jorrasse água não era de todo ruim. Aqui água é dinheiro.

          Enquanto cavava ia perdendo a raiva e notava principalmente que quanto maior as coisas, maiores os desafios. Os que me viam de longe via a terra saltando do buraco igual uma abelhinha que perdi horas e horas da minha vida vendo o trabalho incansável dela em perfurar uma parede. Entrava, cavava, jogava a areia para fora com as pernas. Tinha muito esmero em fazer o buraquinho. Passei o dia observando. Fiz até uma lente de aumento com uma lâmpada cheia dágua. Aprendizagem sabe? Deu pro gasto. Qualquer dia conto das minhas invenções. Gosto de desenhar, de escrever, de tocar violão até versos tento fazer uma vez ou outra. Não mostro pra ninguém. Necadecapiberibe. Pra mangarem de mim! Nunca!  Outra hora.
Sabia que quanto mais fundo o buraco a terra vai ficando úmida e morna? Eu não sabia. Será que é para os mortos não sentirem frio?

          Quando deram seis horas minha mãe apareceu na borda. Devia está com pena de mim. As mãos nos quartos ela disse:

          -Pára com isso menino, sai daí e vem comer um pouquinho. Fiz aquela comidinha que você gosta!
Não respondi. Quando ela ia saindo eu disse sem olhar-la que ia morar no buraco. E frisei: Para sempre.
Ela foi sorrindo. Ainda disse sem se voltar:
          -É mesmo! E vai viver de que?

          Assim fiquei matutando como seria viver num buraco. Fui enumerando: As formigas moram e que eu saiba moram muito bem. O tatu, o coelho, a cobra, algumas abelhas, cupins, traças...
Estava lembrando-me de mais, quando ouvi os moleques voltando da escola.
Um aproximou. Sempre é aquele nosso amigo, arreliento. O que beijou Maristela e me contou sorrindo. O filadaputa.

          -Fica aí bobo, que nessa profundidade, se tu morrer agora mesmo não vai ter trabalho algum. Vai ser só jogar toda essa terra de volta e plantar em cima uma cruz. Aqui Jaz um Zé ninguém.
Aí comecei a chorar. Eu não queria ser Zé ninguém! Queria ser alguém na vida! Não um número de CIC, CPF, identidade ou   isso em minha lápide! Zé ninguém...
E pra Zé ser alguém precisa de que? Fiquei pensando e chorando.
Nunca tive tanto dó de mim na vida  quanto esse dia.
 A empregada lá de casa chegou, olhou para minha cara e disse:

          -Liga não dona Nazinha, é banzo. Meus antepassados sentiam o mesmo quando tinham saudade da África. Demora mas passa!

Então foi decretado que eu estava com “banzo”.
Esse banzo não é bom. É uma dor igual senti mais tarde com a morte dos meus pais. É dor e abandono. Junto é pior.
                                ***
Na coluna diária que escrevo alguém um dia perguntou:

"Com toda vênia que o senhor escritor merece, me diga uma coisa: o senhor viveu  tudo o que escreveu ou escreve ou de outra forma,  mentiroso e vil inventa essas coisas num lampejo para se vingar de quem viveu verdadeiramente? Ou o intuito é encher a página dessas coisas e embolsar a grana?
Assina: Maristela.

Até hoje não respondi.
Confesso que não sei.



quinta-feira, 9 de maio de 2019

Aleatório









                                   Aleatório



          Já contei das minhas andanças. Gosto de andar por aí nesse mundo de Deus. Não coleciono fotos nem postais ou qualquer outra coisa dessa ordem. O que importa para mim são as pessoas. Coleciono pessoas.  

          Nesse dia fui a um enterro de um conhecido. É  quando perdemos amigos que pensamos na morte. Ela se aproxima nessas horas, toma café conosco, até dorme na mesma cama, para de manhã, com o brilho do sol entrando pela janela esquecermos outra vez.

          Estava assim meio sorumbático, observando o trabalho do coveiro, um trabalho meticuloso  lacrando a tumba, tapando todas as frestas, ajeitando as flores, jogando a última pá de terra, colocando a argamassa, alisando-a com a colher num trabalho perfeito.

          Seu nome vim saber depois, era Sebastião mas conhecido por Tatão coveiro, veio do nordeste, com a cara e a coragem disse-me.

          Quando cheguei aqui, dissera ele, corri todos os cantos dessa cidade como um louco, para arrumar um trabalho e foi aqui nesse cemitério que me acolheram.

          O trabalho era simples disse o encarregado da prefeitura. Devia entender um pouco de alvenaria e carpintaria e o principal era ter aquela coisa nobre perseguida pelos escritores:

           Muita discrição, descrição, ação, humildade, poucos adjetivos, o mínimo de advérbios, olhar baixo e nunca, mais nunca mesmo demonstrar sentimentos.

          Observei que com todo escândalo que a viúva fez, ele ficou calado, fazendo seu trabalho, misturando a massa lentamente deixando dá o ponto, ou colocando mais terra ou mais água,sabia que os gritos aumentariam, quando se coloca a última pá, última massa, a última frase...Era sempre assim.

          A viúva em prantos gritava para todos ouvir, que o mundo era injusto, que só morrem os bons, bom pai, trabalhador, honesto...

          Deu vontade de ri.  Não dessa cena. Meu amigo era homem bom mesmo. Lembrei da piada do advogado que morreu e a mulher fazia esse mesmo discurso quando um bêbado disse:

          -Uai! Acho que errei de velório?Aqui é o velório do Doutor Alcebíades?

          -Sim respondeu a viúva chorosa! Ele mesmo! Um grande homem!

          - Pelo que a senhora falou aqui jaz um santo! E o Alcebíades que eu conheci, era um puteiro de marca maior! Não faltava uma tarde no baile da Soninha! O baile dos casados!

          Piadas a parte depois do serviço feito ele foi tomar um café e a viúva ainda ficou em seus prantos.
Eu o segui. Ele atravessou as alamedas. Era sua paisagem de todo dia. Cruzes, choro...

          Ofereceu-me um café que eu prontamente aceitei.

          -Coitada daquela senhora. É sua parenta? Ele perguntou.

 Talvez para dá uma opinião sem risco de me ofender.

          -Não eu disse. O morto é que era meu  amigo.
Ele tomou um gole de café.

          -Ela não entende que dessa forma é melhor. A vida é bela por isso! Nossa existência é um jogo.

          -O que?

          - A forma como somos escolhidos...

          -Escolhidos?

          -Para morrer...

          -Ah!

          -Eu acredito que a existência é um jogo onde as cartas são retiradas aleatoriamente. Não quero dizer com isso a não existência de Deus. Nunca! Jamais! Só quero dizer que se as escolhas não fosse assim não haveria justiça, entendeu?

          -Não, eu disse secamente.

Quase perguntei a ele se por acaso ele já viu algum espírito, algo diferente sair daquelas tumbas... mas achei inconveniente. Afinal o espírito deve ser invisível creio eu.
Ele continuou.

          -São mais de cinqüenta anos nesse ofício e nunca vi ninguém sair daqui... Nada... Só o silêncio impera aqui...
Ele acabou me respondendo sem querer.

           - Imaginamos isso porque achamos que a vida é um prêmio, e que viver até os cem anos é prêmio máximo.

          -Mas a vida é bela eu disse.

          -Mas, e se a vida não é prêmio e sim um pagamento de pena? Observou? Muda tudo? Todo o conceito entendeu?  Toda criança quando nasce chora não é? Não seria o recado de que viemos sem querer? Como disse o velho Sócrates: vida é doença, vida é mal que se cura com a morte.

Admirei-me com seu linguajar. Olhei sobre seu ombro e vi uma pilha de livros todos sem capas. Não dava para saber os autores.

          -Não é difícil imaginar o que eu faço na minha hora de descanso não é? Leio. Leio muito.

          -Estou vendo!

Deu vontade de perguntar se tinha lido algo meu. Não perguntei.

          -Todos os dias nascem milhares de seres e morrem outros. É um ciclo. Agora imagine que lá na chefia celestial, a morte, aquela donzela que a imaginamos de túnica negra com capuz e foice na mão, com um bloco na mão todos os dias escolhendo quem vai morrer, riscando o nome um a um. Como seriam essas escolhas, as justificativas? Seria totalmente imparcial? Se fosse assim era fácil ser corrompida, receber propinas... Essas coisas. Se fosse dessa maneira era fácil explicar as pessoas que escuto aqui todo aos prantos:

          -Por que morreu tão jovem, na flor da idade, porque não escolheu um velho qualquer? Ou aquele outro já está na hora de levá-lo, pois, já se encontra doente há vários dias ou Vou levar esse por ser um assassino frio, ou levar aquele por não ter ninguém...
Veja você que se fosse assim os ricos e poderosos viveriam mais... Poderiam corromper, dá propinas, agradar...
Mas, minhas leituras me levaram a crê, vou contar aqui um segredo, as escolhas já não são feitas dessa forma. Desde que Sísifo enganou a morte acorrentando-a e colocando-a numa coleira  conseguindo ludibriá-la, desde esse dia que ela mudou o modo de escolha. Agora é de uma maneira totalmente simples e nem um pouco original. Não tenho dúvidas quanto a isto.

          -Como é feito tal escolha, perguntei incrédulo.

          -Independente do que façamos, a escolha é aleatória. Não tem oração, nem propina. Nada.

          -Como assim, perguntei perplexo.

          -Uma loteria. A forma mais honesta de escolha. Ela vai tirando bola por bola. E aceitar isso nos torna mais leves. E como disse no início, com um pouco de sorte nos livramos mais rápido de nossa pena.

          Dito isso, saiu para enterrar mais um.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Contatos de quarto grau








Em minhas andanças por aí encontro seres humanos de tudo que é jeito. Esse que eu encontrei, vestia-se com calças jeans  toda remendada deixando-o como um retalho colorido. Usava um chapéu de palha cheio de penduricalhos, tinha até bonecas. Chamou-me a atenção. Aproximei-me. Ele fumava um cigarro que toda hora apagava com o dedo e colocava-o atrás da orelha esquerda. Sentado no banco da praça, ele dizia:
Não sou louco, juro. Nunca rasguei dinheiro. Minto. Rasguei uma única vez, mas imediatamente colei com durex. Precisava para comer. Mas como disse alguém, não me lembro quem,de médico e louco todos temos um pouco, é ou não é, ele dizia rindo. Observei que ele faltava dentes. 
Ele continuou:
“ uso essa parte lunática que eu tenho para pensar sobre tudo ou nada em lucubrações vagas. Pois veja:
“Diz os cientistas de todo o mundo,que matéria é constituída de pequenas partículas esféricas, maciças e indivisíveis, denominadas de átomos. Veja! Que o átomo tem outras partículas minúsculas, e que fazemos parte dessa matéria. É como uma sopa com todos os ingredientes, entendeu? Somos o tutano do osso. Damos o gosto à sopa, amargo muitas vezes, nesse imenso universo.” Meu velho, é isso aí.
Acende o cigarro novamente.
“E toda matéria ocupa um espaço nesse universo. Pode-se dizer seu espaço, pois segundo as leis da física, dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço. É como a música disse: Cada um no seu quadrado.
 Levanta-se e dança por um momento. Um cinto segura as calças para não cair de tão magro que é. Dá para contar as costelas.
“Mas não é tão simples assim. Eu na minha ignorância imagino que entre tudo, mas tudo mesmo, entre eu e você, se não existir amor, existirá o vácuo, e  nesse vácuo  existirá o ar que é matéria. Ele aqui abre os braços para demonstrar. Entendeu onde eu quero chegar velho? Pois então. Esclareça-me se estou errado.

Esclareço sim eu disse: Entre nós não há o vácuo. Já sinto uma empatia por você.
Ele sorri. Toca aqui, estica o braço. Tocamos as mãos. Ele continua:

“O ar atmosférico é formado por vários gases, vapor d'água, microrganismos e impurezas (poeira e fuligem). Entre os gases existentes na atmosfera, temos: oxigênio, gases nobres (hélio, neônio, argônio, criptônio, radônio, xenônio), nitrogênio e gás carbônico. Um comentário aqui meio sui generis: Como todo ser vivo peida, concomitantemente no ar existam muitos desses gases. Que é simplesmente a união esdrúxula desses gases que já existem. Entendeu? Tudo são átomos, moléculas...

Enfim, independente dos estados, eu imagino uma matéria contínua. Por exemplo: Se conseguíssemos pintar o ar, veríamos uma única cor no universo, como nos programas de edição de imagem em que ao tocarmos no ícone do balde tudo fica da mesma cor.Essa comparação é para explicar que nada nos separa. Somos átomos. Eu estou ligado a você, você a outros, outros ao todo, ao espaço sideral, as galáxias. Somos um único plano. Uma grande substancia. E como substancia estamos em contato puro com Deus. Contato do quarto grau velho!”
Ele ficou calado. Deu um trago longo no cigarro. Já não me via. Sua visão me ultrapassava. Recolhe seus jornais e vai andando. Olho-o dobrar a esquina.

Ele não deixa de ter um pouco de razão, penso.

Certezas









Quantas certezas há?
Se até a simples cor do meu
Rosto depende da luz;
Que as estrelas que
Vemos no céu já
Não reluz
É passado
Ano luz,
Que a realidade não seduz
Que o sonho seja capuz
Que a gravidade mera força,
Atrai luz
Para o buraco negro
Que a paixão nos joga
Se não houver amor...



sexta-feira, 3 de maio de 2019

Todos viemos com um chip








          Na vida aprendemos com a experiência, todos sabemos, no entanto, quando nascemos nossa mente não era página em branco. Somos mais ou menos como tabletes e celulares que já vem com um chip. Nesse chip há tudo que precisamos para desenvolver toda nossa capacidade sensorial, motora e psicológica. Somos completos. Pois fomos criados a semelhança Dele.

          Aí pergunto: Porque nós ainda não alcançamos a plenitude?

          Com séculos e séculos passados tivemos várias conquistas:
Descobrimos o fogo, ficamos eretos, no campo das ciências foram inúmeras descobertas, só para citar algumas:  Antibióticos, anestesia, código genético, vacinas, curas de várias doenças,  alçamos  vôos com máquinas mais pesadas que o ar, submergimos ao fundo dos mares, fomos a lua...

          No campo físico batemos a marca dos dez segundos, corremos maratonas intermináveis, levantamos pesos enormes, enfim mostramos toda nossa capacidade física.

          Já no campo psicológico deixamos a desejar. Mantemos-nos no egocentrismo onde as pessoas colocam o dinheiro acima de tudo, o ódio que faz as desavenças e guerras, a maldade, deslealdade...

          Precisamos com urgência mudarmos o modo de pensar e agir para que aflore as coisas boas que temos dentro de cada um, precisamos pensar de outra maneira, com mais amor, só assim o algoritmo contido no chip faça emergir do fundo dessa máquina maquiavélica dos seres, a verdadeira alma humana.

          Como disse o escritor Mia Couto, que explicita bem:

          “Há o homem, isto é fato. Custa é haver o humano.”

Marinaldo L Batista---------------03/05/2019


quinta-feira, 28 de março de 2019

No país do carnaval: a morte de Arlequim


Retirado do site: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhBh2nlTVXsbiUtULYEOLOS463CURZwqB-ywfvBAoM07qccVGSmkQo1GgBKPy_LvQBoNy7hkdkQCNzi5BFyCw7GUqIueoiXu-b2KtHw-IIdx4c0yTZWnISnR_2A7CitmtIMmOsj7A4s5Q92/s1600-h/Pierrot2.jpg






                No país do carnaval: a morte de Arlequim


          A coisa aconteceu nos idos de sessenta e quatro, no mês de agosto, mês de desgosto, nessa época Serafim era um jovem sonhador.  Tinha dezoito anos, sonhos e ânsia de liberdade. Vivia a vida na idéia de um mundo novo cheio de amor e paz. Como a gazela que sai todos os dias para ruminar sem preocupação com a existência dos predadores. Esses têm muita fome e precisam se alimentar.

         Esse dia, era de manhã, o sol ameno, ventos calmos, Serafim estava ruminando idéias, com a mente no mundo da lua, quando súbito os tanques encheram as ruas, a roldana metálica tilintavam no asfalto moendo tudo que encontrava na frente e foi dado o toque de recolher e em seu quarto ele acordou de um pesadelo medonho. Agitou a cabeça como se quisesse acordar, mas tudo o que estava acontecendo lá fora vinha para seu quarto na imagem distorcida de um pequeno televisor. Era realidade.

         Foi percebendo aos poucos.  Como a noite cai: O sol se esconde, os pios das corujas aparecem junto com os grilos e a luz desaparece restando apenas a escuridão.

        Houvera uma ruptura e o país caiu na mão dos militares. Uma parcela da  sociedade apoiou, principalmente os ricos e empresários. A igreja também. Achavam que seria uma transição. Até a mídia apoiou.
      Era perigoso pensar doutra forma.

        Assim, entendeu então que precisava fugir. Jogou umas mudas dentro de uma sacola, calçou o tênis e quando ia sair algo o jogou para trás com tanta violência que ele caiu de boca aberta sobre a cama.

         Eram três homens. Os dois que entraram na frente o seguraram pelos braços e o outro veio para cima tentando arrancar coisas que não sabia. Fala! Fala agora seu meliante!

         O que falar, se o que queria era somente era viver em paz.

         O levaram para diversos órgãos, sofreu torturas que deixaram marcas físicas e psicológicas e a mais nefasta foi uma que não havia maneira de escondê-la.

         A marca indelével foi segundo ele, graças a sua falta de sorte “fui o bode expiatório!”.

       Seu “Finzinho” como era conhecido, pau para toda obra. O que diziam dele.
       Sozinho ele relembrava e questionava-se porque não fugira como os outros. Aproveitaram a frase em voga na época: “Ame-o  ou deixe-o!”  Deixaram. Poderia ter ido para o Paraguai um tempo, até as coisas normalizarem. Mas achava que a coisa fosse provisória. Venderia muamba de todos os tipos para seu sustento.

          Não deu tempo.

          O sorriso agora forçado, diga-se de passagem, mesmo quando acordava melancólico. Mas não tinha escolha. Mesmo triste seus lábios não cobria seus dentes, brancos e largos. 
  
         O executor quando o pegou disse-lhe gritando: “deixe essa cara amarrada, o que estamos fazendo é para o bem de todos! Desamarremos esta cara!  Vamos homem! E assim os dois brutamontes o seguraram pelos braços e o deitaram numa mesa  e o terceiro com uma faca cega, sem afiação fez o serviço.

           Foi à única vez que o viram chorar. Buscaram as fichas dele em todas as repartições, em toda América latina, na China e até na Rússia dos Czares. Nada. Serafim tinha a ficha limpa. Não era guerrilheiro. Nem miliciano. Nem traficante.

 O soltaram. Mas as marcas ficaram.

          O lábio superior foi cortado rente ao nariz. O inferior perto do queixo. Não podia usar barba nem bigode. Piada triste eu sei. É para quebrar o gelo. Só sei contar história assim. Amenizando.  Apaziguando meus instintos. O  euphémein em grego virou eufemismo.

        Mas bola para frente que atrás tem gente. Resolveu assim mesmo ser feliz. O sorriso era possível, estava acostumado a andar para um lado e para o outro mesmo se o coração chorasse. Por mais que tentasse ficar sério, mesmo se fosse um Dom Casmurro, não conseguiria, pois sem os lábios os dentes ficavam a mostra, no quaradouro. Evitava olhar-se no espelho pelo menos ao acordar quando a melancolia o tomava e fechava os olhos, para evitar ver-se sorrindo e babando, babando e sorrindo.

         Deus meu, que pulha! Acordar assim sorrindo sem motivo,  andar por aí, ao léu. Isso é muito irritante. Mas logo pensa  nos que não tiveram  a mesma sorte, desapareceram como fumaça e a família procura os ossos sem esperança. Não acharam os restos mortais. Não tiveram um enterro justo, como manda o figurino: Um velório, o corpo, choro nem que seja de carpideiras, uma solenidade, orações, uma cruz mesmo de madeira podre, as feridas ainda abertas como cancros incuráveis.

       Ele se conformava por isso. Pelas histórias dos outros. Logo ele que não tinha coragem de matar nem um inseto tipo Gregor Samsa, quando acordou certa manhã.

       Abriu os olhos ao espelho.  Os dentes alvos e grandes. A gengiva hígida. Disse-lhe o dentista um dia: O sorriso é o cartão de visitas. Mas não assim permanente.  Assim parecia uma máscara. Seria ele um monstro que nem podia beijar? Outros  vivem cheios de  mulheres. Muitas vezes quando volta à noitinha vê pelos parques e jardins casais se beijando, eles se limitam ao prazer intenso do ósculo. Ele não.  Como beijar sem os lábios? Só se fosse à mordidas lacerantes, mas, todas fugiriam dele.

         Voltou a fechar os olhos.  Bom, tenho que trabalhar; economizar bastante para realizar o meu sonho. Até lá vou empurrando a vida assim desse jeito. O tempo passará de qualquer jeito. Salta da cama, tenho que ir, a fome não espera, ela nos engole sem dó. Ia sobrevivendo. Fazia serviços gerais. Não tinha preguiça com ele. Limpava quintal, fossas, capinava, e todo tipo de serviços próprios para máquinas. Nem animais conseguiriam. Sempre quando voltava de algum serviço, mesmo exausto, o chamavam na rua. Ele atendia de pronto.

          Na maioria das vezes em gracejos:

“Seu Serafim cuidado com os home hem! Eles estão de olho! Se te pegarem agora  vão tirar todos seus dentes!”. 

        Ele abanava a mão em frente à cara suja como espantasse mosquitos e gargalhava contente. Sua gargalhada parecia àqueles brinquedos de cordas, rouca e borbulhante, o que fazia muitas vezes as crianças assustar-se. Os adultos não. Riam dele até dá dor de barriga.

        -Não liga filho! É o Serafim!

        Muitas vezes era toda uma família que vinham da missa de domingo, com as melhores roupas, os melhores perfumes, corados, saudáveis.  E divertiam sobremaneira.  

        A reposta as pilhérias eram inaudíveis. 

         Tente falar sem os lábios meus caros que vão entender o que estou falando. As palavras saíam sem consoantes e eles caiam nas gargalhadas. Ele também parecia divertir-se. Embora os olhos enchessem de lágrimas.

         Quando rimos desencadeamos uma reação no sistema límbico, região do cérebro que controla as emoções ou o conjunto de nervos que liga a mandíbula às glândulas salivares acaba estimulando a glândula lacrimal. Estava escrito no livro de ciências. Deve ser isso o motivo do seu riso. Um dos muitos livros que ele achou jogado no lixo.

         Compreendeu. Por isso choramos quando rimos muito.

         Um palhaço dos bons, diziam-lhe batendo em suas costas. Um pulha! Gritava outro.

        Depois disso ele seguia seu caminho. Era o que podia fazer por hora. Ia vivendo de um canto a outro sem fazer mal a ninguém.

          Mas em surdina ele juntava todo o dinheiro que ganhava para realizar o sonho de sua vida. Anos e anos.
Foi no natal.

        Olhou para o relógio. Em fim chegou o dia!  Eram cinco para a meia noite e dava apenas para ele sair correndo com o saco nas costas e todas as traquitanas que levava no seu interior. Estaria preparado? Na rua, viu todos os festejos, as luzes brilhando de todas as cores e tamanhos; talvez tudo fosse diferente. Sim, mas seria inimaginável sentir tristeza aquela data que tanto lembrava sua terra natal seu jardim de infância.

        Bom, não era hora de pensar noutras coisas, teria que ter foco no que ia fazer para não ocorrer nenhum erro. Tinha treinado algum tempo, o tiro deveria ser certeiro, justamente no coração das pessoas.

        Escolheu essa data, pois segundo ele os corações estariam moles, ele repetia como um mantra. “Estão oles!”. A falta dos malditos lábios.

         Quando deu meia noite, o sino da torre completou as doze badaladas e as pessoas desejavam feliz natal, ele saiu do beco escuro  com o saco nas costas, e foi distribuindo flores e presentes a quem passava, saltando, sorrindo e chorando.

              De início as pessoas ficaram perplexas, sem ação, mas depois foram aceitando de bom grado.

             Esse dia ninguém soltou pilhérias com ele. Com certeza foi o dia mais feliz de sua vida. Ele quis desejar feliz natal, mas não conseguia.
            Serafim ficou envergonhado ao ouvir a sua voz, as palavras faltando sílabas, ouviam-se bem as vogais semelhantes um gato miando no telhado, ecoando em volta, coisas sem sentido e nexo.

       Essa noite ele dormiu tão bem que não notou a chuva cair até pela manhã quando os pingos vindos da janela o acordaram. Estava satisfeito. Tomou o café rápido e saiu para a rua.

      A rua estava cheia de crianças pelos passeios e praças brincando com os brinquedos de natal. Ele passou ao largo.

     Alguém o chamou. Está sabendo da última, disse-lhe.

        Alguém da sociedade local, homem poderoso, resolveu pedir aos mandatários, veja você mesmo no papel: que não era possível vê tanta felicidade, naquela cara repugnante, uma coisa horrível de se ver, andando por ali, nas praças e ruas, assustando as nossas crianças. E pedia encarecidamente em nome da população, que em plebiscito resolvesse a questão, questionando os honoráveis cidadãos, dizia o ofício assinado e datado por muitos, para responderem sucintamente, sem embromação, se sim ou não,  a obrigatoriedade do uso para Seu Serafim, de uma máscara para encobrir o terrível aleijão. Que não era possível cruzar com ele  andando daquele jeito com a boca escancarada cheia  de dente e babando pelos passeios e praças públicas de nossa  bela cidade. Estava espantando os turistas. E fazia por fim uma observação: Muitas vezes dava dó, mas na maioria das vezes dava nojo.

        Serafim leu tudo aquilo sem dizer uma palavra.

         A população não se furtou ao pedido e na câmara, houve grandes debates. No final ganhou o sim. Sim a partir daquela data, Seu Serafim, seria obrigado, com risco de multa ou prisão  em locais públicos a esconder de qualquer forma seu sorriso, usando para tal, dizia por último o ofício: qualquer coisa, mesmo  um lenço daqueles que os bandoleiros usavam para assaltar no velho oeste.

      Na segunda feira bem cedo o oficial levou a resolução.

       Vale dizer aqui que Serafim era homem culto. E em suas andanças recolheu a maioria dos livros que mantinha em sua biblioteca. Gostava de lê a maioria dos filósofos. De Nietzsche repudiou seu niilismo. Ele acreditava que tudo tinha sentido, principalmente a existência humana. Ria das idéias dele a respeito de Deus. Como Santo Agostinho, ele achava que era um predestinado.
Com  David Hume aprendeu que a razão seria o alicerce da sociedade.
 São Tomás de Aquino com sua ética e metafísica e teorizando como a realidade é constituída.
Georg Hegel com a fenomenologia do espírito, suas idéias de explicar o mundo real.
Com Descartes aprendeu a frase que pensava as noites de solidão: Penso, logo existo. Sobre Platão uma nota num canto, talvez para lembrá-lo.  Lê mais minuciosamente esse filósofo.
Kant estava ali pregado no muro. Tinha grifado a proposição de um princípio universal que não causasse danos para as outras pessoas.
Aristóteles, numa espécie de redoma, protegido dos mosquitos que rondavam o ambiente.

       Ele dizia que lia tudo, até bula de remédios.

       Além de todos esses autores tinha um bem atual, datava de mil novecentos e quarenta e sete. A capa tinha sido arrancada, aliás, não dava para advinha-lo um livro, a não ser pelo texto comum em todos: Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. Proibida a venda desta edição em Portugal e resto da Europa.
 O autor começava com a letra  O e o sobrenome era  Carvalho. As folhas que foram encontradas não davam pistas. Estavam numa lata grande, onde estava escrito: manteiga natural e sem sal, que Serafim usava como sanitário. Páginas estas todas sujas de excrementos. Ele usou para limpar-se.
        
        Mas isso não tira o mérito do escritor. É só objeto encontrado na cena onde se fez a perícia para entender o que acontecera. Cada um tem suas funções. Seria honra de ter uma  de suas páginas usadas em tão relevante fim?
             Serafim, lia nesse interlúdio de ócio, além desses livros técnicos, também a Commedia dell'Arte. Nada melhor para esquecer a realidade que ele vivia.  O que o fez se apaixonar  por esses personagens principalmente, Colombina, seu amor platônico.

            Quando veio a ordem de esconder-se atrás de uma máscara ele logo escolheu que seria o Arlequim. Pela sua leveza. Pela sua paixão.

               Assim correu numa loja dessas onde se vende de tudo e comprou a máscara, e passou a usá-la diariamente. Todos gostaram. Melhor assim, disseram: E ia ele pra baixo e para cima sorrindo da vida que levava.

             Mas o tempo é senhor da razão, da ferrugem, da rotina, das rugas...

              Assim os mesmos cidadãos disseram: não dá, disseram. Aquela cara sempre sorridente dava nos nervos. É preciso mudanças.
Que escolha outra.

          O que fazer pensou Serafim para agradar a todos?

          E correu a loja o mais depressa possível. Pierrô. Agora seria o pierrô, amante de Colombina.

         Logo disseram: Isso é bom! Tudo resolvido! Pierrô está bem! “a tristeza é razoável, já a felicidade fere como faca”. A tristeza une pela infelicidade. Esse está bom. Assim não nos fere com sua alegria, diziam.

        Assim mataram o Arlequim, mas Serafim encontrou forças para divertir as crianças na rua. E se divertia ainda.

       Só à noite, ao voltar para casa, todo o dia mirava-se no espelho e via aquela lágrima caindo silenciosa e foi entristecendo-se.

       Sempre quando estou contando essa história e chego aqui, desculpe, minha voz embarga, pois me lembro dos textos daqueles livros saltando em negrito e do sorriso dele, a bondade, me dá um nó aqui...

          Encontrei-o ali, naquela árvore, pendurado numa corda, enforcado.
         O bilhete dizia: Eu só queria ser feliz!