quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Contomeuscontos-Literatura-Crônicas

Contomeuscontos-Literatura-Crônicas
   
                                              Camaleões

Camaleões são pertencentes à família Chamaeleonidae tem como
Característica o mimetismo, e são seres solitários.









A jornalista olhou fixamente, e perguntou de chofre:
        
        -Como surgiu a ideia das anotações? E se foi a partir dessas anotações, bizarras ainda, no meu entender, que o senhor chegou a tão elevada casta de escritores conhecidos e lidos mundialmente?
O Jovem escritor participava de uma mesa redonda, no canal liberdade, organizada, no intuito de debater arte, programa este voltado ao público jovem e estudantes em geral.
         
      -Bom só para pontuar, eu não acho as anotações bizarras. Acho sim, bastante infantil, e lutei com unhas e dentes para não serem impressas. Mas o valor que a editora ofereceu foi irrecusável!
        -O senhor pode falar esse valor aproximado?
        -Impossível! Aí serei pego pelo imposto de rendas e acossado pelos credores. Aqui ele deu uma gargalhada.
        -Mas continuando... aquilo tudo é inerente a todo jovem daquela idade.
Aqui uma psicóloga questionou:
        -O senhor não foi prematuro?
        -Com o ato de escrever?
       -Não! Sexualmente falando.
       -Não! Olha para a platéia, Não creio. Sorri novamente. A platéia apóia.
      -E sobre seus desenhos? O que diz deles?
       -Bom... coça a cabeça, -eu sempre gostei de desenhar, saía assim de forma livre. Se tem alguma pertinência com o que eu escrevia? Acho que sim. É o micro cosmo no macro, entende?
        -E quanto a história das anotações? Volta a perguntar a jornalista.

        - Bom... A história é longa e remete bem ao início de minha vida como ser, vivente, de homo sapiens.
A jornalista sorriu. Os dentes brancos. Vestia uma saia azul escuro, que apertava suas ancas, e uma camisa masculina branca de linho quase transparente e dela brotava uma fragrância inebriante.
O escritor se ajeita na cadeira. Veste um terno cinza em corte italiano. No pulso um relógio suíço, os cabelos pretos e curtos e bem aparados na nuca.
          -Bom, por mim eu ficaria ouvindo-o por horas a fio, mas o senhor há de convir que um programa com duas horas de duração, terá que fazer uma síntese, e creio não terá dificuldade alguma pelo que já falei... Seu nível de escrita, seu gabarito...  Com certeza no final tudo ficará esclarecido.
        -Tudo bem. Vamos lá. Eis as anotações.
Ele entregou a ela um calhamaço de papel roto, enrolado em fitas crepe.
O título em caneta esferográfica:
     “Anotações, desenhos e qualquer coisa de minha vida”.
Embaixo em vermelho:   Isso é segredo de confissão.


“A turma havia marcado uma reunião urgente. Saí cedo de casa, o local era longe, no bar de Seu Nilson. Seu Nilson é o apoiador de nosso time e responsável pela guarda de nossos troféus. Fica sobre a geladeira e enrolados em plástico azul, para os mosquitos não sujarem nosso orgulho. E tínhamos bastante, nosso time era endiabrado. Todos diziam.

Era final de março e o sol forte no azul do céu limpo, como gema de ovo em prato vazio.  Puta que pariu! Merda de sol tava de lascar. Escaldava os pés. Um inferno aberto. No centro. Abrasador. Olho a própria tristeza.  Para dentro e debaixo. Fecho os olhos para não cegar. Faço caretas. Uma bola de fogo.  Os paralelepípedos quentes sem dó.  Nem uma alma na rua. Só eu, maluco. Pareço preá fugindo sobre os lajedos. Fugindo dos carcarás. Fugindo do Belzebu.
      -Vixe!
Corro de um lado a outro caçando sombra para não queimar os pés. Tenho pressa. O convite foi curto e grosso: “Reunião urgente”, Só. Eram assim as mensagens da turma quando ia discutir alguma coisa. Só tivera uma antes.
Foi o ano passado. Birita nos chamou na rua até a casa em ruínas. Aquela casa abandonada da esquina. Pois então.
A casa dos cheiros estranhos, de fezes, de urina, de água parada. Lugar onde os vadios e pedintes faziam suas necessidades. Era uma casa em construção, parada a muito, tinham batido só a laje, os tijolos nus, sem piso e sem janelas. Algumas ramas de melão de são Caetano entraram e a abraçava por todos os lados. Era fácil encontrar a sabiá laranjeira comendo melões ou fezes pelo chão. Pegávamos para vender. No alçapão. Dava um bom dinheiro. A gente aguentava aquela podridão por que ficava perto do rio, e dali a gente via as lavadeiras nos afazeres diários. A partir daí virou ponto de encontro onde podíamos discutir qualquer coisa longe dos adultos.
Lembro vagamente, pois a memória falha e não fixam cenários, somente alguns cheiros e cores, como um sonho, as coisas de trás pra frente atemporal.
Naquele dia, entramos com cuidado olhando os cacos de vidros no chão e quando subimos na laje deu para ver o rio correndo, tal uma cobra serpenteando no vale brilhando como espelhos. Birita pediu silêncio. Era assim quando era algo secreto.  Nosso coração batia forte. Apontou o rio. As lavadeiras chegando. Foram deixando as roupas sobre as pedras e levantavam as saias para não molhar. Algumas ficavam de roupas íntimas ou nuas na correnteza. Aguçava nossa curiosidade. Ficávamos olhando um bom tempo. “Minha mãe não!”, gritou Jeguinho. O negrinho perebento que gostava de jumentas. Birita jogou uma pedra nele. E quem quer olhar sua mãe? Têm outras muito melhores!
O céu azul e o sol derretendo. As lavadeiras batiam a roupa na pedra dura e a sujeira saia. Como temos sujeiras. Haja sabão para limpar tudo. Depois colocaram no quaradouro para ficarem branquinhas.
Birita acocorou-se. Ele tinha os pés chatos e curtos, sujo de poeira, sempre descalços, o braço forte de menino de recados, de quem trabalha na roça, cabelo loiro e crespo como vassoura de piaçava. Os olhos eram escuros e sem brilhos de quem já viu tristeza. Pai desconhecido.
A mãe de Jeguinho apareceu perto da casa, nua em pelo, bem na margem, o sol brilhava em sua pele escura e molhada cintilando brilhos multicores, e aí Birita olhou fixamente, arriou o calção, os olhos vidrados.
      -Ninguém vai bater para minha mãe não! Gritou novamente Jeguinho. –
      -Deixa, deixa Jeguinho, disse Tonhão, vamos esperar o motivo dessa reunião e depois vamos vê!”Tonhão era daqueles moleques magro e comprido e o rosto cheio de espinhas.
      -Isso é por mode de que não é sua mãe!
Aí vimos Birita abrindo a boca e fazendo contorções invulgares.  Sorria e seu rosto estava meio pálido. O que é que ele queria pensei.  Ele cuspiu mais na mão e manipulou vertiginosamente.
      -Eita porra, falei. O que é isso outro dissera na ocasião.
      -Olha aí isso, gritou novamente Jeguinho. -Ele ta fazendo para minha mãe! Isso é sacanagem. Vou bater uma para sua irmã também!
Dei um cascudo para ele calar-se. Agora a mãe de Jeguinho andou de costas.
Nisso Birita ficou fazendo umas caretas esquisitas, parecia que ia desmaiar igual o seu Jorge quando caia na rua com epilepsia e ficava estrebuchando.
Depois rindo chamou todos:
-Olha aqui!
-O que, perguntei.
-Isso ó! Branco que nem leite!
-E que é que tem?  
-Não vê que já sou homem?   -Já sou homem porra!
Quiabo até ali calado disse debochado:
      -Era isso que queria mostrar para a gente? –Já era meu chapa! Todos aqui temos!  Rimos da cara dele.  
-Isso não é novidade para a gente.
Ele fechou a cara e gritou:
      - Ah! É? Então provem!  
A gente tava tudo suado, além do sol esta de escaldar tinha a emoção de ver um monte de mulher peladas. Olhamos entre si.
-Vamos provar sim! Eu disse.
Aí tiramos nossos calções, cuspimos em cima e tocamos uma verdadeira sinfonia.
      -Duvido quem joga mais longe! Gritei.
A parede ficou branca. Birita com raiva pegou a gosma e jogou em nós. Apesar de ele ser meu melhor amigo aquilo tinha sido demais. Não pensei duas vezes. Plantei um chute na bunda dele. Ele quase chorou. Era para aprender a respeitar os mais velhos. Ele era o mais novo. Gritamos na época.
      -Chamou a gente para isso? - Perder nosso tempo! Ele quis correr.
      -Agora tem que pagar prenda! Gritei.
      -Não! Não! Ele dizia. Todos aprovaram!
      -Têm sim, os outros gritaram.
      -Então uma prenda fácil! Ele disse. Eu pensei numa coisa que ninguém tinha feito. Pedi silêncio. Votamos! Uns queriam que ele chupasse nosso pau, outros que ele comesse um naco de merda, mas o que ganhou foi meu palpite E falei:
      -Ele tem de provar da gosma! Ele quase chorou.
      -Isso não! Isso não! Ele gritava. Dissemos juntos.
      -É melhor pagar a prenda senão vai tomar cascudo de todos!
 Ele pensou, pensou e resolveu:
      -Tá bom!  Com muito custo ele passou o dedo na gosma e enfiou na boca.  Fez cara de vômito. E falou:
      -Olha! Bater uma é muito bom! E quando temos a porra é muito melhor! Diz meu tio que se fizer demais fica magro e nasce cabelo na palma da mão.  Mas a sensação é boa demais! Parece um desfalecimento, é como tomar refrigerante com muita sede, sentimos milhões de bolinhas subindo nossas cabeças.  Não vou parar não! Pode nascer cabelo, ficar magro, nem quero saber.
Aí olhou para Jeguinho. Prosseguiu.
      -Ainda mais vendo uma mulata daquelas!
Jeguinho partiu para cima querendo briga, mas a turma apartou e tudo ficou bem. Aí ele completou:
      -Agora o gosto dessa porra! Puta que pariu, que coisa ruim... Parece detergente!
Caímos na gargalhada.
      -Agora chupa aqui, mostrei.  
Aí ele saiu correndo. Corremos atrás e mergulhamos no rio.
Depois dessa, o melhor era refrescar a cabeça.
Desde esse dia que ficamos estranhos. Queríamos andar sozinhos, mais calados, mais na solidão. Senti um elo se arrebentar, deixei para trás as histórias da carochinha que tanto gostava e os meus velhos gibis. Aprendi o prazer solitário, passei a ser mais egoísta e ter mais maldades. Os sonhos agora eram reais, tinha cheiro, gosto e gozo. E a vida ficou divertida.
Quando não tinha nada para fazer, era só ir num lugar deserto pensar numa mulher, nas coxas dela, nos peitos e na penugem negra delas e arrebatar-se.
A partir desta descoberta aflorou em mim uma vontade de escrever coisas, e passei a anotar no caderno.
 Caderno de anotações:
“Agora que me tornei homem, a visão de qualquer fêmea dá-me arrepios e pensamentos obscenos”.

     
Realmente eu estava mais circunspecto e furtivo. Era como olhar uma montanha e ter o desejo de não só admirá-la, mas chegar perto, subir até o cume, escalá-la por inteira. Descobri que se você tiver na ponta da língua o nome da garota e sussurrar baixinho, o gozo é mil vezes maior.
Atravessei correndo a praça.  Vejo vultos nas janelas. Cada casa tem seus membros, cada membro suas vidas e toda vida seus sofrimentos. Não podia perder tempo com mandados ou prosas. Por isso passo batido. Os mais velhos gostam de pedir favores. Vai ali ao mercado, trás para mim um fubá ou um maço de cigarros, dá um recado a seu tio, pequenas coisas que eles não gostam de fazer. Eu gostava, pois ganhava uns trocados.
Lembro do dia que meu avô pediu-me para eu comprar pão. Essa é boa. Vai escutando. Ele disse: Toma o dinheiro, segura com cuidado e trás o troco certinho. O dinheiro andava difícil. O sertão estava todo seco e as criações morriam. Era uma tristeza só. Eu saí correndo. Sempre fazia as coisas correndo. Passei a casa de seu Manoel, graças a Deus o cachorro tava preso na corrente, o sino tocou nove vezes um som metálico fino e seco.  Salto as raízes das castanheiras que fica em volta da praça, quase atropelei uma bicicleta, olha por onde anda moleque gritei, ele me respondeu, vai tomar no cu, olha que eu te pego moleque seu fiduma rapariga gritei e peguei duma pedra e joguei com toda força. Por um triz, eu não furei a cabeça dele, o filho de uma égua. Ia dá problema, mas eu não era de fugir de problemas; eu era o problema. Mas deixa para lá. Isso não interessa a ninguém. Cheguei à padaria. Quero seis pães e o troco, disse. A atendente tinha uma calça apertada. Os cabelos pretinhos. Ela era bem branquinha. Enquanto ela contava os pães eu a olhava. Era bem fresquinha. Uma marca pequena da calcinha. Tentei adivinhar a cor. Entregou-me os pães e sorriu. Um dente quebrado.  Azul eu disse. O que? Ela perguntou. Nada. Falei sem querer. Fui saindo. Ela pensou e chamou. Parei estupefato. O troco menino.  As abelhas voejavam sobre os pães doces. O cheiro dela era doce.  Lembrarei desse cheiro. Do dentinho quebrado também. Era assim que eu fazia. Coletava dados para criar a personagem para meus sonhos. Um umbigo, um cheiro, um olhar, um pelo, qualquer coisa para ter verossimilhança. Mais o nome estaria completo. Por isso eu voltei cabisbaixo e perguntei.
      -Qual seu nome?
Ela sorriu de novo. O dente quebrado.
      -Para que você quer saber meu nome? Quer me namorar é?
A voz esganiçada. Pegou no meu queixo. As unhas pintadas de vermelho. Uma diabinha ela. Eu quase corri. Deu vontade. Mas fiquei calado, acabrunhado, o rosto esquentando.
      -Já sei!  Você quer me namorar?
Observei também que ela tinha suor debaixo do braço assim bem lá nela. E mais: penugens no sovaco. Ela deve ter seus quinze anos, calculei. Eu já sabia que mulher com essa idade já tem um amontoado de pentelhos cobrindo a fenda. Eu já vi nas revistas.  Em posições espetaculares. E cortavam os pelos de vários padrões. Muitas vezes ficava só uma tirinha bem fininha. As poses nas revistas eram principalmente para mostrar os orifícios. As negras são roxas. As outras rosadas. Eu prefiro poses comportadas. Ficam bem mais legais mais humanas. Tem que ser como contar uma história. Eu faço assim: Inicio com uma frase simples, pode ser até sem sentido algum, como quem não quer nada e depois vai soltando devagar, tipo comendo pelas beiradas, entende? E quando menos se espera chego ao final. Pode ser um final espetacular ou deixar em aberto. Isso atrai mais curiosidade. Prende mais a atenção. Gosto da poses comportadas, as pernas devem esta juntas, o olhar deve simular algo, para que nossa curiosidade fique mais instigada. É lógico que eu sei que as revista vendem mais quando mostram tudo. Tem umas que parecem flores. É bom ficar alisando assim uns pentelhos como se fosse um gato angorá.
       -Não é?
A voz de Amanda trouxe-me à realidade. Na maioria das vezes sou assim, oitenta por cento sou ilusão. Sou um menino como disse minha professora de religião, introspectivo. Ela disse isso quando falava de Adão e Eva no paraíso, que eles andavam pelados, ainda não tinham vergonha de nada, depois que experimentaram da fruta proibida, que caíram no pecado. Eu fiquei pensando que essa história era do mesmo quilate dos que falam que masturbação cresce pelo na palma da mão, emagrece, essas coisas para nos colocar freios.   
      -Quer namorar comigo não é? Fui acordando novamente. Meu rosto pegava fogo. Eu queria cair num buraco e sumir. Mas não arredei pé. Nem quando ela falou o nome no meu ouvido e deu-me um beijo na face.  
      -Amanda! Chamo-me Amanda!
Caderno de Anotações:
                 “É imprescindível nomear os personagens.”

           
Meu calção aumentou o volume. Fechei as pernas para esconder. Aí corri como um coelho. Amanda! Amanda! Amanda! Ia repetindo para não esquecer. Acho que ela ainda me chamou. Nisso trombei com um velhote. Ele fedia a cigarro de rolo. Disse para eu tomar cuidado por que a pressa é inimiga da perfeição. Eu parei e fiquei contando às moedas que tinham caído no chão. Uma a uma. O velhote aproximou e perguntou por que eu não jogava aquelas moedas no coelho. Eu ainda falei olhando para o chão que não via nenhum coelho por ali, aliás, aqui só tem preá.  Ele era cambista do bicho aí eu entendi. Que coincidência, eu pensando no coelho, correndo igual coelho e o velhote fala isso para mim, deve ter alguma coisa aí. E sorte como diz minha mãe vem uma vez. Joguei. Todas as moedas na cabeça. Coelho.
Passei o dinheiro para o homem. Ele passou um papel para mim. Depois disse que era para eu esperar uns cinco minutos que já ia correr. Muita gente aproximou. Era uma casa de jogo de frente ao mercado central. Tinha gente de todo tipo principalmente as lavadeiras que voltavam do rio, pescadores, aposentados e pequenos comerciantes. Giraram a roda. Passava os bichos rapidamente. A águia, o avestruz o burro, a borboleta, cachorro, cabra, camelo, cobra aí meu coração disparou. Passou a primeira vez pela minha cabeça e se eu perdesse, por que não pensei antes, meu avô me mata, nisso passou o coelho novamente, o cavalo, o elefante, o galo, o gato, jacaré, leão, e a roda ia perdendo velocidade, o velho acendeu um cigarro, os dedos amarelos da nicotina, e ficou pitando num canto, tremia os dedos, de novo passa o macaco, o porco, minha mão suava, o volume de meu calção baixou e era só silêncio na sala.  Só o tec tec tec tec da palheta da roda batendo nos metais que dividiam os bichos, todos coloridos. Passou agora o pavão, o tigre o urso, minha cabeça rodava, Amanda era o nome dela e passou o viado, passou a vaca, aí escureceu minha vista. Quando voltei o cachorro passava e eu segurei na grade para não cair e a roda foi perdendo velocidade. Cabra, carneiro, cobra, camelo, e coelho! Gritaram: Deu coelho na cabeça! Eu tremia que nem vara verde. Minha mão suava. A maioria do povo rasgava os papéis.  Fui ao balcão e mostrei o bilhete ao banqueiro. Ele arregalou os olhos!
      -Quem te vendeu menino!
O velho estava quase dando um troço.
      -Fui eu patrão o outro falou. Desculpou-se. -Eu jurava que era dinheiro fácil!
      -Mas você não sabe que criança não pode jogar? E agora? E agora o que é que eu faço?
Eu balancei o papel e gritei!
      -Paga! Todo mundo riu. Até o velhote. Ele não teve alternativa.
Quando cheguei à casa de meu avô ele tava deitado na espreguiçadeira. O penico cheio de urina. Estava bem fedorento e amarelo. Dava-me asco. Ele abriu os olhos. Perguntou-me o porquê da demora.
      -Cadê os pães que te pedi?
      -Coloquei em cima da mesa.
Puta merda. Estava suando.
       -E o que é isso? Meu avô apontou para o pacote. Entreguei o pacote.
      - Ganhei no bicho! Coelho na cabeça!
Trinta vezes mais o que ele me deu.
      -Você ganhou no bicho? Arrumou-se na espreguiçadeira como quando queria ser bem entendido. E olhou-me com aquela cara magrela. E ficou rindo com a boca sem dente. A dentadura tava dentro de um copo com água.
      -Pega um pão ali e come menino.
      -Não vô eu já comi em casa!
Que nada eu tinha era nojo da urina no penico e da dentadura no copo. Ele enfiou a mão no pacote tirou duas notas e me entregou.
      -Você merece.
Eu coloquei dentro do calção e saí correndo. Depois guardei junto com meus gibis.
Caderno de anotações:
“Amanda é o amor da minha vida! Tenho vontade de abraçá-la, de beijá-la. Até por sinal teria coragem de chupá-la toda. Dos pés a cabeça.”
                   
 As cabras pastavam a grama esturricada enquanto os chocalhos tocavam no como um cortejo. Era para não fugirem. Quem fugiria dali?  Enfrentar esse calor, a caatinga, os gemidos das cigarras que nos deixava tontos?
Mais na frente avisto o filho de Nego Chico em sua cadeira de rodas. Pastorando o feijão que secava ao sol. Era toda a riqueza da família. Era para o ano todo. Cumprimento-o com um aceno. Passo agora a padaria. As abelhas voejam em volta do açúcar e dos bagaços de cana. Amanda lá dentro atendendo os fregueses. Eu passo sempre aqui na frente. Faço uma volta grande só par vê-la. Virou amor platônico. Tenho coisas para falar para ela, mas estou criando coragem. Ela acena para mim. Eu aceno de volta. Por enquanto isso basta. Alguns porcos pela rua deitados no esgoto a céu aberto. Chuto o traseiro de um para me dá passagem. É um “cachaço” dos grandes. Quer me morder. Ôxente! Corro.  Salto o muro do cemitério. Caio sentado do outro lado. Uns carrapichos agarram na minha mão. Tiro de um em um. Sempre pego esse atalho. Todos fazem isso para chegar ao morro do “galo assado”. Passo entre as cruzes do finado Silvestre e de Dona Ana. Dizem que viraram fantasmas. Mas não tenho medo de assombrações.  Nem ligo. Os mortos não me metem medo. Mesmo por que aqui reina silêncio e paz.    Quando passo correndo, um ventinho arredio levanta algumas folhas a minha passagem. Paro numa sombra para descansar. Um juazeiro bem no meio da planície. É como um oásis. Foi minha professora que disse: O açude Mãe d’água é um oásis no sertão. Nunca mais esqueci.
Devo explicar esse amor platônico se por acaso amor tem explicação. Quando vi Amanda tudo bateu. O rosto dela, aquele sorriso, as mãos, os dedos compridos, as pernas grossas, e o cheiro dela. Aí minha vida virou ao avesso. Quando ia para escola pegava o caminho mais longo só para vê-la. Colocava as chinelas, estava aprendendo a andar com elas, e a camiseta por dentro do calção como via nos filmes de Mazzaropi. Meus pés suavam e as chinelas saíam e meu andar era de urubu no frio. Aí passava todo sisudo, na padaria, acenava para ela, ela para mim.
Na missa de domingo a via passar com aquele pano na cabeça a coisa mais linda a caminho da comunhão. Para comungar com Deus primeiro tinha que se confessar, disse minha mãe. Eu queria também.  Então no sábado eu ajoelhei na frente do padre e contei meus pecados: “Eu falei mal minha mãe de nomes feios, desejei que se meu pai fosse vivo ele morresse da pior morte possível e ontem eu desejei... desejei... desejei...” Pode completar dissera o padre, “-tudo que se fala na confissão torna-se segredo. Aí eu falei:
-Eu desejei muito uma menina. Calei emocionado. Como consegui dizer isso!
O padre abanou a cabeça e mandou rezar três Aves Maria e dois Padres Nosso.
No domingo fiquei na fila esperando receber o corpo de cristo. Mas os olhos eram para Amanda. Ela de mãos postas. As unhas pintadas de vermelho os seus dedos compridinhos. O padre colocou o corpo de cristo na minha boca.
      -Mainha como faz para receber, a hóstia eu perguntei no dia anterior.
      - Você fica sério, abre a boca e estica a língua, não tanto, só um pouco. O mais importante. Não pode mastigar.
Eu esqueci e mastiguei. Tinha o gosto de pão. Eu pequei. A missa terminou e a gente ficava brincando no pátio, em volta da igreja. Numa dessas voltas eu vi Amanda beijando um cara mais velho. Parei estupefato, dei meia volta e fugi para casa.
-Foi por que eu pequei meu Deus! Fui chorar no banheiro.
Depois para me vingar cuspi na mão e fiquei manipulando devagar, para cima e para baixo e quando na hora h eu falei bem assim: “Ai Amanda meu amor, minha vida, do dentinho quebrado e do cheiro doce”. Foi bom demais.
Caderno de anotações:
           “Você morreu para mim! Vou esquecer-te para sempre”.

    
Agora desço um morro íngreme, passo a curva da grande aroeira onde gosta de pousar os gaviões, e depois o rio. Atravesso a ponte suspensa e chego ao bar de Seu Nilson. Vou cumprimentando todos tocando na mão e sento na cadeira escolhida para mim.  Na cabeceira da mesa.  O radio está ligado e todos em volta. Os meus feitos dão-me certa autoridade. Pensa bem. Eu que saltei primeiro da torre do açude. Eu que roubei as hóstias do Padre Rafael. Eu que primeiro beijei de língua. Eu que imitava a assinatura nos boletins, eu que matava mais passarinho. Tudo isso conta num grupo de meninos.
 Seu Nilson tinha colocado uma jarra de Qsuco sobre a mesa. Pão doce também.
      -Vai começar o jogo?
O radio estava sobre a mesa. Era a válvula. Seu Nilson disse que pegava até rádios do estrangeiro. E era verdade. Um dia a noite ele ligou. Tinha gente do outro lado falando outra língua. Eu sabia que era japonês por que já tinha visto muito filme de guerra e eles eram o inimigo
Ficamos calados atentos a escalação.  
“O excrete canarinho vai jogar essa partida final com a Itália, no estádio, Azteca, um lindo estádio de futebol aqui na cidade do México. Faz uma temperatura agradável e a seleção canarinho vem assim escalada: No gol Félix, Tonhão sorriu. Quando ele pegava uma bola gritava, agarra Félix! O locutor prosseguia: Carlos Alberto Brito, Piazza, Clodoaldo, Everaldo, Jairzinho, Gerson, tostão Pelé e Rivelino.
Nosso Rivelino era Birita. Quando ele ia chutar todo mundo saía da barreira. Ele chutava de bicudo. “As duas seleções em campo, mais de cem mil pessoas, o estádio lotado para essa partida que ficará na história.
 Roia minhas unhas.
“Deu início à partida. O locutor parecia emocionado. “Tostão toca para Pelé, ele carrega a pelota toca para Everaldo, Everaldo para Tostão que chuta por cima da baliza. Tiro de meta para Itália”.
      -Brasil vai ganhar de dois, eu disse.
“O que você acha do jogo até agora meu caro!” O locutor para o comentarista.
Comentarista: “Olha nesse início o Brasil jogando para frente, mostrando toda a sua categoria, mas tem que ter cuidado, pois a Itália é traiçoeira. E não chegou a final por acaso”.
“Piazza domina no peito coloca a pelota no chão, toca para Clodoaldo, Clodoaldo dribla um e toca para tostão, chutaaaaaaa! Para fora. No estádio Azteca cidade do México o relógio marca o tempo... dezessete minutos do primeiro tempo! No placar Brasil zero, Itália também zero.”
Tá foda hem! Se fosse eu, disse Birita, driblava um, cortava para a esquerda e dava um bicudo no ângulo.
“Lançamento para Tostão, domina a pelota sai pela lateral. Bate para Rivelino que cruza para a área. Pelé sobe mais do que o centro four cabeceia, no canto. É gooooooooooollllll!” Goool do Brasil. “Setenta milhões em ação, pra frente Brasil salve a seleção”. Pelé aos dezoito minutos do primeiro tempo. Agora no placar, Brasil um, Itália zero. Vale dizer que esse jogo está sendo transmitido via Embratel pela primeira vez para a televisão a cores. “O nosso presidente Médici está acompanhando atento de Brasília.”

Entrei para coroinha a fim de ver Amanda aos domingos. Vestia aqueles paramentos, uma batina vermelha que ela quando me viu abriu a boca num riso e depois ficou séria. Foi quando eu fui confessar a segunda vez. Contei os mesmos pecados e o padre, um italiano grandão, mandou-me rezar três padre nosso e três Aves Maria. Como não tinha mais ninguém o padre chamou-me na sacristia. Ele tirou o Amito, um pano em volta do pescoço, tirou a batina, tirou a Alva foi que eu vi o padre em forma de homem, melhor dizendo, de tênis e calça jeans. Aí ele sentou-se e mandou que eu sentasse também.
      -Sua mãe, esteve aqui, falou de você, do seu pai...
      -Não quero falar sobre isso!
      -Ela pediu! Seu pai meu filho, pode ter morrido na guerra sim!
      -Não acredito! Ele deve ser sim um homem covarde que não quis assumir!
      -Olha filho esse tempo, o Brasil passando por uma ditadura...
      - O que é ditadura?
      -Esse governo meu filho! Fechou o congresso, aboliram os direitos dos cidadãos, essas coisas que é melhor você nem entender. Você é uma criança. E essa ditadura meu filho, já consumiu com muitos... e quem sabe seu pai não foi um deles, afinal pelo que dizem ele tinha idéias comunistas!
      -O senhor o conheceu padre?
      -Não filho, só pelo que os outros falam!
Eu olhava para o chão, uns mosaicos bonitos que formavam desenhos entre si.
      -É melhor você esquecer-se disso, pensar em seu pai com amor e tocar a vida para frente. Queria fazer uma proposta para você! Surgiu uma vaga de coroinha, você não quer assumir? É fácil. Seria nos sábados e domingos.
E aí comecei roubar hóstia do padre. Vinho também. A igreja lotada fica bonita, mas sem ninguém é triste e tem cheiro de morcegos. A escada que dava para a torre era alta e de lá dava para ver a cidade inteira. Gostava de ficar ali, ver o cemitério. “Terá mais mortos no mundo que vivos?”
Caderno de anotações:
                      “ Tudo depende do ponto de vista”.

                              
“A zaga toca com tranqüilidade para Clodoaldo este tenta um calcanhar, aí não meu filho, aí não é lugar de brincadeira, Bonisegna recupera a bola e chuta. Gol da Itália”.
      -Puta que pariu esses gringos são foda! Seu Nilson foi buscar mais guaraná.
Terminou o primeiro tempo.
Birita aproveitou para falar. Abriu um caderno onde tinha as anotações.
Uma letra de forma grande com o título:
Doações para o grêmio recreativo “Estrela do Mar”. Era o nosso time.
E mais embaixo com letras de imprensa.
Mercado modelo --à seis cruzeiro, 
Armarinho de Dona Sílvia à sete,
 Buteco de Seu Osmar à nove,
O carroceiro à cinqüenta centavos,
Dona Abigail do Puteiro à dois cruzeiros
 Venda de gibi de Tarzanà cinco cruzeiros
 Venda de bolas de gude coloridasàum cruzeiro
O açougueiroà miúdos para a farofa,
Seu Belarmindo do mercadinhoà dez saquinho de suco de groselha,
O padeiroàCem pães dormidos
O farmacêuticoà vitaminas c
Totalà Estava em branco.
Birita coçou a cabeça. Não era bom de matemática. Seu burro eu disse! Como vai tomar conta da caixinha se não sabe somar! Quase dei um cascudo nele para ele aprender. Faz isso não falou seu Nilson. Por sinal ninguém ali sabia ao certo. Pegamos uma folha e ficamos somando. Quebrando a cabeça. Noves fora... A gente gostava era de putaria. Era olhar as vizinhas em pelo, correr atrás das cabritas nos pastos... essas coisas que dá felicidade, que trás mais pecados ,mas que é bom! Sei que sou pecador.
Seu Nilson notando nossa peleja veio por trás e ficou calculando de cabeça. Ele era um esperto tinha feito o Mobral. Vivia em volta de sua caderneta de fiado. Cobrava juros. “São trinta cruzeiros e cinqüenta centavos!” Disse. Suspiramos aliviados. Dava para comprar a bola que tanto queríamos mais um padrão de camisa amarelas da cor do Brasil. Avante Brasil! Gritamos.
Por sinal a gente jogava igual o “excrete” canarinho dizia Seu Nilson. E ele sabia das coisas. Sabia de cor toda a seleção de setenta. Eu tinha o álbum de figurinha quase completo.
“E vai começar o segundo tempo e continuando o placar assim a decisão será nos pênaltis. Fazíamos uma roda em volta do rádio.
      -Ai, espero que não precise, disse Quiabo.
“A pelota começou a rolar, Pelé domina na coxa, dribla dois italianos, Gerson chuta, é goooollll! Gol do Brasil”. Toca a mesma música. “Setenta milhões em ação, pra frente Brasil salve a seleção!
“Como pode um país com uma ditadura como falou o padre, onde some pessoas, toda essa alegria, o povo na rua. Não acredito! Não acredito!
O filho da puta do meu pai fugiu mesmo.
“Olha a pelota rolando, de pé em pé, Jairzinho domina e corre pela direita, chuta com força, é goooollll! O furacão da copa! Explode fogos na rua. Os cachorros fogem. Eu já não presto atenção no jogo. Penso em Amanda, na minha mãe, no fujão do meu pai. Aí aconteceu o quarto gol. Carlos Alberto. Numa deixada de Pelé e ele pegou na veia. Saímos gritando em volta É tri! É tri! Os fogos aumentaram. Ficamos olhando de longe. Os urubus giravam no céu.
Quando tudo passou, o Brasil recebeu a taça Jules Rimet, e os comentaristas se despediram desligamos o rádio e começamos a reunião.  
      –A pauta é onde vai ser o jogo desse ano?
Dentuço pediu a palavra.
      -Os moleques daqui, todos sabem a importância desse jogo. -Olhem lá e apontou para a geladeira onde ficavam os troféus, - só falta mais um para chegarmos ao penta. Aqui ele levanta e anda como se tivesse uma grande platéia, tinha pegado todo cacoete do pai que era Dr. Afonso o juiz de direito da comarca, - o último local do jogo, passei lá recentemente, quando fui soltar pipa, era regular, tinha algumas ressalvas, mas não tinha fio elétrico nem carro passando, mas a má notícia é que estão construindo o mercado central ali e se encontra cheio de pregos e ferro retorcidos. Ali já não dá. E como temos o mando de campo é nossa obrigação arrumar o local e que seja o melhor possível. Então peço que cada um dê sua opinião e depois votaremos para fazer a escolha, ele olhou num papel almaço, por debaixo da mesa e acrescentou... Uma escolha e que seja em voto democraticamente. Bom, em minha opinião é que seja na rua do escritório do meu pai. É reta, comprida e tem árvores dos dois lados.
      -Não acho uma boa disse Birita. Ali por ser uma rua central, tem muito movimento, passa carroça a toda hora, e o piso é de pé de moleque, um perigo para torcer o pé.  E tem muita janela de vidro. Um chute meu vai quebrar tudo. Ele chutava como Rivelino. Aliás, no último jogo me deu um calo de sangue no calcanhar que tratei o ano inteiro com sebo de carneiro capado e só agora é que posso pisar normal.
Jeguim até ali calado futricando uma ferida:
      -Mas o que significa isso? Democraticamente?Todos riram.
      -É como o rio para as lavadeiras, todas usam as água para seu trabalho? Isso chama democracia. Ele coçou a cabeça.
      -Então é igual à mãe do Nego aí! Dá para todo mundo! Ela é democrática!
Dei um chute nele. Uns coques também. Não coloca minha mãe no meio se não eu coloco as suas eu disse. Voltamos ao assunto.
      -Eu também concordo com Birita disse Tonhão. Durante o jogo sobrou uma bola dividida para mim e o centroavante dele. Não pensei duas vezes, parti para cima e dei o maior bicudo na bola.  Acertei tudo. O pé do centroavante a bola e pior, uma pedra que arrancou um tampo da cabeça do dedão. Porra como doeu! À noite quando se encostava ao lençol era uma dor insuportável. Quase não dormi. E tive que ir para a missa de domingo, de chinelo de dedo. Ali definitivamente não é bom! Minha ideia é que seja no pátio da praça. É de cerâmica e não tem o perigo de ralar por que é liso e é o único lugar com iluminação.  Poderia jogar até a noite.
Quiabo discordou:
      -O jogo tem que ser á tarde, depois da aula, e como a praça é de cerâmica, liso que só, se chover escorrega muito e se tiver sol àquilo vira uma frigideira quente. Pra mim seria lá na frente do cemitério. Aquele pátio é grande, é de terra batida, ninguém reclama, pois os vizinhos estão todos mortos, se a bola por acaso cair do outro lado do muro ninguém fura a bola.
 Discordo eu disse.
      -Em frente ao cemitério o pátio é realmente grande, mas parece que escolheram o pior terreno para alojar os mortos, pois ali é terra ruim, tem formiga cabeçuda, carrapichos, macambira e mandacaru. O chão vive cheio de espinhos. No último jogo entrou uma felpa no meu calcanhar que inflamou e só saiu depois de quinze dias. Aquilo dói que é uma beleza. Fica latejando a noite inteira. E além do mais quando tem enterro aquilo ali fica um chororô dos diabos. Por mim está descartado. Continuei: - Eu penso que o melhor local é ali entre o matadouro e a zona do meretrício. Todo mundo riu. Continuei. -É o melhor local para o embate, que pela junção da rua debaixo, com a do rio perto da subestação lá no final fica uma rua sem saída, assim não precisa parar toda hora, para uma carroça passar ou algum enterro, não tem vidro nem espinho. Também porque sendo bem perto do rio o piso é arenoso e não tira o “tampo” da “cabeça” do dedo de nenhum atleta que ao tentar fazer um gol de “bicuda”. Mas como há discordâncias vamos ao voto.
Venceu minha ideia. Já era quase seis horas e fomos saindo um por um. Cada um procurava sua casa. O sol descia por trás da parede do açude e as sombras já alcançavam outros limites. Ando mais devagar. A maneira dos felinos. Uma rolinha na copa de um angico. Deve está se preparando para dormir. Pego o meu estilingue. Miro com cuidado. Bem no peito. Pá! Um baque surdo. Ela vem caindo batendo nos troncos.  Um dia minha mãe perguntou: “Porque você mata os pobrezinhos meu filho?” Eu não sei, respondi. Deve ser essa raiva que tenho dentro de mim. Tem dias que o sol nasce, ali por trás daquele morro, onde fica a caixa d’água, e eu fico olhando como é que o sol é tão pontual assim chova ou faça calor ele vem subindo, acordando todas as criações o galo índio de Dona Jandira é sempre o primeiro a cantar, e desce do poleiro e as galinhas começam a ciscar e os pintinhos atrás tudo com aquela alegria de está vivo e comendo aquelas migalhas que ficam no chão e eu tem dia que nem quero acordar, fica um vazio assim bem no peito e eu fico de lado na cama olhando tudo com o rabo do olho, e vejo as aranhas todas fazendo as teias para os bobos dos insetos caírem para serem comidos e nessa terra tudo ou é presa ou predador e o homem é predador dele mesmo, pois tem hora que acordo com vontade de morrer ou matar, depois é que vou pensando nas coisas boas que existe, aí me lembro de Amanda aquela calça apertada deixando ver o vinco bem no meio das pernas dela um voluminho assim de pastel de queijo, perco a vontade de morrer. Guardo a rolinha no embornal. Ela está viva e quente. Observo que a pedra a feriu de raspão. Sinto na palma da mão seu coração bater apressado. Ter a vida de alguém em nossas mãos nos dá certo poder. Olho em volta. Só silêncio.
Caderno de anotações:
“Quando conto casos, e escolho palavras de baixo calão, sinto que isso me dá prazer.”

         
De cima do morro observo a casa, uma tapera de três cômodos. Vejo o entra e sai. Mainha na janela. Todas as tardes eu vejo ela se aprontar, como agora, e ficar horas na frente do espelho, passar batom, pó de arroz e depois colocar uma música no gravador, e ficar na janela cantando, se fazendo de feliz à espera dos clientes, nunca entendi uma mulher fazer amor com muitos homens, mas ela se arrumava todo aquele trabalhão, coloca uma roupa que mostra as carnes dela, que sinceramente esta cada vez fosca e seca como casca de árvore velha, e depois vai para a janela e fica sorrindo e cantando como se fosse feliz, mas eu via muitas vezes discussões aterrorizantes, e aí ela falava mal, se debatia, chorava, e ficava fumando, o olhar longe, perdido em alguma coisa, esperando talvez a esperança, que era a última que morre.
Caderno de anotações:
                         “Há amores de todos os jeitos.”


             
Da janela eu vejo um vulto. É o Nego. Troco a música da vitrola. Como eu fui cair naquela. Naquele dia eu fui me confessar e o padre, aquele sem vergonha de italiano, quando eu contei minha vida ele ficou com aquele olho pidão e aí deu pena dele, quando ele tirou a batina, e me agarrou na sacristia. Eu sei que padre é homem, tem suas necessidades, mas por azar eu estava nos meus dias férteis. Aí engravidei. Mas ele me ajuda, manda-me dinheiro, só pede segredo absoluto e eu jurei para ele e jurei para Deus para que Ele perdoasse esse pecado. Fico sorrindo aqui para esconder minha tristeza.
Entro calado. O quarto dela na frente, depois o corredor e o meu. Daqui vejo a cozinha. Algumas panelas no fogão. O quarto dela tem uma cama de casal, um guarda roupa, e no canto da janela um oratório cheio de santos. Era força de todo o dia pedindo perdão dos pecados e se confessando. No meu quarto uma rede, meu conforto que eu quando deito puxo as pontas para me cobrir e esqueço o mundo lá fora dos predadores e sento-me seguro ali bem no fundo da rede. Essas coisas são banais, dormir, pesadelos tristezas, aflições; isso faz parte da vida de toda gente. E temos que acordar no outro dia.
Caderno de anotações:
                         “A vida passa à dispensa de nós.”

           
Essas coisas mesquinhas que eu conto, sou impelido a isso, pois elas querem sair de qualquer jeito. Minha vida, minha infância passou assim tão ao largo de mim, parecia que eu próprio não vivia. E minha vida amorosa constava duas mulheres. Amanda que eu fazia de tudo para esquecer, e a vizinha, uma menina miúda, que todos os dias, pontualmente às seis horas da tarde chegava e enquanto eu lia um gibi, ela sentava-se perto de mim calada, abria meu calção, enfiava a mão dentro e ficava manipulando-me. Era um ritual. Não passava disso. Às vezes nos agarrávamos escondidos por trás das portas mais eram umas ou outras vezes e mesmo assim não beijávamos. Era tudo em silêncio. As palavras não eram necessárias. Um dia criei coragem e quando estávamos dentro do guarda roupa perguntei:
      -Você me ama?
Ela ficou calada um tempo e depois respondeu:
      -Não! Isso é impossível.
      -Por quê?
      -Você é inacessível!
Aí eu a interpelei:
      -E por que você vem aqui em casa religiosamente todos os dias a mesma hora e fica fazendo isso, que me constrange e a você também sobremaneira?
 Ela olhou para mim, dentro dos meus olhos e disse:
      -Por que eu necessito.
Depois disso nunca mais nos falamos. Até o dia em que a família dela mudou-se para longe. E na partida choramos muito.
Caderno de anotações:
               “Às vezes apaixonamos por coisas.”


             
    
Junho passou com a copa, julho choveu e agosto se foi.
Chegou setembro com alegria da natureza. Alguns ipês floridos nas colinas.
Acordei com a cabeça doendo.  Mainha ficou preocupada por que quando eu chorava com dor a coisa era séria, pois coisa pequena eu não dava bola.
      -Vamos à farmácia ela falou. Seu Mamede estava vestido com o jaleco branco. No bolso o nome Farmácia Santa Rita. Ele olhou para mim levantou a porta do balcão me pôs para dentro e com a mão na minha cabeça disse sorrindo:
      -É a cara suja e lavada dele meu Deus!
Eu tirei a mão da minha cabeça com um safanão, não gostava dessas intimidades, e perguntei:
      -O que tem a minha cara?
Ele não foi o primeiro e não vai ser o último a dizer isso, mas eu fico puto e mandava todos tomar naquele lugar.  Um dia cheguei para minha mãe e gritei:
      -Quem é o meu pai? Ela desconversou, foi falando esse povo daqui são todos uns fofoqueiros! Não liga filho!”Dizia minha mãe vermelha de raiva. Mas um dia, chegando da rua, a ouvi dizer de alguém. Ela calou-se quando eu entrei. Desconversou, começou a cantar disse que estava cheia de afazeres e que eu já sabia de toda a história e o que contasse diferente era mentira. Ainda falei que era tudo besteira. Acrescentei ainda:
       -Eu pareço mesmo é com você e com mais ninguém! Fui comer. Estava varado de fome. Tenho os olhos dela. Quando ela me pega pelo rosto e fica passando o nariz dela no meu, sinto o cheiro bom dela. Ela ri da minha vergonha. Chama-me de besta. Pareço com ela em tudo. Também não tenho com quem parecer mais. Ela disse que meu pai foi para a guerra na Itália e não voltou. E diz que ele foi um herói. Para mim, isso não tem importância alguma. Herói! Herói! Herói uma pinóia.
 Aí Seu Mamede perguntou-me se eu já havia estado com alguma mulher. Não entendi.
      -Quero saber viu, se você já fez as coisas, num sabe, com uma mulher.   
      -Não conto meus segredos para estranhos!
      -Não importa ele disse. Venha aqui. Abaixa o calção. Eu tinha quatorze anos. Já tinha um pouco de penugem. Ele olhou para meu “pinto” vazando um líquido amarelo e disse sorrindo com aquela cara enrugada de cavalo:  
      -Nesse caso meu garoto, é só com injeção! Olhou para a minha mãe.
      -A senhora sabe né, orgulhe-se, pois seu filho já é homem! E bendita a penicilina! Em uma semana estará tinindo. Entre!    
Ele era conhecido por mão leve, pois a injeção não doía nada, e minha mãe nos seguiu.  Ali fedia a álcool, amônia e outros medicamentos terríveis. Ele colocou a agulha, jogou um jato para cima e veio para o meu lado.
      -Fica firme aí meu rapaz, e pic no meu braço. Eu só não soltei um palavrão nem sei por que, mas a puta da injeção foi dolorosa prá caralho. Ninguém tomava sem chorar. Trinquei os dentes na hora. Eu não era de choro não. Sempre engoli minhas lágrimas. Ainda falou:
      -Não precisa pagar Dona Sílvia, fica por conta!
Eu sabia como ela acertava essas contas.
Caderno de anotações:
              “Além do amor, o sexo paga conta também!”

               
       -Herói! Herói! É conversa para boi dormir. Eu preferia um pai covarde e vivo a um herói morto.
Meu palpite ganhou, o jogo seria na rua da zona, perto do rio e ficou acertado que na segunda era boa que a gente fosse preparando o terreno, cortar alguns tufos de mato, limpar as bostas de vacas, marcarem o campo com cal, a marca dos pênaltis, a grande área, a pequena, a meia lua, colocar as quatro bandeiras fazer as traves.
 Eu vivia com a malícia da vida vivida na rua, da liberdade do crescimento entre as ervas daninhas e a natural lei da sobrevivência onde sobrevive o mais forte não se sabe se para o bem ou o mal da humanidade.
Caderno de anotações:
          “A sobrevivência é uma luta diária com nós mesmo.”

        
Eu devo falar daquela doença. Foi um dia quando vinha pela margem do rio. Uma menina lavava roupa. Eu fiquei olhando. Meu calção subiu.
      -Vem cá?
      -Vou para o treino!
      -Um pouco! Você é tão bonito!
      -Não carece!
      -Só um pouco!
       -Tá bom!
Entrei no rio. Ela me beijou. Juro que foi bom. Descobri que ela era banguela.
      -Como perdeu seus dentes?
      -Meu pai, bateu e quebrou! Aí eu fugi de casa!
      -Ah! Não faz mal! Estava nos braços dela.
Eu pegava nela. Nos seios também. Gosto de pegar logo nas áreas proibidas. Ela beijou-me novamente. Era bom. Molhado, quente e úmido. Depois eu fui alisando as pernas dela. Aí ela queria me empurrar dizendo não! Não!  Eu insistindo. Quando consegui chegar com os dedos lá bem no meio das pernas notei que estava bem molhado aí sem perda de tempo, aproveitando um descuido dela, eu soquei o dedo. Entrou igual na bezerra. Aí fiquei mais aliviado. Menina furada era mais fácil. Como ela tinha dado para não sei quantos caras, não merecia respeito. Aí aproveitei que meu pau tava dura que nem ferro e enfiei todo. Gozei logo.
Caderno de anotações:
“Não sei por que conto essas coisas, não interessa a ninguém. Isso interessa só a mim. Isso é segredo. Uso essas pérfidas anotações para alívio. Quando escrevo um palavrão, uma sacanagem é como eu atirasse merda no ventilador. Gosto da podridão girando, deixando os outros inconformados e irados. Quando destilo veneno fico leve. Essas coisas são detalhes de uma vida pequena, sem amor, sem nada, mas serve como vazante, como o pus que vasa do tumor. Alivia as dores. É válvula de escape.”



              
No outro dia senti uma ardência no canal e veio o diagnóstico. Blenorragia.  A penicilina foi um santo remédio.
Chegou o grande dia.  O jogo do ano. Era dezembro e as árvores de natal já brilhavam nas janelas. Passamos na farmácia e tomamos a vitamina. O entorno do campo estava cheio, as meninas da zona aproveitaram o dia para faturar mais, e vestiram as roupas curtas. Algumas mulheres torceram o nariz. Tinha moleque vendendo roletes de cana caiana, balas e doces. Seu Nilson tinha comprado fogos de três tiros. A taça estava em cima de uma mesinha na beira do campo e quando entramos todos passaram a mão para dá sorte. O juiz chamou os capitães no centro do campo e deu instruções. “Quero jogo limpo, entrada faltosa vai tomar cartão e se insistir vai pro chuveiro mais cedo. Foi feito o sorteio. Eu escolhi jogar contra o vento, pois do outro lado tinha o sol.
Logo no início do jogo Birita enfiou uma bola para mim de três dedos e eu dominei com a perna esquerda e bati de peito do pé. A bola bateu no travessão e voltou quicando no terreno e saímos comemorando, mas o juiz invalidou dizendo que a bola não entrou. Reclamamos muito, mas não teve jeito. Seu Nilson gastou um foguete à toa.
Depois quase no final do jogo teve um pênalti a nosso favor. O goleiro deles quase quebrou Birita ao meio.
Quando me preparava para bater ouvi um grito e uma voz conhecida. Era Amanda.
      -Faz esse gol para mim menino! Eu acenei para ela. Não podia perder.
 Peguei a pelota e no que colocava a bola na marca da cal, o goleiro veio ao meu encontra, sabia que era para catimbar, já estava preparado, ia chutar no canto esquerdo dele, onde ele tinha mais dificuldade. Foi aí que ele bateu as luvas uma na outra e falou aquilo que me cegou completamente.
      -Seu pai é o padre, aquele italiano!
Caderno de anotações:
                      “Não devemos confiar nem em padre.”

    
Corri para a bola com raiva e na hora de chutar troquei o canto. Passou rasteiro perto da baliza. Fora! Alguém gritou. Eu corri no corner onde guardava as minhas coisas, peguei do canivete e enfiei no sovaco dele. O sangue escorreu. Muita gente gritando Assassino! Assassino!
Caderno de anotações:
“O problema do homem é a sobrevivência. E essa luta é diária contra a morte. Uma luta ingrata, pois no fim ela chegará de um jeito ou de outro. Criei uma casca que me encobre, deixando-me forte e intocável, e essa por assim dizer é a vida que tenho. Essas coisas vis e podres é o que tenho de melhor para oferecer. É o meu silêncio, minha dureza e toda minha cólera e meu desprezo. Nada a mais.”

            

                                                      ***

Dez anos se passaram e estou dentro do ônibus voltando. Já não sou o mesmo. Soube que o padre morreu. Tudo o que eu queria. Melhor assim.
O ônibus está lotado, é dia de feira e tem muita coisa no chão do corredor. Legumes, cereais e animais para serem vendido na feira livre.  Olho pela janela os locais que eu vivi. Tudo passa lentamente. Tudo do mesmo jeito: O colégio, a praça, a diferença é o tamanho reduzido. Até a torre da igreja diminuíra. Parecem mais desbotados, gastos, deploráveis e chego a pensar, Urra! Como consegui viver nessa pocilga? Os olhos agora são outros. As maiorias das crianças vêem colorido. Eu cinza.
 Os pneus rangem descendo a ladeira e vejo a pequena cidade por trás da poeira e minha garganta quase tranca e meus olhos marejam. Olho as planícies em volta. Que fim levou meus amigos?
A vontade é de procurá-los, abraçá-los, saber das novidades e olho em volta, talvez algum deles por ali, mas a rua está deserta, só um moleque querendo carregar as malas por um trocado e o movimento dos feirantes. Coloco os óculos escuros e saio em direção à rua do rio, e lembrei-me de Amanda beijando na boca do cara, ele com as mãos nas nádegas dela e ela alisando o rosto dele com as unhas pintadas e de olhos fechados.
Ando mais devagar. A maneira dos felinos. Sempre desconfiado. O sol vai caindo. As sombras se alongam pelo chão. Eu e a mala. Tiro a jaqueta. Lugar quente dos diabos! Sou uma sombra alongada a meus pés.
Naquele dia, depois da missa e de ver aquela cena, passava por aqui mesmo apressado e vi uma rolinha na copa de um angico. Peguei o estilingue e mirei com cuidado. Pá! Um baque surdo. Ela veio caindo batendo nos troncos.  Minha mãe perguntou depois: “Porque você mata os pobrezinhos meu filho?” Eu não sei, respondi. Deve ser essa raiva que tenho dentro de mim. Ela me olha. Tem dias que o sol nasce, ali por trás daquele morro, onde fica a caixa d’água, e eu fico olhando como é que o sol é tão pontual assim chova ou faça calor ele vem subindo, acordando todas as criações o galo índio de Dona Jandira é sempre o primeiro a cantar, e desce do poleiro e as galinhas começam a ciscar e os pintinhos atrás tudo com aquela alegria de está vivo e comendo aquelas migalhas que ficam no chão e eu tem dia que nem quero acordar, fica um vazio assim bem no peito e eu fico de lado na cama olhando tudo com o rabo do olho, e vejo as aranhas todas fazendo as teias para os pequenos insetos caírem e serem comidos e nessa terra tudo ou é presa ou predador e o homem é predador dele mesmo, pois tem hora que acordo com vontade de morrer ou matar depois é que vou pensando nas coisas boas que existem, aí lembrava Amanda aquela calça apertada deixando ver o vinco bem no meio das pernas dela, um volume assim de pastel de queijo, aí já não pensava em morrer. Ainda disse que a raiva era do meu pai que não conhecia. Porque isso de herói eu não engolia. Era conversa para boi dormir.
-Eu preferia um pai covarde, mas vivo.
Coloquei a rolinha no embornal. Ela ainda estava quente. Observei que a pedra a ferira de raspão. Senti na palma da mão seu coração bater apressado, a vida de algo em nossas mãos nos dá certo poder. Sentei no tronco do quintal e a peguei na mão. Os olhinhos pequeninos. Torci o pescoço devagar, ela contorceu-se esticou as canelas e morreu.
Caderno de anotações:
“A morte é transparente. Quando ela chega damos contorções iguais ao gozo.”

               
Olho em volta. Só silêncio. Sei que depois daquela descida íngreme, vem a curva da aroeira e depois o rio. Cheguei a casa.
     -Mainha! Maínha!
Ela reconhece a voz. Vem correndo.
Como ficou diferente. Pele e osso. As carnes flácidas. Ajeita o cabelo.
      -Meu Deus do céu! O que foi feito de meu filho? Um homem! Esses anos todos sem notícias! Pensei mil coisas até que você tinha morrido.
      -Estou aqui em carne e osso.
Pega minhas coisas da mão, uma jaqueta e a mala e leva ao quarto.
      -Mas o que importa é que você está de volta e lindo de morrer. Puxa-me para o claro. Deixa-me ver! Passa as mãos nos meus cabelos. Fico sério.
      -E a turma como está?
      -Aconteceu tanta coisa... Depois te conto.
      -Advinha quem está morando comigo?
      -Não tenho a menor ideia!
Ela vai pelo corredor, levanta o pano que divide os cômodos e grita lá para dentro.
      -Vem cá menina, vem ver quem apareceu! E olha como está lindo!
Eu espero em pé, meio de lado. Surpreendo-me a novidade.
Ganhou mais corpo. Mais seios. Mais cabelo. As unhas ainda vermelhas um pouco descascadas. Só os olhos diferentes. Já não sorriem mais. –
      -Amanda?
      -Ah! Estou toda descabelada, desarrumada... Se eu soubesse...

       Caderno de anotações:
                
                        “Uns são presas, outros são predadores.”    
                                                        Fim