sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Um click









                                        
                                            Um  Click



          Mario enfim acordou. Ressaca braba. Cansado. Coou o café. Tomou.  Pelando.  Na cabeça a ideia roendo como rato no porão. Como ferrugem comendo o ferro. “Tenho que acabar com isso!”.  Chega de sofrimento! Fitou a janela. A cena de todos os dias, as pessoas passando ao sol implacável e incandescente da rua, dos passeios sujos das fezes dos cães e pombos. Cospe em cima da marquise.

          Vai ao quarto e pega uma caixa sobre o guarda roupa. Bate o pó e tira as teias de aranha.  Tosse seca. Toma um gole de café. Embrulhado em um pano azul a arma. Do tempo que trabalhou como segurança na firma de pneus. Olha-a bem. O metal escuro e frio. Pega um a um os projéteis e vai colocando no tambor. Lembrou de um filme que o mocinho fazia aquilo. Colocava um e rodava, colocava outro e rodava. Dava uns estalos secos de metal.  Até encher. O chumbo pesa. Fecha um dos olhos e fica um tempo olhando a mira. Reta e certa. Senta á beira da cama. Planeja o local onde cairá. Não quer se machucar. Se tudo correr bem vai cair sobre o velho colchão.

          Vestiu-se com uma calça jeans, uma camisa de manga comprida e fez questão de colocar uma cueca nova comprada no dia anterior.  Ouviu no ônibus duas garotas conversando: Uma dizia: A roupa de baixo tem que ser nova. Se por acaso a gente der um troço na rua e precisar ser levada para um hospital, você sabe que lá nos põe quase pelados, e imagine menina, - dizia a mulher mais nova, para a outra que segurava com força o ferro para não cair nas curvas, - imagina a vergonha de está com uma calcinha ou cueca rasgada?  Riram até se fartar. Ele olhava nesse momento os postes passando rápido num frenesi louco. Ele não esqueceu.

           Agora pensava desse modo. Domingo é um bom dia. Todos ficam em casa com os seus. Ele morava sozinho. Olhou-se fixamente para o espelho, vê seu rosto amassado, barba por fazer, olhos quietos nas órbitas. Tenho que escrever algo, pensa.  Todos escrevem algum motivo. Ele não tem um em particular. As pessoas se ligam mais na explicação que na morte. O que explicaria uma morte assim? Uma fuga? A perda de um amor? O sofrimento? A covardia? A coragem? Ou não tem explicação palpável?

          A vida é tudo que temos. E a morte é a única certeza que temos. Sendo certeza, antecipá-la  seria um ato de coragem? O que dizem os filósofos?
Segundo Schoppenhauer  a pior coisa que pode acontecer a alguém é nascer. Sêneca dizia que era uma vantagem dos homens sobre os demais animais: a possibilidade de, metaforicamente, ir embora da vida. Já Nietzsche pregava a morte livre, sem sofrimento e pecado.

          Mário escreveu faz tempo seu recado.  Era curto. Levava-o sempre consigo, no bolso da camisa.

         Foi ao dentista ontem. Um dente do ciso não lhe dava sossego. E mandou colocar também a coroa que faltava na frente.  O dentista falou para ele: Sr Mauro tem que cuidar mais dos dentes. É nosso cartão de visitas. Mandou arrumar tudo. O que os outros vão pensa quando o acharem sem vidas. Coitado, era um desvalido, sem dente, banguela! Resolveu tudo no mesmo dia. Parcelou de dez vezes. Quando chegou no consultório o dentista de branco, uma barbinha ridícula, segurava-o a todo momento  pelo queixo. Seria bom um implante aqui, umas restaurações acolá, uma profilaxia, e ficará novo. O seu plano não cobre seu Mário.  Faria o que estava ao seu alcance. Tirou o molde, e o dentista colocou uma prótese, cheia de metal. Mandou olhar no espelho. Continuou o papo.

           Depois você coloca algo melhor, uma fixa, ou um implante. Agora tudo está mais fácil, divide-se em pequenas parcelas até perder-se de vista. Vou fazer para o senhor na ficha mesmo, pois é meu paciente de anos, sempre pagou certinho e não é dessa vez que não vai pagar não é seu Mário. Só se eu morrer doutor, ele disse rindo.  Não acredito Mário. Está cheio de saúde. Nunca se sabe doutor. Basta esta vivo para morrer.O dentista veio com o espelho. Sorria disse. Ele abriu os beiços para espelho. Está bom. A secretária ainda o bajulou. Ficou ótimo seu Mário. Agradeceu.
Fugiu dali, o mais rápido possível.

         Sentiu o envelope no bolso.  Uma sonolência o abateu e foi para casa e dormiu pesada a manhã inteira.
Agora frente ao espelho. O braço direito ergue-se, a arma engatilhada, aponta para o céu da boca. Liga o rádio. Um programa inicia-se. Segura o dedo.

          O programa chama-se “Histórias Divinas”.  São aqueles que enchem as rádios de conselhos, um padre atende as ligações dos ouvintes. A voz é suave. Mário alivia a pressão no gatilho.
  Uma mulher ao telefone. A voz desesperada.  Soluços. O padre é calejado. Tem empatia. Como à senhora chama, ele pergunta. Maria, padre, Maria Soledade! 
Pois não Maria Soledade conte sua história”. A voz impostada do padre.
“Padre eu estou muito triste, pelo suicídio do meu tio padre! Faz seis meses que estou tentando falar com o senhor...
O dia Chegou Maria... Continue...
Pois então padre. Esse meu tio tinha depressão. Aliás, a família toda tem. Eu mesmo depois da morte dele, tenho andado muito triste padre.
Não esmoreça filha... Mas me explique. Ele fazia tratamento contra a depressão? 
Sim padre. Mas às vezes ele largava os medicamentos para beber.
Entendo... Ele era casado?
Sim padre. Cinco filhos!  
E na família teve outros casos de suicídio?
Teve padre. É o que está me deixando totalmente sem chão. Ouve-se Choro. 
Chore filha! Desabafe...
Uma música suave de fundo.
Olhe Maria Soledade...  A senhora faz tratamento contra a depressão?
Faço padre, mas tem hora que jogo tudo para o ar.
 Não faça isso minha filha! Olha, procure uma igreja, aí na sua cidade deve ter, procure o padre da paróquia. Vá à missa. Ore. Ore todos os dias e não largue o tratamento... Deus faz a parte Dele, mas precisamos fazer a nossa também... Maria Soledade, você sabia que Muitas vezes o que segura alguém de se matar é o temor a Deus?
Sim Padre!
Você teme a Deus?
Sim Padre!
Vou fazer uma oração para os desesperados e depressivos. Acompanhe-me, por favor.
 Sim padre!
A música a  Ave Maria de Gonor.
Mario aumenta o volume. Olha pela janela os transeuntes apressados. Os olhos suaves, de paz.
O padre: “Liberta Senhor, as pessoa de suas culpas, perdoa os seu pecados, tire senhor esses pensamentos maléficos, cure-os, com a gota do redentor... Maria depois veja o capítulo 16, versículo 6, dos provérbios, “Pela misericórdia  e verdade a iniqüidade é perdoada, e pelo temor do Senhor os homens se desviam do pecado”.
O padre segue falando:
Meu Deus estamos na vossa presença, para pedir humildemente, Que essa história familiar, cesse, agora, que leve esse pensamento embora, Esses pensamentos negativos, leve embora, que todas as famílias que estão passando por dificuldades, senhor, os desempregados, os que estão em hospitais, os enfermos de qualquer natureza, seja físico ou psicológico Amém!
Amém padre!
Como é bom uma oração não é Maria Solidade! Dá uma paz!
Espere um pouco no telefone, Maria , que vamos aos comerciais.
 No comercial  uma clínica de cirurgia plástica,Promete milagres para as mulheres, milagres em suas aparências, Um seio perfeito, um rosto sem rugas...
Mário, olha para o espelho. A imagem invertida. Engraçado. Desse modo  a arma parece na outra mão.  Outra pessoa. O rosto magro. Olheiras escuras. Um ser estranho,seria ele?
“Maria Soledade!
Sim Padre.
Está mais calma?
Sim padre. Meu medo é depois, quando eu desligar o telefone, a solidão padre.
Não fique só Maria. Alias nunca estamos sós. Você esquece que Deus nos guarda em todos os momentos? Que Ele é onisciente e onipresente?
Vamos fazer uma oração a todos os que suicidaram.
Uma oração se desenrola sem interrupção. O pai nosso. Uma ave Maria.

          Mário acompanha a prece.

Por último o padre diz: E que todos descansem em paz.
E  Maria,  não esqueça que “O homem planeja seu caminho, mas é Deus quem dirige seus passos!”.
Fique com Deus Maria Soledade, e todos os ouvintes. Estaremos amanhã no mesmo horário.

          A música toma todo o ambiente, enche o quarto, sai pela janela rumo ao firmamento.

          Ele se sente dono dos seus passos. Incrivelmente poderoso com essa liberdade de escolha. Tudo se encontra em suas mãos. A vida já não é arriscada. É como um botão de liga e desliga.
Sente o calor do  sol quente  lá fora.
O dedo está rígido. O tato no metal é duro e frio.
O som do rádio se foi. Um click seco.
O transito na hora do rush.  Cheiro de gasolina e óleo diesel. Uma gota de suor desceu na fronte. Ardeu o olho. O cheiro de café continuou no quarto.

         -Ah! Essa liberdade. Tanto poder dá ânsia. O livre arbítrio da escolha de vida ou morte.

          Hoje escolheu a vida; até quando não sabia.


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