sábado, 8 de outubro de 2011

A ilha das crianças perdidas

          Nem parecia o dia que ia mudar minha vida. De madrugada minha mãe levantou como sempre fazia, ia para o trabalho, meu pai não aparecera esta noite, devia estar socado em algum boteco da vida. Ela foi dizendo que já ia, que quando me levantasse alimentasse o Pedro, meu irmão menor, que tomasse café e escovasse os dentes, e quem tomará conta de mim, pensei, ainda olhou-se no espelho pregado na parede de tijolos aparentes. Era bonita. Tá mãe eu disse, abrindo os olhos com preguiça, uma aranha tece sua teia entre o caibro e a telha de amianto. Ainda me disse, Ah! Faz os deveres de casa também e estuda um pouco. Disse novamente tá mãe, e virei para a parede bocejando. Na parede pintada de cal branca pendurada, uma traça. Um beijo molha minha face.

          A mãe fecha a porta atrás de si, puxando o véu negro da noite. Os passos, chuva que vai parando. Tenho ainda tempo para dormir. Para continuar o sonho. Espanto uma nuvem de pernilongos que me sugara a noite toda. Relembro o sonho. Montado em um cavalo alazão, correndo pelas planícies, de uma terra desconhecida e distante. Deve ser a terra dos meninos felizes. Acordei com o chamado da mãe.

          Pedro faz barulho sugando e estalando a língua. Engraçado até. Ele ri. Faz isso quando está com fome. Pego a mamadeira de dentro da água morna, e com zelo sem acordá-lo enfio em sua boca. Ele suga quase sorrindo.

          O tic e tac do relógio em cima do criado, cinco e meia, decido dormir mais um pouco. Uma malha a mais a aranha teceu. A traça tinha saído e andava lentamente sem cair da parede. Uma edifica a outra destrói. Galos cantavam.

          Acordei com o sol quente por cima da telha, coando os raios pelos buracos como funis amarelos. Nas réstias voavam partículas minúsculas clareando pontos no chão de terra batida. Vozes de crianças na rua. 

          Pedro levantou-se, olhou em volta, pegou o bico e colocara na boca deixando pendurado um velho pano. Gostava de sentir o cheiro. Abre a porta. Uma lufada de luz invade o pequeno barraco. Fecho os olhos para não cegá-los. “Fica aí! Não vai para a rua, gritei”. Levantei sem escovar os dentes. Fiz os deveres, correndo. Da rua a claridade do sol, muita vida lá fora. O céu universalmente azul, sem nuvens, mostrando sua imensidão. Urubus circulavam. Pedro atento às evoluções.

          Felício... Pausa. Sorri com a língua entre o bico e o lábio. Quê? Perguntei. Queria voar disse ele, como se fosse a coisa mais fácil do mundo. Deve ser tão bom.

          Meninos no passeio brincam de amarelinha. Pego-o pela mão encosto a porta, sentamos no meio fio, à sombra. O menino pula a casa, riscada com giz no chão, já está perto do céu. Pula em um só pé, sem perder o equilíbrio. Passara do purgatório. Súbito uma frenagem brusca. Gritos de socorro. 

          -Deus! É Pedro! Peeedro! 

          Vizinhos acodem. Mil cabeças emergem nas janelas. Respiram aliviados, não são seus filhos. Gritos de dor e de espanto. O tempo uma eternidade. A ambulância chega. Ao pegarem meu irmão, deixaram cair o pano sujo de sangue. 

          Tento recordar como tudo aconteceu. É um turbilhão em minha cabeça. Só sei que aquele céu azul indecifrável, aquele sol morno, toda aquela natureza viva em volta não era capaz de satisfazer-me. Era como um quadro colorido na parede. Abstrato. Frio. Indelicado até. Não que eu não gostasse de arte. Mas a beleza também é cruel. Cheia de regras. A beleza é insaciável. Sempre quer mais. E tudo depende dos olhos de quem a veem. 

          À noite meus pais chegaram do hospital. Queriam saber de tudo. Mas nem eu sei como aconteceu. “Eu tava perto dele quando ele correu para o outro lado”. “Foi muito rápido!” Meu pai gritava, fedia a bebida. Virei a cara para não senti aquele cheiro horrendo. Foi aí que me deu um tapa.

          -Era sua obrigação caralho! Gritava encolerizado.

          Protejo-me com os braços magros. Tomo um chute e caio. Depois outro e outro. Quando estou no chão ainda tento explicá-lo: “Não foi minha culpa!” Ele pisa em mim, como se eu fosse uma barata. Tudo me dói. As costelas, a cabeça... “Tudo passa eu sei. Pedro não vai morrer. Morrer, que palavra feia. Morte! Morte! Morte! Desaparecer. Finar-se.
Uma grande fila. Que pensamento bobo meu Deus. “Sendo destroçado e pensando na grande fila que todos estamos, só esperando o ano, o mês, o dia e a hora determinada”. Eles gostam de mim. É excesso de cuidado. De zelo. Vou melhora. Prometo. “ Santo anjo do senhor meu zeloso guardador”... Rezei. Vou estudar mais. Preciso melhorar minhas notas. Tenho chance. O padre falou que meus pecados eram pequenos, e me mandou rezar dez padres nosso e três aves Maria.

          Mas não contei meu pecado mais grave. Conto agora. Sim. Desejei a morte dele. Do meu pai. Todas as vezes que ele me batia como agora. Ele judia muito de nós, de minha mãe, quando bebe. Um dia sem beber ele me deu um beijo. Como o de Judas. Ainda falou que gostava de mim. Que queria me fazer um homem de bem. Só se for do jeito dele. Um dia pensei em matá-lo. Quando ele pisou no pescoço da mãe. Mas não quero pensar nisso não.


          Mas a vida não era só infelicidade, não. Naquele dia como agora vai acontecer. Eu sei. Sinto que vai acontecer. É meu truque. Maravilhoso. Que eu acreditava só existir nos contos de fadas. Nem merecimento eu tinha. Não sou nenhum príncipe. Nem anjo. Teve até um tempo, um ano atrás mais ou menos que era muito mau; era conhecido como verdadeiro exterminador de passarinhos. Sem dó. Saía pela manhã, foi bem antes de Pedro nascer, e voltava da mata com o embornal lotado de rolinhas. Era para sobreviver eu sei. Vendia para o dono do boteco, lá no pé do morro. Seus fregueses gostavam, dizia.

          Depois que aprendi o truque parei. Toda criança aprende algum truque. Conheci alguns que engrossavam sua a pele como casca de árvore, para não sentir os toques libidinosos dos pais. Mas como eu ia contando, senti um frio nos braços. Depois uma febre repentina. Pensei que fossem catapora, aquelas bolhas se rompendo, eu escondido no fundo da rede, com vergonha da minha cara. Mas já tive disse mamãe. 

          Então vi que eram penugens saindo dos poros. E rápido se alongaram. Observando bem eram penas. No início pensei que era sonho, até belisquei-me. Não tinha aquele pressentimento de que ia acordar-me. 

          Saí para o quintal e alonguei os braços. Indubitavelmente eram asas. Enorme. E foi aquela noite que fiz meu primeiro voo. A perspectiva dos pássaros é linda. Muito ampla lá de cima. Primeiro bati os braços fraco. Receoso. Vigoroso depois. Que bom! Podia voar. Que liberdade. Dei rasantes arriscados. Quase tocando o chão.

          Hoje iria mais longe com certeza. Ódio do meu pai. E agora me sinto mais seguro. As vertigens sumiram. Não tenho mais medo de altura. Levantei-me e abri a janela. A brisa tocou meu peito emplumado. Joguei-me. Seguro. Subindo. Deixei o litoral para trás. Uma grande massa azul e liquida. Era o mar. Cheio de corais. Os rasos e os fundos o coloria. As gaivotas voando. As estrelas pontos de luz.

          Não sei quanto tempo voei. Uma pequena ilha apareceu. Que bom. Poderia pousar ali. Achava-me exausto. Quando aproximei vi que a ilha tava como um pequeno torrão de açúcar rodeado de mosquitos. Eram todos iguais a mim. Fiquei os observando. Todos faziam um planeio desciam retos e tocavam os pés pousando no chão. Para voar corriam em um platô e se jogavam no vazio.

          Aproximei-me desconfiado. Acenaram-me. Estavam tendo aula de voo. Voar é uma arte. Todos gritavam em uníssono: Decolar é opcional, mas pousar é obrigatório. E riam.
Um que parecia o líder falou:

          -Hoje vamos fazer a grande viagem em direção sul.
          “Todos aplaudiam batendo as asas, claro”.
          -Você! Chamou-me.
          -Treine o voo, pois na viagem que faremos enfrentaremos muito perigo. Já que está começando hoje, temos que dá várias dicas. 

          Levou-me ao platô. Corri e me joguei. Um frio na barriga. Bati as asas com força. “ Eles não sabiam que há dias vinha treinando.”

          -Suba! Suba! Gritou o líder. Eu subi o mais alto que pude. Dei um rasante. Fechei as asas, para cortar o atrito e desci vertiginosamente. Quase toquei o mar.
          -Bravo! Aplaudiram.
          -Agora como os beija-flores! Parados no ar. E aprendi várias manobras.

          Fomos deitar que no outro dia bem cedo iríamos viajar. Não consegui dormir de tão eufórico. Não é todo dia que se pode voar. Fiquei olhando minhas asas. Eram longas e esguias. Como pombo. Eram brancas. Na entrada da caverna, o anoitecer, o sol vermelho, e a imagem de milhares de aves chegando ao pôr do sol.

          Não era uma ilha comum. Era uma grande pedreira, escarpada, e do lado mais alto, onde as ondas se quebravam em estrondos, mil buracos nas pedras. Dali se via o mar alto, se perder de vista. E quando o vento trazia as ondas caudalosas, assoviava lobregamente. De manhã o sol esticou-se na superfície, trêmulo e brilhante uma hora amarelo outra prata.
Cedo o líder gritava. “Os novatos mais no centro. Todos entendidos.” Uma grande revoada começou. Parecia bando de andorinhas. Passamos sobre o morro. Os barracos eram quadrados minúsculos. Todos ainda dormindo. Senti saudade de Pedro. “Um dia o buscarei ”. Vontade de ir ao fim do mundo. Sempre sonhei em encontrá-lo. Quando perguntava a alguém onde papai Noel morava, falavam rindo: No fim do mundo! Um dia vou lá, pensava. Mas a liberdade é uma coisa engraçada. Lutamos contra tudo para tê-la, e quando a temos não sabemos usá-la. É como se estivéssemos à beira de um precipício. 

          Foi aí que soube que voar não era coisa fácil. Tem seus estudo e suas experiências. Mesmo tendo minha envergadura. Aprendi porque os iniciantes ficavam atrás. Quando via os patos selvagens voando perguntava: Porque alguns vão atrás? Agora sei. A batida das asas de quem está na frente gera uma corrente de ar que impele para cima a turma de trás.
Aprendi muita coisa. Estávamos voando há dias. Exaustos o líder nos chamou, para aproveitarmos as colunas de ar quente – as correntes ascendentes – e ganhamos altura, voando em círculos a centenas de metros de altura. Não precisávamos bater asa. Era só planar. Agora compreendia os urubus. 

          À noite guiávamos pelas constelações. O cruzeiro do sul. E sempre há estrelas no céu. De dia o sol nos ajudava. Também seguíamos as formações rochosas, os arquipélagos, as matas, os rios.

          Certa manhã, chegamos numa estranha ilha. Parecia deserta. Habitadas por plantas que falavam. Tinha de todas as idades. As cascas de seus caules eram grossas. Depois soubemos que eram crianças metamorfoseadas para se defenderem das caricias libidinosas que os seus pais faziam. Passamos a noite aí quando descobrimos o quanto eram amáveis.
Seguimos viagem dois dias depois de recuperarmos as forças. Voar gasta muita energia. Tudo tranquilo. O sol fresco, as montanhas já a víamos ao longe quando veio uma tempestade e um grande vendaval. Tentávamos manter a rota, mas o vento de través é muito perigoso. Pousamos na ilha depois de muitas tentativas. Aprendi como a cauda é importante no pouso.
Era a ilha dos meninos encantadores de ventos. Eles queriam nos derrubar. Pensavam que eram os grandes gaviões. E aí fiquei com medo. Os gaviões são predadores ferozes. Senti falta de ar. Uma voz como a da minha mãe, implorando para que eu voltasse. Logo quando eles souberam quem éramos, tranquilizaram os ventos. Mas nem eu sabia quem era. Se pássaros ou se anjos. O céu ficou claro, sem nuvens. Só o cheiro de sal e peixe. Gritos de gaivotas ao longe.

          Quando saímos no fim daquele dia, nem imaginávamos o que iríamos encontrar pela frente. Via os rios, pequenos filetes escuros, varizes da minha mãe, contornando as montanhas, no meio das matas, as nuvens pequenos nacos de algodão, se doce encheria a barriga. Súbito uma nuvem escura. Olhei em volta todos voavam assustados fugindo de um grande falcão. Voamos o mais depressa que podemos. Sabia que ele era muito veloz, em caça, quando mergulha alcançam uma velocidade vertiginosa. No meio de muitos ele me escolheu, talvez achando que eu era o mais inexperiente. Eles conhecem. Seus olhos veem de longe. Teria que usar toda minha astúcia e treinamento. Fechei as asas num mergulho. 

          Abandonei-me a força da gravidade. Ele atrás com os olhos cinzentos. Lembrei-me da aula de física. Quando ele parecia que ia me alcançar abri as asas aumentando o atrito com o ar, e ele passou batido com suas garras afiadas. Deu a volta. Olho nos olhos. Era meu pai. Os olhos negros tinha um brilho diabólico. “ Vou te pegar, malandro!” Voei rasante, penetrando na floresta. Voava da direita para a esquerda, de cima para baixo, como um pêndulo. Era minha chance. Pequena eu sabia.

          Meu pai tinha verdadeiras garras. Machucou minha mãe, meu irmão e eu. Teria que ludibriá-lo. Voei o mais depressa que pude e quando parecia que ia chocar-me numa árvore, no último segundo mudei de proa e o grande falcão, de garras terríveis, olhos sombrios, bateu o peito numa lasca de árvore e caiu por terra, ferido de morte.

          Não olhei para trás nenhum momento. Não valia a pena. Juntei-me aos outros na viagem para o sul, agora mais perto, já víamos as pradarias, as planícies, e uma voz longe me gritava: “Volta Felício, volta!” Por segundo pensei em voltar. Por minha mãe e meu irmão. “ Volta Felício pelo amor de Deus!”

          Depois olhei as pradarias, o sol nascendo... Uma grande ilha. “Não! Deixa-me viver aqui. Se sonho não quero acordar. Se vida, viverei aqui na ilha dos meninos perdidos.” Bati as asas mais fortes. 
          “Aqui serei feliz.”











terça-feira, 27 de setembro de 2011

O Poeta



Senhor redator do excelente... Não. Senhor redator do conceituado jornal a gazeta de... Tomei a liberdade de escrevê-lo... Acredito que o senhor não me conheça. Sou uma dessas pessoas comuns que preferem sonhar a viver... Não quero tomar seu tempo creio seja precioso... Assim sem mais delongas a finalidade é que mando uma poesia, com estilo, pureza e amor. Peço o favor se possível colocá-la num canto nem que seja na seção de desaparecidos para que os versos encontre talvez um coração aberto, entre tanta violência, no langor do dia que se finda.

Leia com cuidado e dedicação, pois só agora depois de meio século resolvi mostrá-las. Não serão jamais perfeitas como “O corvo” nem dilacerantes como Drummond, nem tão emotivas como Pessoa, mas o meio termo uma coisa como entre a tempestade e a calmaria, entre o amor e ódio entre a vida e morte. Soará como o sino nos dias de finado, na canção de esponsais ou no réquiem para os mortos. Rompendo todas as amarras, depois de todas as emoções defraudadas, varando matas, desertos de inquietações.

Alberto alongou-se na cadeira se espreguiçando, enquanto calculava que a missiva sendo emitida ao destinatário nessa mesma quarta, talvez no domingo ou mais tardar na segunda ela já estaria publicada por sorte e se Deus quisesse num recanto nobre do jornal, naquela página que ao abrirmos, damos um tempo na velha rotina de notícias trágicas, adentrando num oásis, com palavras cruzadas e versos em um momento lúdico.

Cuidadosamente, passou a língua úmida na parte autocolante e apertou uma página na outra fechou com a ponta dos dedos. Lacrada pensou. Não tem mais volta. Tomou uma xícara de café, saboreou-a e já calculava a emoção que ia distribuir com os leitores, que a partir dali, a poesia impressa, esperariam os dias seguintes ávidos por novidades.

Não almoçou aquele dia, de tanta ansiedade. Pegou o velho guarda chuva e ouvindo os pingos no tecido esticado caminhou pelas ruas desertas. Passou na padaria pegou dois pães. Morava só. Ele e o cachorro, um pequinês preto. Um fazia companhia para o outro.

Era ele primeiro que ouvia suas poesias. Na verdade o único, pois sempre teve vergonha de mostrar para os outros. Quando lia, o coração disparava, suava frio, com tanta emoção, e pensando que jamais se mostraria daquela maneira, se um dia, ficaria refém de todos.

E assim os versos eram guardados depois numa prancheta preta que agora virara com os anos um grande calhamaço marcado no frontispício com a frase: Proíbo-os terminantemente de publicarem qualquer dessas coisas, depois de minha morte. Talvez se lembrando de Kafka que foi traído pelo amigo, e foi publicado indiscriminadamente, e mostrado a população todo seu interior por assim dizer, suas vísceras. Não queria correr esse risco. Se, deveria ser em vida, recebendo todas as distinções que lhe seriam devidas, como a fama, dinheiro, mulheres e principalmente o reconhecimento que é o que todos almejam.

Por isso resolveu escrever para o jornal. Era um jornal pequeno da cidade do mesmo porte, mas com sorte, tomaria forma, e com o tempo, galgando degrau por degrau, alcançaria os grandes.

Voltou de tardinha, quando os galos vão aos poleiros, e vira a lua nascer e todas as estrelas. Lembrou-se que, “certa hora da tarde era mais perigosa”, escrevera Clarice. Por onde passava desejava boa noite aos transeuntes, um dia me reconhecerão e não terão essa frieza, mas uma dor o sufocava no peito. Seria publicado? Gostariam dele? De sua arte? E essa pequena preocupação ia crescendo em seu coração como erva daninha. Tenho que me preparar, pensava. Os escritores que conhecia tinha nas fisionomias o que escreveram ou escreviam. Era como o retrato de seus sentimentos.

E ele era singular. Uma testa curta, sobrancelhas largas, o que fazia ter a cara triste, de abandono, os dentes separados, calvo, olhos castanhos, comuns, e pelos por todo o corpo como o parente mais próximo os orangotangos. Só a voz era macia, romântica até, e isso fez um dia passar por constrangimento.
Atendeu ao telefone, uma voz de mulher, carente querendo alguma informação. E da informação, ela falara depois que tudo foi culpa daquela voz pastosa, sensual e de telefonema em telefonema, decidiram se conhecerem e afinal partiram para um encontro. Quando frente a frente, a mulher, o rosto encovado, daquelas de olhos sonhadoras, cabelos partidos ao meio, os braços sem cor, os olhos amendoados, ao vê-lo, mudaram de direção, envergonhados, e o que saiu fora essa frase que jamais esquecera: “ Não foi o que eu esperava!” A voz... Não condiz com o dono. E sem mais, se despediram.

Nunca o fim de semana fora tão longo. No domingo levantou-se cedo foi à missa das sete, passou pelo jornaleiro, fitou a capa dos livros, um poderia ser o seu, pagou o jornal, leu as manchetes, se torcesse sairia sangue com tanta violência, e leu o horóscopo. Câncer: de 21 de junho a 22 de julho. Combata o nervosismo com exercícios e meditação. Boas notícias vindas à semana que entra. O mistério de uma semente que permanece quieta e crescendo sob a terra, (mas que guarda uma promessa de futuro para o amanhã) está contido no simbolismo de Câncer, que consegue visualizar o que ainda não aconteceu. Essa visão do invisível, esse poder de imaginar e a retenção da memória caracterizam este signo de sensibilidade, impressionável e instável nas emoções como as fases da Lua, o astro que preside Câncer.

O universo está ao meu favor pensou. Agora é só me concentrar no que eu quero, e pensando assim sentiu uma grande liberdade, uma vontade de gritar coisas que estavam sufocadas há anos, caminhou na penumbra, via a sombra de um grande escritor, o sol as costas, fazendo se alongar no piso de asfalto escuro.
Quando abriu a porta o pequeno cachorro latiu o desconhecendo, mas depois do assovio, balançou a cauda benevolente. Jogou o jornal sobre a mesa, colocou ração no prato e empurrou com o pé para debaixo da mesa. Bidu raspou o prato. Depois ficou por ali ao seu redor. E as horas mortas se foram. Sabia que era hora. Alberto retirou do fundo da gaveta sua última criação, e declamou. Bidu sentou-se sobre as pernas traseiras e abanava o rabo com a língua para fora.

Os versos entrecortavam o silêncio da noite. Quando Alberto notava que aquilo poderia ser arte pura,agradar a quem lesse, arrepiava-se os pelos do pescoço. Ou engolia seco, imaginando os aplausos de todas as direções. Aplausos! Aplausos! Aplausos! Nessa hora ele ficava como um maestro com a batuta no ar, dando ritmo a orquestra.

Deitou-se mirando pela janela uma estrela. Sentiu-se como uma; pequeno na imensidão. O que somos? Qual nossa finalidade? Perguntava-se. Questões tão antigas e tão atuais no universo humano. Serenos são os animais que não tem tais questões para resolverem. Veja Bidu. Dormindo agora. Nada de preocupações. Amanhã acordará, comerá o que lhe der, depois correrá de um canto para o outro, e se por acaso encontrar uma fêmea, tentará sem custo seu gozo.

E a liberdade. O que afinal procuramos? Se o que precisamos para viver é tão pouco. Muitos vivem a vida toda num pequeno espaço, entre o trabalho e a casa, entre a casa e o trabalho, quietos, sem reclamação. Mas ai de quem os proibir a passar desses limites. Aí uma força bruta instiga a curiosidade latente, e aquele espaço já não é o bastante, quer mais e até quebrar esses limites, a partir daí se sentirão infelizes.

Eu mesmo, se não fosse essas leituras, esse sonho de vencer, de ser alguém na vida seria muito mais feliz. Não teria essa dor no peito, essa ânsia de ser reconhecido, do sucesso, seria um cidadão comum, que trabalha dia a dia, da casa para o trabalho e do trabalho para casa. Mas não, resolvi sonhar, talvez com a utopia, pois, além disso, há muita coisa para ser conquistado, um sorriso, um aplauso na mente humana.

Alberto acordou cedo, deu comida ao cachorro, riu dos pensamentos da noite, vá Bidu, procure uma amante, abrindo o portão, saindo os dois para a rua. Ele correu para a banca de jornal. Bidu o seguiu um pouco, cheirando a grama, uma esquina, marcando o território, quando viu uma cadela, correu atrás e ficaram se cheirando. Alberto riu novamente. Sentia-se mais leve, suas entranhas seriam mostradas, amiúde. Mas se o custo do sucesso fosse esse, que lhe dissecasse, todas suas fraquezas e sentimentos.

Nada. No jornal não tinha uma linha sequer de seu poema. A manchete era: Mãe abandona filho, recém-nascido no lixo. Conta os detalhes. Veio do norte, pobre, mora na favela, não conseguiria sustentá-lo. Lembra de uma vez que descobrira uma ninhada de ratos no porão de sua casa. Como cuidam bem de seus filhotes. Arriscam-se serem caçados pelos gatos, fogem das ratoeiras, descem por canos, para cuidarem dos filhotes. Não os abandonam assim. Só nas crises de alimento, aí tem menos filhotes.

Confirmou olhando todas as seções que não havia notícias boas. Porque somos assim? Preferimos as notícias más. Violência, violência... Na parte que falam das pessoas só falam coisas decadentes, maliciosas.

Escreve outra carta. Muda o tom. Mais áspera. Contundente. Para tocar o homem tem-se que usar das mesmas armas. Dos mesmos elementos. Faz uma poesia dramática, rima pus com luz, sangue com mangue, cidade com infelicidade, morte com corte, da navalha na carne com arte.

Esperou mais uma semana. Nada. A Manchete era: Bala perdida atinge menina que ia para a escola. Morena, gostava de ler, em sua mochila foram encontrados camisinhas e um livro de poesia.

Do livro não se falou mais nada, nem da poesia. Da menina que se chamava Maria, uns falaram que era uma desavergonhada. Tão nova levando na bolsa camisinha. Como se o amor fosse vulgar. Hipócritas! Hipócritas!
E se... Pensou longamente. Escrevera uma última carta. Fria. Monótona. Lera para Bidu. Ele balançou-lhe o rabo. Arrepiaram-se os cabelos. Pedras no caminho. Montanhas imóveis, duras, concretas, enormes.

Naquela manhã de domingo a manchete no jornal: “Homem suicida-se em seu pequeno quarto, na rua tal, quadra tal”. Continuava: Um solitário. Tendo como amigo um pequeno cachorro de nome Bidu. Com muita insistência é que conseguiram tirar o corpo, já pálido e duro, pendurado na corda, pois o velho amigo o protegia de todos que se aproximavam. Quando o levaram no rabecão, ouviu-se um uivo triste que fez
alguém exclamar: “Sente tanta dor como se fosse humano”.