quinta-feira, 9 de maio de 2019

Aleatório









                                   Aleatório



          Já contei das minhas andanças. Gosto de andar por aí nesse mundo de Deus. Não coleciono fotos nem postais ou qualquer outra coisa dessa ordem. O que importa para mim são as pessoas. Coleciono pessoas.  

          Nesse dia fui a um enterro de um conhecido. É  quando perdemos amigos que pensamos na morte. Ela se aproxima nessas horas, toma café conosco, até dorme na mesma cama, para de manhã, com o brilho do sol entrando pela janela esquecermos outra vez.

          Estava assim meio sorumbático, observando o trabalho do coveiro, um trabalho meticuloso  lacrando a tumba, tapando todas as frestas, ajeitando as flores, jogando a última pá de terra, colocando a argamassa, alisando-a com a colher num trabalho perfeito.

          Seu nome vim saber depois, era Sebastião mas conhecido por Tatão coveiro, veio do nordeste, com a cara e a coragem disse-me.

          Quando cheguei aqui, dissera ele, corri todos os cantos dessa cidade como um louco, para arrumar um trabalho e foi aqui nesse cemitério que me acolheram.

          O trabalho era simples disse o encarregado da prefeitura. Devia entender um pouco de alvenaria e carpintaria e o principal era ter aquela coisa nobre perseguida pelos escritores:

           Muita discrição, descrição, ação, humildade, poucos adjetivos, o mínimo de advérbios, olhar baixo e nunca, mais nunca mesmo demonstrar sentimentos.

          Observei que com todo escândalo que a viúva fez, ele ficou calado, fazendo seu trabalho, misturando a massa lentamente deixando dá o ponto, ou colocando mais terra ou mais água,sabia que os gritos aumentariam, quando se coloca a última pá, última massa, a última frase...Era sempre assim.

          A viúva em prantos gritava para todos ouvir, que o mundo era injusto, que só morrem os bons, bom pai, trabalhador, honesto...

          Deu vontade de ri.  Não dessa cena. Meu amigo era homem bom mesmo. Lembrei da piada do advogado que morreu e a mulher fazia esse mesmo discurso quando um bêbado disse:

          -Uai! Acho que errei de velório?Aqui é o velório do Doutor Alcebíades?

          -Sim respondeu a viúva chorosa! Ele mesmo! Um grande homem!

          - Pelo que a senhora falou aqui jaz um santo! E o Alcebíades que eu conheci, era um puteiro de marca maior! Não faltava uma tarde no baile da Soninha! O baile dos casados!

          Piadas a parte depois do serviço feito ele foi tomar um café e a viúva ainda ficou em seus prantos.
Eu o segui. Ele atravessou as alamedas. Era sua paisagem de todo dia. Cruzes, choro...

          Ofereceu-me um café que eu prontamente aceitei.

          -Coitada daquela senhora. É sua parenta? Ele perguntou.

 Talvez para dá uma opinião sem risco de me ofender.

          -Não eu disse. O morto é que era meu  amigo.
Ele tomou um gole de café.

          -Ela não entende que dessa forma é melhor. A vida é bela por isso! Nossa existência é um jogo.

          -O que?

          - A forma como somos escolhidos...

          -Escolhidos?

          -Para morrer...

          -Ah!

          -Eu acredito que a existência é um jogo onde as cartas são retiradas aleatoriamente. Não quero dizer com isso a não existência de Deus. Nunca! Jamais! Só quero dizer que se as escolhas não fosse assim não haveria justiça, entendeu?

          -Não, eu disse secamente.

Quase perguntei a ele se por acaso ele já viu algum espírito, algo diferente sair daquelas tumbas... mas achei inconveniente. Afinal o espírito deve ser invisível creio eu.
Ele continuou.

          -São mais de cinqüenta anos nesse ofício e nunca vi ninguém sair daqui... Nada... Só o silêncio impera aqui...
Ele acabou me respondendo sem querer.

           - Imaginamos isso porque achamos que a vida é um prêmio, e que viver até os cem anos é prêmio máximo.

          -Mas a vida é bela eu disse.

          -Mas, e se a vida não é prêmio e sim um pagamento de pena? Observou? Muda tudo? Todo o conceito entendeu?  Toda criança quando nasce chora não é? Não seria o recado de que viemos sem querer? Como disse o velho Sócrates: vida é doença, vida é mal que se cura com a morte.

Admirei-me com seu linguajar. Olhei sobre seu ombro e vi uma pilha de livros todos sem capas. Não dava para saber os autores.

          -Não é difícil imaginar o que eu faço na minha hora de descanso não é? Leio. Leio muito.

          -Estou vendo!

Deu vontade de perguntar se tinha lido algo meu. Não perguntei.

          -Todos os dias nascem milhares de seres e morrem outros. É um ciclo. Agora imagine que lá na chefia celestial, a morte, aquela donzela que a imaginamos de túnica negra com capuz e foice na mão, com um bloco na mão todos os dias escolhendo quem vai morrer, riscando o nome um a um. Como seriam essas escolhas, as justificativas? Seria totalmente imparcial? Se fosse assim era fácil ser corrompida, receber propinas... Essas coisas. Se fosse dessa maneira era fácil explicar as pessoas que escuto aqui todo aos prantos:

          -Por que morreu tão jovem, na flor da idade, porque não escolheu um velho qualquer? Ou aquele outro já está na hora de levá-lo, pois, já se encontra doente há vários dias ou Vou levar esse por ser um assassino frio, ou levar aquele por não ter ninguém...
Veja você que se fosse assim os ricos e poderosos viveriam mais... Poderiam corromper, dá propinas, agradar...
Mas, minhas leituras me levaram a crê, vou contar aqui um segredo, as escolhas já não são feitas dessa forma. Desde que Sísifo enganou a morte acorrentando-a e colocando-a numa coleira  conseguindo ludibriá-la, desde esse dia que ela mudou o modo de escolha. Agora é de uma maneira totalmente simples e nem um pouco original. Não tenho dúvidas quanto a isto.

          -Como é feito tal escolha, perguntei incrédulo.

          -Independente do que façamos, a escolha é aleatória. Não tem oração, nem propina. Nada.

          -Como assim, perguntei perplexo.

          -Uma loteria. A forma mais honesta de escolha. Ela vai tirando bola por bola. E aceitar isso nos torna mais leves. E como disse no início, com um pouco de sorte nos livramos mais rápido de nossa pena.

          Dito isso, saiu para enterrar mais um.

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