sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Um click









                                        
                                            Um  Click



          Mario enfim acordou. Ressaca braba. Cansado. Coou o café. Tomou.  Pelando.  Na cabeça a ideia roendo como rato no porão. Como ferrugem comendo o ferro. “Tenho que acabar com isso!”.  Chega de sofrimento! Fitou a janela. A cena de todos os dias, as pessoas passando ao sol implacável e incandescente da rua, dos passeios sujos das fezes dos cães e pombos. Cospe em cima da marquise.

          Vai ao quarto e pega uma caixa sobre o guarda roupa. Bate o pó e tira as teias de aranha.  Tosse seca. Toma um gole de café. Embrulhado em um pano azul a arma. Do tempo que trabalhou como segurança na firma de pneus. Olha-a bem. O metal escuro e frio. Pega um a um os projéteis e vai colocando no tambor. Lembrou de um filme que o mocinho fazia aquilo. Colocava um e rodava, colocava outro e rodava. Dava uns estalos secos de metal.  Até encher. O chumbo pesa. Fecha um dos olhos e fica um tempo olhando a mira. Reta e certa. Senta á beira da cama. Planeja o local onde cairá. Não quer se machucar. Se tudo correr bem vai cair sobre o velho colchão.

          Vestiu-se com uma calça jeans, uma camisa de manga comprida e fez questão de colocar uma cueca nova comprada no dia anterior.  Ouviu no ônibus duas garotas conversando: Uma dizia: A roupa de baixo tem que ser nova. Se por acaso a gente der um troço na rua e precisar ser levada para um hospital, você sabe que lá nos põe quase pelados, e imagine menina, - dizia a mulher mais nova, para a outra que segurava com força o ferro para não cair nas curvas, - imagina a vergonha de está com uma calcinha ou cueca rasgada?  Riram até se fartar. Ele olhava nesse momento os postes passando rápido num frenesi louco. Ele não esqueceu.

           Agora pensava desse modo. Domingo é um bom dia. Todos ficam em casa com os seus. Ele morava sozinho. Olhou-se fixamente para o espelho, vê seu rosto amassado, barba por fazer, olhos quietos nas órbitas. Tenho que escrever algo, pensa.  Todos escrevem algum motivo. Ele não tem um em particular. As pessoas se ligam mais na explicação que na morte. O que explicaria uma morte assim? Uma fuga? A perda de um amor? O sofrimento? A covardia? A coragem? Ou não tem explicação palpável?

          A vida é tudo que temos. E a morte é a única certeza que temos. Sendo certeza, antecipá-la  seria um ato de coragem? O que dizem os filósofos?
Segundo Schoppenhauer  a pior coisa que pode acontecer a alguém é nascer. Sêneca dizia que era uma vantagem dos homens sobre os demais animais: a possibilidade de, metaforicamente, ir embora da vida. Já Nietzsche pregava a morte livre, sem sofrimento e pecado.

          Mário escreveu faz tempo seu recado.  Era curto. Levava-o sempre consigo, no bolso da camisa.

         Foi ao dentista ontem. Um dente do ciso não lhe dava sossego. E mandou colocar também a coroa que faltava na frente.  O dentista falou para ele: Sr Mauro tem que cuidar mais dos dentes. É nosso cartão de visitas. Mandou arrumar tudo. O que os outros vão pensa quando o acharem sem vidas. Coitado, era um desvalido, sem dente, banguela! Resolveu tudo no mesmo dia. Parcelou de dez vezes. Quando chegou no consultório o dentista de branco, uma barbinha ridícula, segurava-o a todo momento  pelo queixo. Seria bom um implante aqui, umas restaurações acolá, uma profilaxia, e ficará novo. O seu plano não cobre seu Mário.  Faria o que estava ao seu alcance. Tirou o molde, e o dentista colocou uma prótese, cheia de metal. Mandou olhar no espelho. Continuou o papo.

           Depois você coloca algo melhor, uma fixa, ou um implante. Agora tudo está mais fácil, divide-se em pequenas parcelas até perder-se de vista. Vou fazer para o senhor na ficha mesmo, pois é meu paciente de anos, sempre pagou certinho e não é dessa vez que não vai pagar não é seu Mário. Só se eu morrer doutor, ele disse rindo.  Não acredito Mário. Está cheio de saúde. Nunca se sabe doutor. Basta esta vivo para morrer.O dentista veio com o espelho. Sorria disse. Ele abriu os beiços para espelho. Está bom. A secretária ainda o bajulou. Ficou ótimo seu Mário. Agradeceu.
Fugiu dali, o mais rápido possível.

         Sentiu o envelope no bolso.  Uma sonolência o abateu e foi para casa e dormiu pesada a manhã inteira.
Agora frente ao espelho. O braço direito ergue-se, a arma engatilhada, aponta para o céu da boca. Liga o rádio. Um programa inicia-se. Segura o dedo.

          O programa chama-se “Histórias Divinas”.  São aqueles que enchem as rádios de conselhos, um padre atende as ligações dos ouvintes. A voz é suave. Mário alivia a pressão no gatilho.
  Uma mulher ao telefone. A voz desesperada.  Soluços. O padre é calejado. Tem empatia. Como à senhora chama, ele pergunta. Maria, padre, Maria Soledade! 
Pois não Maria Soledade conte sua história”. A voz impostada do padre.
“Padre eu estou muito triste, pelo suicídio do meu tio padre! Faz seis meses que estou tentando falar com o senhor...
O dia Chegou Maria... Continue...
Pois então padre. Esse meu tio tinha depressão. Aliás, a família toda tem. Eu mesmo depois da morte dele, tenho andado muito triste padre.
Não esmoreça filha... Mas me explique. Ele fazia tratamento contra a depressão? 
Sim padre. Mas às vezes ele largava os medicamentos para beber.
Entendo... Ele era casado?
Sim padre. Cinco filhos!  
E na família teve outros casos de suicídio?
Teve padre. É o que está me deixando totalmente sem chão. Ouve-se Choro. 
Chore filha! Desabafe...
Uma música suave de fundo.
Olhe Maria Soledade...  A senhora faz tratamento contra a depressão?
Faço padre, mas tem hora que jogo tudo para o ar.
 Não faça isso minha filha! Olha, procure uma igreja, aí na sua cidade deve ter, procure o padre da paróquia. Vá à missa. Ore. Ore todos os dias e não largue o tratamento... Deus faz a parte Dele, mas precisamos fazer a nossa também... Maria Soledade, você sabia que Muitas vezes o que segura alguém de se matar é o temor a Deus?
Sim Padre!
Você teme a Deus?
Sim Padre!
Vou fazer uma oração para os desesperados e depressivos. Acompanhe-me, por favor.
 Sim padre!
A música a  Ave Maria de Gonor.
Mario aumenta o volume. Olha pela janela os transeuntes apressados. Os olhos suaves, de paz.
O padre: “Liberta Senhor, as pessoa de suas culpas, perdoa os seu pecados, tire senhor esses pensamentos maléficos, cure-os, com a gota do redentor... Maria depois veja o capítulo 16, versículo 6, dos provérbios, “Pela misericórdia  e verdade a iniqüidade é perdoada, e pelo temor do Senhor os homens se desviam do pecado”.
O padre segue falando:
Meu Deus estamos na vossa presença, para pedir humildemente, Que essa história familiar, cesse, agora, que leve esse pensamento embora, Esses pensamentos negativos, leve embora, que todas as famílias que estão passando por dificuldades, senhor, os desempregados, os que estão em hospitais, os enfermos de qualquer natureza, seja físico ou psicológico Amém!
Amém padre!
Como é bom uma oração não é Maria Solidade! Dá uma paz!
Espere um pouco no telefone, Maria , que vamos aos comerciais.
 No comercial  uma clínica de cirurgia plástica,Promete milagres para as mulheres, milagres em suas aparências, Um seio perfeito, um rosto sem rugas...
Mário, olha para o espelho. A imagem invertida. Engraçado. Desse modo  a arma parece na outra mão.  Outra pessoa. O rosto magro. Olheiras escuras. Um ser estranho,seria ele?
“Maria Soledade!
Sim Padre.
Está mais calma?
Sim padre. Meu medo é depois, quando eu desligar o telefone, a solidão padre.
Não fique só Maria. Alias nunca estamos sós. Você esquece que Deus nos guarda em todos os momentos? Que Ele é onisciente e onipresente?
Vamos fazer uma oração a todos os que suicidaram.
Uma oração se desenrola sem interrupção. O pai nosso. Uma ave Maria.

          Mário acompanha a prece.

Por último o padre diz: E que todos descansem em paz.
E  Maria,  não esqueça que “O homem planeja seu caminho, mas é Deus quem dirige seus passos!”.
Fique com Deus Maria Soledade, e todos os ouvintes. Estaremos amanhã no mesmo horário.

          A música toma todo o ambiente, enche o quarto, sai pela janela rumo ao firmamento.

          Ele se sente dono dos seus passos. Incrivelmente poderoso com essa liberdade de escolha. Tudo se encontra em suas mãos. A vida já não é arriscada. É como um botão de liga e desliga.
Sente o calor do  sol quente  lá fora.
O dedo está rígido. O tato no metal é duro e frio.
O som do rádio se foi. Um click seco.
O transito na hora do rush.  Cheiro de gasolina e óleo diesel. Uma gota de suor desceu na fronte. Ardeu o olho. O cheiro de café continuou no quarto.

         -Ah! Essa liberdade. Tanto poder dá ânsia. O livre arbítrio da escolha de vida ou morte.

          Hoje escolheu a vida; até quando não sabia.


A cidade de barro


                                                       




                              A cidade de barro


          
 Seu moço eu vou contar tim tim por tim tim a história desse pedaço de torrão que um dia foi um feliz povoado. Puxa a cadeira e senta aí nesse tamborete e toma um café. Não repara a bagunça. Vou contar em atalhos para não cansar o senhor.

          No início tudo aqui era a fazenda do finado seu Egídio.  Ele tinha mais de cem escravos no cultivo e colheita do café. Depois da crise do café o filho dele Seu Eupídio arrancou o cafezal e passou a criar gado de leite e corte. Isso bem depois da lei áurea e a mão de obra se tornar escassa.

          Com o movimento de sobe e desce de pião nessas paragens ele achou por bem abrir ali na encruzilhada um armazém, bem sortido de secos e molhados. Tinha de um tudo um pouco. Ali paravam tropeiros, fazendeiros, mascates, peregrinos e todo tipo de gente. Esse comércio prosperou tanto que em volta ele construiu sua morada  um amplo bangalô  todo avarandado que fez vir de Ouro preto as telhas coloniais e depois foi construindo aos poucos  casas para alugar aos seus empregados.

          O certo é que em meados de mil novecentos e quarenta e cinco já possuía uma rua de mais ou menos cem metros de casas geminadas dos dois lados. No meio delas uma capelinha, bonita que só vendo, eu fui batizado ali.  A padroeira é a virgem Maria.No lado de lá mais distante montaram um cabaré da Dona Sônia e uma delegacia. Tinha dois ladrões: Um que gostava de comer a galinha dos vizinhos e o doido José que roubava as mulas para passear e fazer besteiras com elas encostado nos barrancos.   Na virada do morro um pequeno cemitério com umas cruzinhas de madeira enfeitadas de rosas amarelas.

                 Na maioria das vezes a cadeia se encontrava  vazia, pois o lugar era tão pacato  que se alguém andasse pelado ao meio dia era capaz de ninguém notar. Os pacatos habitantes que não somavam mil  essa hora estavam seguramente  tirando uma sesta, pois por aqui não havia chegado  a televisão e o rádio era artigo de luxo e só onde tinha um era no armazém onde o povaréu se juntava aos sábados em redor ouvindo as notícias vindo de longe.  Dizia-se que o tempo aqui não passava.   Nem as novidades chegavam. Passavam ao largo deixando-nos quietos em nossa vidinha de pequena vila perdida  no sertão das Minas Gerais. O relógio da torre quando tocava as doze badaladas, o som metálico do bronze ecoava  tão longe nas  serras  que o eco quando voltava   monótono  e leitoso  pesava na cabeça dos viventes.

           Essa era a nossa vida moço. Acordar cedo. Tirar leite. Plantar a roça, comer e dormir de novo. Essa era a batida de todos os dias. E ninguém reclamava. Todo mundo gostava. Éramos por assim dizer um paraíso perdido.
Pois bem, um belo dia, um político passou por aqui e conversa vai e conversa vem com o dono do armazém  falou do besouro azul, que já era hora desse belo povoado se tornar  um distrito e  Seu Eupídio ficou tentado e pediu que esse condenado desse político intercedesse  na capital por nosso povoado.  Enfiou na cabeça de um e de outro que em se tornado distrito  era aquilo e aquilo outro, que o capital ia olhar para essas bandas esquecidas que era capaz de alguma firma se interessar  e montar algo nessas paragens e se tornando distrito logo se tornaria uma cidade  e em o asfalto dando as caras aqui nessa terra longe do mundo e de Deus tudo mudaria como um passe de mágica. Que ia melhorar nossas vidas e até poderia trazer uma torre repetidora de televisão e antenas para termos nossos celulares. Jogaram toda essas lorotas que conhecemos. E moço um dos pecados da gente é a ganância. E todos cresceram os olhos.
            Dito e feito. Um ano depois passamos a distrito. Teve uma festança ali na praça por dois dias. O armazém faturou os burros de dinheiro e a pensão nunca teve tão cheia. Depois dessa festa dizem que os jovens estavam mudados  isso porque Das Dores, achou no lixo umas  tal de “camisinha de Vênus” e diversas lanças perfumes trazidas pelos da capital. Teve comentário raivoso do vigário no sermão de domingo.

            Eu mesmo não notei diferença alguma, eu queria era paz e tranqüilidade, tínhamos nossas criações, nossas roças, onde o boi pastava tranqüilo, os canários vinham cantar nos nossos terreiros, nossos riachos tinham águas límpidas, olha que eu bebia  na palma da mão mesmo, uma água boa, leve e viva seu moço.

          O que me deixou fulo da vida foi saber que  ao passar a  distrito fomos obrigados a pagar impostos, inventaram  taxas e mais taxas  de tudo que é coisa e jeito e eles diziam que era para termos direito a uma melhor saúde, educação saneamentos.  Quando recebi  o carnê tinham invadido a vida da gente e mudaram até o nome do povoado. De “Duas porteiras” passou a ser chamado de São Sebastião do mato a dentro. O absurdo que eu achei moço é que agora pagávamos as coisas que eram nossas de direito. Imposto de terra, lotes de casas, IPTU e  até conta de água. Não vi vantagem alguma dessa de povoado virar distrito. Mas a maioria achou, só porque colocaram um posto de saúde que o médico vinha uma vez na semana, e acredite, passamos a ter mais doença, pois antes era só verme, bicho de pé, cobreiro e era tratado aqui mesmo pela benzedeira  Maria Preta que aprendeu a arte com sua mãe que foi a primeira escrava que conseguiu a alforria aqui.

          Pois bem, vai olhando onde entramos bem. De pouco ou nenhum dinheiro, pois todo o comércio era tudo feito na base do escambo, passamos a devedores e tínhamos que pagar de nosso lucro e bolso para uma cidade vizinha pois passamos de um povoado livre a um distrito subjugado a outra prefeitura a outra cidade a outras gentes. Veja só onde enfiamos nosso burro. Pois bem, vai escutando.

           Apesar disso tudo isso acontecendo moço, me adesculpe o que vou falar, mas o fumo ainda não tinha entrado nada. Faltava o resto pra acabar de arrombar. Vai vendo.

          Um dia de agosto, sempre esse mês agourento, chegou um engenheiro aqui, foi tirando fotografia com uma máquina bem moderna subindo as ribanceiras, anotando em bloco de papel e eu bem olhando desconfiado tudo aquilo e ai de súbito eu perguntei para ele o que era toda aquela curiosidade por nossas terras. Ele nem olhou para mim. Anotando algo em seu bloco, disse seco, que trabalhava para uma grande mineradora, gente rica que estavam  interessados em montar algo grande aqui.

           Vejam como são as coisas. De povoado viramos distrito e aí devemos taxas e mais taxas e viramos devedores e aí é necessário vir às indústrias para compensar e toda essas porcarias que poluem e tiram nosso sossego.

           Na época tentei tirar mais algo dele, do engenheiro, prometi-lhe uma pinga boa de cabeça que eu fabricava no pequeno engenho, mas ele escorregava mais do que peixe goiamum. Contou pouca coisa. Ele abriu a boca mais para  a dona da pensão e a notícia se espalhou como praga.

           Nossos filhos você sabe, os jovens tem ambições e começaram a falar aos quatro cantos que tudo seria bom, que ia dá emprego, a vida ia melhorar, era capaz que no futuro até construíssem shoppings essas coisas modernas e todos ficaram cegos em seus sonhos e desvarios.

           E chegaram as máquinas. Vieram cortando as estradas, alargando, derrubando árvores, trocando cancelas, plainando , abaixando morros, cobrindo riacho e eu aqui ó só olhando desconfiado pensando comigo, essas coisa não pode dá certo. Se Deus fez aquilo assim era para ser daquele jeito. Onde tinha pedra eles arrebentavam com dinamite. As criações sofreram essa época. Deus o livre. Os gatos e cachorros quando desconfiavam já corriam todos para debaixo das camas.

          Passou o resto do ano inteiro zuando como maribondos lá para o lado da serra. A dona da pensão aumentou o número de mesas já que os choferes e seus ajudantes desciam as onze horas,  esfomeados na maior algazarra e o lucro foi enorme. O dono do armazém soltava fogos de artifícios toda sexta quando fechava o caixa.

          Pode notar seu moço que essas coisas só dão certo para os capitalistas. O povo mesmo come o que o diabo amassou. Vai vendo.

          Mas o mal seu moço anda pelas veredas. Esconde-se atrás das portas, vai à missa, anda com a gente. Para a população não faltavam serviços. Embora fossem uns serviços assim, mais parecido com a escravidão.

          Não sabiam coitados que eram meras peças de dominós enfileirados. Se um caísse todos iam juntos.
               Tarde soubemos que o principal, a firma de mineração seria instalada na terra do político, na cidade vizinha moço, pra nós aqui disseram que iam construir uma grande barragem para guardar, tal de “rejeito”.

          Rejeito moço interpretando as palavras do engenheiro é a mesma coisa que acontece com nós, segundo ele,mesmo se comermos salmão ou outra comida de gente rica vamos defecar merda. Fedorenta mesmo.

          A mineradora é do mesmo jeito. Retira o minério, vende por um bom dinheiro trás o progresso, mas tem seus rejeitos também. E assim teriam que construir uma barragem para guarda-los.

          Aí entra a ganância.  Acho que isso é que faz muita gente ser cúmplice de mal feito.  Só visam os lucros. Pois quando souberam da construção da barragem para depositar os tais rejeitos os donos de terra ofereceram glebas e mais glebas. O engenheiro ainda falou que iam pagar bem  e que otários eram quem não aproveitassem tal negócio que aparece assim uma vez na vida outra na morte. Frisou segundo sua palavra em total segurança sem risco algum para a população.

          Eu ainda pedi a palavra e disse que se não tinha risco algum, porque não construía por  lá mesmo. Aí ele disfarçou e mostrou para os proprietários de terra a quantidade que a firma precisava, seriam terras devolutas imprestáveis e pagariam bem.   
 E como a população já estava com as mãos sujas um pouco mais não fazia diferença. E aí ofereceram terras para o feito. A mineradora escolheu  uma que ficava entre os três morros.

           Prometeram não  interferir nos pastos, nem nas nascentes, nem nos rios etc e etc e tal, podíamos dormir tranquilos.
          Todos menos eu.
          Eu observava as máquinas trabalharem dia e noite. Cavavam , juntavam, levavam, despejavam como um grande formigueiro. E aos poucos a barragem ia tomando forma.

          Um caminhão de vez em quando descia em desabalada carreira, levantando poeira para pegar o óleo aqui embaixo, nos tonéis azuis que os moleques brincavam rolando por cima. Eu tinha dado fé disso. Que um dia podia pegar uma criança dessas.
 
          Um dos choferes um dia percebendo um cão atravessar a estrada em vez de frear acelerou e passou  em cima do coitado. Pegou bem no quarto traseiro. Desceu do caminhão pegou um martelo de bater no pneu para saber a libra, e desceu com força na cabeça do coitado. Quando ele viu que eu vi,  desculpou-se dizendo que era para o bichinho não sofrer mais. Puta que o pariu eu pensei.

           Comecei a xingá-lo dizendo para ele que eles só trouxeram desgraça, que inda hoje uma mulher da vida montou casa lá no fim da rua e não eram como as da Dona Sônia não, eram muito mais exibidas,  para servi-los e que nosso distrito aumentou a violência,  já não tinha só ladrão de galinhas que aumentou o numero de furtos e estava de mal a pior. O homem entrou no caminhão, cuspiu para fora e acelerou.

           Fui ao armazém e contei a todos que estavam por ali esses  atribuíram essa maldade do chofer ao cansaço e ao estresse do trabalho e que no outro dia iríamos falar com o chefe deles.  Eu mantive distancia desses elementos. No dia seguinte quando fomos procurar eles na pensão soubemos que a barragem estava pronta e que eles tinham voltados todos para a capital de madrugada.

          Pois bem, a barragem surgiu assim entre os três morros como milagre. Para os moleques serviu como mais um recanto para as brincadeiras, pois rolavam em papelão na maior velocidade e foi preciso o chefe da barragem que ficava averiguando tudo de uma casinha construída para isso bem do alto olhando de binóculo, dá ordem para dois brutamontes atirarem na bunda de quem ousassem ultrapassar seus limites.

          -Um tiro de sal ele disse. Bem na bunda!

           Dizem que um tiro desses deixava o alvejado uma semana sem poder sentar. Pois bem, mesmo com esses brutamontes e o risco do tiro de sal as crianças não pararam de subir a barragem para suas estripulias.  Brincavam constantemente de se esconder, de salto com vara e de vez em quando os bombeiros eram chamados para serem retirados de dentro da lama.  Não adiantavam castigos, pancadas; as crianças puramente se cativaram pela barragem.

          Até eu que não sou fácil de me enganar caí na armadilha seu moço. Até bem pouco tempo atrás eu subia lá, para vê o por do sol, ou levar uns passarinhos, soltar pipa ou até ficar de bobeira olhando tudo em volta.

              Era bonito lá de cima. Até o padre da igreja um tempo desses discorreu num sermão imenso, a respeito da felicidade que era ter uma empresa desse porte no distrito ter escolhido nosso  para implantar tão importante empresa  deveríamos nos orgulhar imensamente.  Até o açougueiro que existia ali na esquina, moço, acostumado a derrubar boi brabo e matar na mão enfiando o punhal entre os chifres  gabava bem a barragem, que tem seu respeito; se um ou outro que falava mal, vê-se logo que era por despeitos, não tiveram seus filhos empregados e tiveram que sair da cidade. No mais todos a respeitavam. Era Deus no céu e a mineradora na terra.
 O dono do armazém já contava como certa sua candidatura a primeiro prefeito da cidade se nosso distrito virasse um dia cidade.  Sobre a existência de minério especulou-se que foi um gringo que passou há muito tempo por aqui, colecionando insetos principalmente borboletas. Não só as borboletas  mas cortejando   a filha de Matilde a costureira que depois criou sozinha um filho desse americano que fugiu logo que soube da gravidez.

         Ela é quem ultimamente ficou a cargo de desenhar o uniforme da mineradora e inventar o logotipo.

          Não sou hipócrita em dizer que a barragem  não nos trouxe coisas boas.  Claro que trouxe. E  fazia parte de nossa paisagem. Estávamos tão acostumados com a barragem ali, parecendo um velho crocodilo parado que se um dia ela desaparecesse,  eu nem sei o que aconteceria, nem ousava falar. Transformou-se em orgulho e pessoas de cidades vizinhas vinham aqui só para vê-la.   Chegavam aos montes em ônibus e carros particulares e iam direto para seu dorso tirar selfies e mais selfies.

          Mas moço o pior da história eu vou contar agora. Foi de noite. Chovia solto. Parecia que São Pedro tinha aberto todas as torneiras do céu. Isso foi. As goteiras caiam dos canos na grossura de três dedos assim ó. Só vendo. Os riachos enchiam rápidos e eu aqui matutando fumando um rolão que havia comprado no armazém. 
             Meio ressabiado com tanta água  vesti a capa de chuva, foi minha salvação, e saí para ali onde tem aquela touceira de bambu gigante. Pois bem. Quando cheguei ali ouvi uma espécie de estouro lá pra riba. Diacho eu pensei. Foi então que resolvi subi ali no ponto mais alto de onde podia avistar a barragem. Foi no momento que vi com esses olhos que a terra há de comer, a parede da barragem rompendo feito um bolo que partimos na mão.

          E aí seu moço, comecei a gritar e correr mais para o alto, e veio aquele mundão de lama cobrindo tudo, as casas, os carros, os bichos as pessoas. Mas não dava para vê tudo, estava escuro. Só de vez em quando ouvia um grito e um relâmpago clareava  a paisagem marrom.

          Só de manha seu moço ai deu vontade de chorar. Sabe aquilo tudo que você construiu com suor e muita luta tudo debaixo de lama. A igrejinha só se avistava a cruz. Lá de cima a lama veio rasgando a terra e ficou como uma ferida profunda. Tinha carro pendurado nos tetos das casas. De vivo tinha eu e um cachorro que ressabiado tentava se livrar da lama. Depois vocês souberam moço. Veio televisão do mundo inteiro. Diz que essa água barrenta chegou até o mar. Eu não duvido. Agora busco meus direitos. Um direito que jamais vai ser totalmente resolvido. Prometeram construir nosso distrito noutro canto. Eu estou vivo graças a Deus, mas, meu coração esta partido.

         Nada vai ser igual. Uma cidade construída assim não tem alma. Cidades projetadas não têm curvas nem esquinas.
Agora veja o que sobrou de nossa “dois Riachos”. A maioria das casas, das ruas desapareceu.

         O que parece agora? Veja com seus olhos. Uma cidade fantasma. Sem vida. Sem pássaros, sem peixes sem borboletas, sem gente.
O que nos levou a isso? A ganância seu moço. A arrogância.
Agora veja o que se parece?

  Uma obra inacabada. Um esboço de barro de uma cidade perdida.