quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

A sombra

                                  A sombra





          Angel, inquieto, observava as folhagens. O vento chacoalhava forte e levavam as folhas e as nuvens para longe. O dia claro. O céu límpido, de brigadeiro. Todas as manhãs ele era posto a brincar ao ar livre, cuidados da mãe, para crescer com saúde e bons ossos.  A mãe o tinha lavado, penteado e vestido.

          De modo que essa manhã corria de um lado para o outro, com um avião de papel cruzando mares e montanhas distantes. Os mares eram poças da chuva que caíra de madrugada. As montanhas um entulho de areia e pedra, restos de uma construção.
Parou no final. Olhou os paralelepípedos brilharem ao sol. Depois de observar um tempo talvez chegasse à seguinte conclusão: não era lá uma rua, porque tinha só quatro casas. A dele, azul com varanda e caixa de correio, a da viúva Dona Joaquina, com a goiabeira que servia de poleiro para os passarinhos, a de Celso, um sobrado imponente e frio e uma quarta recém construída novinha em folha.  Do lado direito, um terreno baldio.

          Angel estendeu o braço e jogou-o pela enésima vez: “com a força dos trovões”, gritou e observou admirado, o voo silencioso e acrobático da aeronave se aproximar do meu rumo, passar próximo da janela e depois de uma curva bonita no ar, pousar em perfeita aerodinâmica a seus pés.

          Ele, Angel estava excitadíssimo. Quem seriam os novos moradores, tentasse assim adivinhar?  Hoje usava cabelo de franja na testa, bermuda de linho cinza, camisa de marinheiro e uns sapatos pretos engraxados, até o brilho máximo.  Soube que apertavam-lhes os dedos, era do ano anterior, ele disse.
Pegou a aeronave e observou se havia algum dano. Nenhum.  As asas perfeitas, o bico incólume. O piloto ileso. Após uns segundos inertes, pareceu que notou algo admiravelmente estranho, pois andou de um lado par o outro.

          -Que incrível! Dissera. Aprendera essa palavra com seu pai, quando o homem pisou pela primeira vez na lua. E ele a repetia agora. –Incrível! Incrível! Tanta complexidade!
Analisou que a seus pés algo se mexia.  E o que fosse aquilo, o imitava descaradamente. Seriam extraterrestres que após o bisbilhotamento do homem a lua veio investigar-nos?

          Juntando-se essa nova, mais o ímpeto infantil, dizia-se dele hoje, sem dúvida nenhuma, uma espoleta só, no frenesi das mariposas em voo para a luz.
Nisso parou do outro lado, mais atento.

          Então, balançou o braço esquerdo e observou que a coisa também.  Depois o braço direito, as pernas e foi dificultando para desmascarar o imitador. Assim deram algumas cambalhotas e incrédulo ao perceber que a coisa o seguia em todos os movimentos, nos mínimos detalhes, mesmo os mais difíceis.  
Acenou-me.  Acenei de volta com o dedo polegar em riste, para que ele não pensasse que estava ficando “biruta”. Pois quem o olhasse, pensaria no mínimo que ele estaria em apuros, fugindo de abelhas ferozes.
Pelo contrário ele se divertia a “bessa”.  Corria, gargalhava, se equilibrava no meio fio.
Passou a manhã inteira assim. Em êxtase. É sóbrio dizer que não há felicidade completa. Há uma incompletude nas coisas.
  De tempos em tempo a mãe o olhava pela janela e sorria. Abanava a cabeça como quem dizia:

          -Ah! As crianças! Que mundo mágico o deles!
Quando na mesa para o almoço talvez contasse a novidade para a mãe. Talvez ela sorria e dissesse:

          -Ah! Angel! Angel! Você é um sonhador.

          Deve ter comido as carreiras, pois logo apareceu. E quando saía a mãe pediu-lhe para voltar e escovar os dentes. Fez isso sem discutir. Comeu também todo o legume com gosto de mato. Tudo. Mostrou para a mãe o prato limpo.
Angel foi andando e a coisa o seguindo e quase esbarrou na menina que apareceu de repente ao seu lado. Ele ficou um pouco desconcertado eu sei. Mas fingiu bem.

          -Oi! A menina disse.  Ela segurava uma boneca pela perna e os cabelos loiros tocavam o chão. Fiquei curioso.

          -Oi, respondeu Angel.  E completou: -Ufa! Quase te atropelei!
-Por um triz! Ela disse sorrindo. Era uma menina dos seus nove anos.
Os olhos dela era tão azul que confundia com o céu.

          -Você é a nova vizinha? Angel perguntou.
          -Sim! Em carne e osso. Ela tentava agora se equilibrar no meio fio.
Eu sorri no meu canto.
          -Eu sou Angel, - aquele acolá É Celso. Quis esconder-me, mas depois acenei. Entrei sem querer em cena. Ela acenou para mim também.
          -Maria Isabel Ptolomeu, mas pode me chamar de Bel. Ouvi-aela falar bem explicado.
Ela sentou-se ajustando o vestidinho às pernas brancas que nem cera. A boneca no colo. Disse: 

          -Vamos brincar?

          -De que? Respondeu Angel. Eu fiquei calado. Não tem muita brincadeira que eu goste. Só se for passa anel, ou adedanha. E tem que ser com perguntas difíceis.
Mas ela gritou:

          - Esconde esconde!
          -Epa! Foi a exclamação de Angel.

Desci. A empregada empurrou-me até a rua. Aqui está bom, disse. A menina olhou-me de cima a baixo. Parece até que ouvi falar: “Mas e ele assim...”. E não é que Angel parece ter dito algo como, “pois é, mas a mãe dele quer que, a todo modo que ele brinque, para socializar e divertir”.
A menina olhou para o alto. Depois falou:
          -Ok! Mas quem conta primeiro?
          -Meu amigo ali o Celso.
Logo concordei. Não tive escolha. Afinal o diferente era eu.
Antes de começar ela queria saber tudo. Por que eu não andava, qual o problema.

          -É de nascença eu disse, para acabarem de vez as especulações.
Ela olhou para mim. Fiquei no canto da parede e comecei a contar. Achei engraçados, uns pontinhos de suor no nariz dela.
Comecei a contagem. 1, 2, 4, 3, 7, 10, 90... Não sabia contar direito.
Eles correram.  Virei-me e fui à caça. 

          Os paralelepípedos eram pontudos, fazendo-me chacoalhar na cadeira. Sem demonstrar fraqueza fui galgando uma a uma. Alias estou ficando perito em ser forte.  Forte em não demonstrar meus verdadeiros sentimentos. Cheguei frente ao muro da dona Joaquina, uma lagartixa correu assustada, parou na frente e ficou me olhando. Balançou a cabeça duas vezes.  Olhei através dos tijolos vazados. Gritei:

           -Angel! Atrás do pé de goiaba!

           Nisso Isabel apareceu correndo do terreno baldio. Tocou no poste atrás de mim. Ela tinha se salvado. Na corrida o vestido subiu um pouco a cima dos joelhos. Agora eu tinha que correr até o poste também. Assim com furor, puxei as rodas violentamente. Não podia perder essa. Quase caí para trás. Seria uma fatalidade. Um menino quase imobilizado cair da cadeira de roda de pernas para o ar. A cena seria grotesca demais eu pensei. Eu tinha que chegar primeiro. Angel saltou o muro e veio correndo como um cavalo louco. Dei tudo de mim. Os rolamentos rangeram em velocidade.  Parecia que eu remava contra a correnteza. Toquei no poste primeiro. Ufa! Foi por pouco!

          Olhei a rua. A palma da mão doía. Via tudo como se olhasse para um abismo.  Mas pensando bem, sobre o abismo pode-se voar. Era só criar asas.
Agora era Angel quem contava. A brincadeira continuou até quase anoitecer.
Podíamos brincar mais uma vez até o sol se pôr. Isabel contou. Eu corri para um esconderijo que só eu sabia. Correr era metáfora. Minha mãe adorava essa metáfora. Perseguia-me nos passeios dizendo, corre, corre corre. E eu ria muito.
De onde eu estava dava para vê-los tranquilamente sem ser visto. Angel foi para o mesmo lugar. Vi quando Isabel aproximou-se dele, conversaram alguma coisa, ficaram bem próximos, acho que Angel afagou-lhe seu rosto e beijou-a rapidamente. Mas ela não gritou.  Pensa bem, quando Isabel viu Angel era para ter gritado que o tinha achado. Assim eu gritei:

          -Parei de brincar disso!

 Isabel era muito curiosa. Por exemplo: queria saber de tudo, de minha vida particular. Queria saber como eu fazia pipi, se eu nunca ia andar, nem correr. Mas tirei essas perguntas difíceis de letra. Fingi que tudo era igual. Que minha casa era apropriada.  O vaso era mais baixo, tinha corrimão em todos os lugares. Depois queria dirigir minha cadeira. Até correu comigo. Tive que usar os freios. Ela queria até trocar de lugar comigo, para ver como era andar de cadeiras de rodas. Depois a convenci que não era necessário. Era só usar a imaginação.
Comecei brincar com ela de quem pisca primeiro.
Ficamos assim olho no olho. Ardia pra “chuchu”. É lógico quem piscou foi ela. Usei o truque de ficar concentrado numa pintinha que ela tinha bem embaixo do queixo. Entre a covinha. Ela tem o nariz um pouquinho, só um pouco arrebitado.  Descobri que ela era teimosa como uma mula. Confesso: Ela me fazia perder o fôlego. Quando estávamos assim no bem bom, eu descobrindo ela pelos seus olhos, Angel mudou de assunto.
          -Agora que somos íntimos, vou contar um segredo! Disse ele.
          -Certo! Cada um conta um! Entrei na brincadeira.
          -Mas tem que ser aquele segredo que te dá arrepios! Disse Isabel com sua eloquência.
Assenti em silêncio.
          -Olha aqui!
Angel pediu para olharmos para ele.  E ficou feito bobo balançando os braços. Pergunta:
          -Não observaram nada?
          -Não! Dissemos eu e Isabel em uníssono.
Ele balançou a perna direita.
          -E agora?
Ficamos olhando para ele calados.
          -Aqui seus burros, não vêem? Apresento para vocês o meu mais novo amigo. Vejam! Tudo que eu faço ele faz também.
          -Ah! Que legal! Eu tenho também! Gritou Isabel. Olha! Correu pela rua.
Eu não estava bom com eles não. E aí gritei:
          -Dois idiotas! Os dois são idiotas! Não vêem que isso, que nos imita, que não larga da gente é simplesmente uma sombra! Que todos têm! Aliás, toda matéria tem. As pedras, as árvores... Tudo.
Eles ficaram um pouco chateados. Aí Isabel para não ficar envergonhada disse:
          -O vento não tem!
          -Claro que não! Continuei. Existem coisas que não vemos, mas sentimos!
          -E as nuvens têm? Angel mostrou uma nuvem com a forma de um touro.
          -Tem. Fraquinha, disse Isabel. Quando está pesada de chuva. Aí sim tem.
Nesse momento parecia que Isabel olhava para mim. Os olhos pequeninos, azulzinho, miúdos. Já conhecia os olhos dela quando ficavam assim miúdos. Disse ela:
          -Ah! Agora já sei! A sombra é a cópia do corpo. Apontou com o dedo.  - Veja a sua. Parece uma cadeira ambulante.
Fiquei pálido. Mas já sabia fingir. Movimentei a cadeira. Fiquei por trás dela. E disse:
          -Veja! Estou te abraçando! E alongava minha sombra sobre a dela.
          -Tá nada! Ela disse se encolhendo.
          -Agora estou te beijando, veja! Continuei a brincadeira.
Aí ele me cortou gritando:
          -Tá nada ela disse ainda, quase chorando. Como não sinto?
Eu destilando minha raiva.
          -A sombra é assim mesmo sua tonta! Não a sentimos, não tem cheiro, mas existe.
Angel Observou:
          -Sabia que depois do meio dia ela só vai crescendo, ficando comprida até desaparecer?
          -Claro! Até o sol se pôr. Angel disse. – Veja a cadeira como está comprida. Apontou para mim.
Aí eu gritei:
          -E você, é uma besta quadrada!  Achava que a sombra era uma pessoa! Que imbecilidade!
Depois ficamos um tempo calado.
Aí Angel deu-me o avião. Joguei com força. Fez uma curva aberta, subiu e veio embaralhar nos cabelos de Isabel. Caímos na gargalhada.
          -Bem feito. Eu disse. Ela pegou o avião e o rasgou.
          -Agora conta o teu segredo, falou Isabel olhando para mim.
Eu olhei bem dentro dos olhos dela e disse:
          -Meu sonho é ser escritor, eu disse.
Ela corou.
          -Grande coisa, disse ela.  Vai ser um pedinte. Escrever não dá dinheiro! Embora tem muitos que...
Não completou. Alias Angel não deixou:
          - Fala o seu agora, queremos saber!
          -Então tá, ela falou. Olhou para o céu, depois para o chão e disse: 
          -Eu estou apaixonada!
Ficou cutucando o chão com uma varinha. Naquele tempo paixão era uma palavra. O significado não levava a ação. Sabia-se apaixonado e só. Não se beijava nem se abraçava. Era uma coisa distante como o sol. Estava lá em cima. Intocável.

Rimos. Falamos na mesma hora.
          -Que coincidência!
Ficamos os três olhando para o chão. Ela falou:
            -Sabia que a sombra nasce com a gente e só nos larga quando morremos?
          - Quando meu avô morreu não prestei atenção! Angel disse.
          - Será que tem um mundo só das sombras? Disse Isabel pensando.
Deve de ter, eu pensei. Achei Isabel um pouquinho fria, uma personalidade pedante.
Aí Angel contou a surpresa:
          -Sabia que hoje é meu aniversário?  E que vocês estão convidados?
 Os dois ficaram correndo em volta de mim até cansarem. Rimos muito.

                                                              *
          

          Meu pensamento divagava, longe nessa história singela. Fazia na mente o mesmo que pescadores experientes fazem. Usam e abusam de engôdos diversos para ludibriar suas presas. Difícil escapar, pois os peixes morrem pela boca.
Depois de estudar por anos a estrutura, nos diversos livros que falam da poética, ainda não achei por assim dizer, o graal, isto é a estrutura que dê ao texto, simplicidade, autenticidade, compreensão, forma, para atingir o ápice.
Copiei, copiei e copiei. Criei pouco ou quase nada. Como disse o velho Mago do morro do livramento, “Há histórias que não pertence ao autor nem o título...”
Eu queria usar essa história como isca, não importando os personagens que são meros coadjuvantes, nem a história que é banal, mas uma frase que a personagem feminina disse e a levei para toda a vida:
“A sombra é cópia do corpo!”.

Nesses anos todos, já se passaram quarenta anos, construir um catálogo de obra razoável.  Tenho vários romances depositados em bibliotecas pelo mundo a fora. Outros tantos dormindo numa pasta esquecida do computador. No início eu queria só a glória, ser reconhecido, ser eterno.
Mas verdadeiramente escrevia para uma única pessoa. Isabel. Mas era indescritível a dor da incerteza. Queria que por acaso uma das obras minhas tivesse caído em suas mãos e ela ao ler desse um suspiro. Mas isso é um sonho impossível.
Um ano desses, chamaram-me para uma mostra em minha cidade natal. Relutei. Não me achava preparado. Arrumei uma desculpa qualquer, estaria escrevendo um novo título, e assim não parava nem para comer. Uma mentira razoável. Soube que tem escritores que agem assim. Deixaram-me em paz, portanto.
Um ou outro livro meu, os críticos deitaram algumas vezes o olhar. Se, gostaram não sei, mesmo por que, isso perdera a importância. Entre tantos títulos houve alguns Best-Sellers que entupiram minha conta. Foi uma época de orgias e prazeres.
  Mas só de sexo e comida não vive o homem. Principalmente quando a fama e dinheiro vêm desses romancezinhos que escrevemos de um fôlego só: raso, entupido de sexo e ação. Mas que o grande público adora.
Não cuspo no prato que comi isto não, pois essa fase ajudou-me, na jornada. Afinal foram esses textos que pagaram minhas contas, viagens, mulheres, bebidas...
E a história de um escritor não é nada mais do que, a jornada do herói.  Assim devemos colocar todos os elementos inerentes na estrutura para que a vida seja aprazível.
Porém são essas nuances que me deixavam na maioria das vezes constrangidos, pois parecem imitações baratas.
Nesse afazer, “solitário”, o escritor é a soma de tudo que viu que leu que viveu que sentiu...
Desses atos acima acredito piamente na leitura.  Pois a respeito da vida, vive a vida dos outros. A leitura essa sim é: salvação e perdição.
Muitas vezes somos criticados por criar, meros pastiches. Acredito que sim. Todos esses anos tento livrar-me dessas influências, e até empaco como burro frente a uma lauda, e nesses dias de sofrimento, as páginas são só preenchidas após muito suor e lágrima.
E são nesses dias dolorosos que me vem a frase dita por uma criança pura, mas que parecia um corvo, o mesmo que assombrou outros escritores. Pois estaremos sempre andando em direção ao abismo. E o corvo piando.
Quarenta anos se passaram.  E a frase martela dia e noite em minha cabeça.
Um belo dia recebi um e-mail que dizia:
“Sr. Celso Furtado da Silva, convidamos o estimado escritor, para participar do primeiro numero de nossa revista de arte”.  
Com o objetivo de criar, como dizia o texto, o enlace harmonioso autor/leitor, era o principal motivo para o lançamento da revista, a “pro - letras”, e dizia em seguida que eram para abrir espaço para literatura, artigos sobre educação, política, saúde, notícias, vídeos, imagens  e artes diversas, em português e outros idiomas.
Para aguçar a curiosidade, dizia ainda, “a revista, apesar de recente, já conta com autores conhecidos, e de renome mundial” e citava alguns nomes. Uns conhecidos e outros nem tanto. Enfim avisava que, “para escrever na pro - letras é necessário fazer a inscrição e aguardar um e-mail de aprovação, mas que meu nome já tinha sido aprovado pela diretora e produtora Dr. Isabel Ptolomeu.
Bem antes desse e-mail, soubera por um conterrâneo, (temos esse terrível defeito de querer saber da vida dos amigos, no intuito de medirmos as vitórias e também os fracassos) que Angel se tornou piloto de caça da força aérea. Que também adorava esportes radicais.
Já Isabel tinha se tornado uma médica super reconhecida mundialmente e pelo que sabia até ali tinha mudado para São Paulo.  Até aqui morreu o neves, eu disse. Nunca mais nos vimos.
 Tenho montanhas de anotações. Essas anotações estão numa pasta que a denominei de secreta. Que antes dessa correspondência, não tinha ideia de editá-las e muito menos publicá-las.   Pensava: essas jamais vão brotar. São sementes podres. Jamais serão romances. Jamais será algo. Não pela qualidade.
Mas por que fiz a vil promessa, de escrever uma lauda diariamente, sem usar nada conhecido, nenhuma estrutura que seja, a não ser, o inconsciente. Isso por que meu sonho era escrever uma obra maior, sem interferência externa, vir de um embrião sem pai e sem mãe.
E tais anotações foram-se se acumulando, num espaço dedicado ao entulho. Mas o pandemônio do tempo é estarrecedor. Vem como uma máquina fora dos trilhos.  E assim escravo deste monstro que criei, todo dia, tal autômato, vou dedilhando as teclas, e estas formando palavras, frases, orações, parágrafos, numa loucura inimaginável. Imagine alguém que se furte a vida inteira a amontoar pedras a beira de um caminho. Formará uma montanha sólida, mas amorfa. Foi o que aconteceu comigo.
E os anos foram passando um a um. Lia dez vezes mais do que escrevia.  As coisas iam ficando inacabadas.  Acumulando, criando mofo, perdendo as cores.
E aí surge esta oportunidade de cuspir tudo para fora. Colocar tudo e talvez conseguir o reconhecimento de Bel. Meu Bel de outrora.
Queria provar que ela estava errada.
E assim dia e noite fui tirando da pasta secreta um por um e editando-os (o trabalho prazeroso dos cortes), pra que o texto fique o mais enxuto possível.


Em seis meses ficaram prontos.  Justo quando dei por acabados uma notícia estarrecedora: Isabel tinha morrido num acidente, voltando para casa. Quem me contou disse ainda: Um acidente bobo, perto de casa.
E agora como eu ficaria? Como a responderia?
Meu luto foi curto. Lembro que fiquei atarantado uma semana. Sem comer e nem sair. Depois  já estava comendo, bebendo e fazendo sexo normal.
Os escritos é que submergiram.
Tudo foi jogado numa gaveta e esquecido por um longo tempo.
Só hoje quando completaria dez anos de seu falecimento pude reler alguma coisa.
Sou categórico em dizer: Nessa vida somos tudo: Puta, bandoleiro, cafetão, jornalista, poeta, dentista, médico, empresário, juiz, mocinho, bandido, ditador, médico etc. e etc. Tudo o que queremos ser.
Tinha a ideia megalomaníaca de ser Deus. Um deus à beira do abismo.  O olhar no vazio. Um olho no inferno outro no paraíso.
Esse tempo todo na lida, copiando,estudando diversos autores para melhorar os textos.  Meu sonho era escrever “O Romance”. O grande texto.  Assim enquanto escrevia amenidades, Li o sistema de Stanislavski: Em que diz: O primeiro aspecto do sistema é colocar o inconsciente para trabalhar. O segundo é: Assim que se inicia, deixe-o de lado (leave it alone).
Ele dizia que o subtexto é tudo aquilo que o ator ou personagem, diz, não com as palavras, mas com o corpo. E é justamente aí onde se encontra o graal.
Aí eu passei a anotar as falas de pessoas comuns. Nas ruas nos bares, em casa.  O que interessava mesmo eram as ações.  Na face está o que não se diz. A verdade crua.  E acredito que o ator completo, é aquele, que além de falar o texto, passa o que está nas entrelinhas.  “O que vem para a face, estão nas dobras do texto”. Um personagem pode dizer: Eu te odeio, e transparecer para o público: Eu te amo! E vice e versa.
Assim foi quando, há exatos oitenta anos aquela menina, Bel disse:
-As sombras são a cópia do corpo, a sua se assemelha a uma cadeira!”“.

 E só agora depois de longos anos tenho a coragem de respondê-la:
“As sombras sim, existem. Falo agora categoricamente. Mas só do corpo. A alma é transparente. E ela a sombra, nas nos abandona na morte. A alma sim”.
Digo mais:
  “A sombra, a terrível sombra que todos temem, é somente cópia do corpo, não da alma”.


       Brasil, 29 de Dezembro de 2016