quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

A sombra

                                  A sombra





          Angel, inquieto, observava as folhagens. O vento chacoalhava forte e levavam as folhas e as nuvens para longe. O dia claro. O céu límpido, de brigadeiro. Todas as manhãs ele era posto a brincar ao ar livre, cuidados da mãe, para crescer com saúde e bons ossos.  A mãe o tinha lavado, penteado e vestido.

          De modo que essa manhã corria de um lado para o outro, com um avião de papel cruzando mares e montanhas distantes. Os mares eram poças da chuva que caíra de madrugada. As montanhas um entulho de areia e pedra, restos de uma construção.
Parou no final. Olhou os paralelepípedos brilharem ao sol. Depois de observar um tempo talvez chegasse à seguinte conclusão: não era lá uma rua, porque tinha só quatro casas. A dele, azul com varanda e caixa de correio, a da viúva Dona Joaquina, com a goiabeira que servia de poleiro para os passarinhos, a de Celso, um sobrado imponente e frio e uma quarta recém construída novinha em folha.  Do lado direito, um terreno baldio.

          Angel estendeu o braço e jogou-o pela enésima vez: “com a força dos trovões”, gritou e observou admirado, o voo silencioso e acrobático da aeronave se aproximar do meu rumo, passar próximo da janela e depois de uma curva bonita no ar, pousar em perfeita aerodinâmica a seus pés.

          Ele, Angel estava excitadíssimo. Quem seriam os novos moradores, tentasse assim adivinhar?  Hoje usava cabelo de franja na testa, bermuda de linho cinza, camisa de marinheiro e uns sapatos pretos engraxados, até o brilho máximo.  Soube que apertavam-lhes os dedos, era do ano anterior, ele disse.
Pegou a aeronave e observou se havia algum dano. Nenhum.  As asas perfeitas, o bico incólume. O piloto ileso. Após uns segundos inertes, pareceu que notou algo admiravelmente estranho, pois andou de um lado par o outro.

          -Que incrível! Dissera. Aprendera essa palavra com seu pai, quando o homem pisou pela primeira vez na lua. E ele a repetia agora. –Incrível! Incrível! Tanta complexidade!
Analisou que a seus pés algo se mexia.  E o que fosse aquilo, o imitava descaradamente. Seriam extraterrestres que após o bisbilhotamento do homem a lua veio investigar-nos?

          Juntando-se essa nova, mais o ímpeto infantil, dizia-se dele hoje, sem dúvida nenhuma, uma espoleta só, no frenesi das mariposas em voo para a luz.
Nisso parou do outro lado, mais atento.

          Então, balançou o braço esquerdo e observou que a coisa também.  Depois o braço direito, as pernas e foi dificultando para desmascarar o imitador. Assim deram algumas cambalhotas e incrédulo ao perceber que a coisa o seguia em todos os movimentos, nos mínimos detalhes, mesmo os mais difíceis.  
Acenou-me.  Acenei de volta com o dedo polegar em riste, para que ele não pensasse que estava ficando “biruta”. Pois quem o olhasse, pensaria no mínimo que ele estaria em apuros, fugindo de abelhas ferozes.
Pelo contrário ele se divertia a “bessa”.  Corria, gargalhava, se equilibrava no meio fio.
Passou a manhã inteira assim. Em êxtase. É sóbrio dizer que não há felicidade completa. Há uma incompletude nas coisas.
  De tempos em tempo a mãe o olhava pela janela e sorria. Abanava a cabeça como quem dizia:

          -Ah! As crianças! Que mundo mágico o deles!
Quando na mesa para o almoço talvez contasse a novidade para a mãe. Talvez ela sorria e dissesse:

          -Ah! Angel! Angel! Você é um sonhador.

          Deve ter comido as carreiras, pois logo apareceu. E quando saía a mãe pediu-lhe para voltar e escovar os dentes. Fez isso sem discutir. Comeu também todo o legume com gosto de mato. Tudo. Mostrou para a mãe o prato limpo.
Angel foi andando e a coisa o seguindo e quase esbarrou na menina que apareceu de repente ao seu lado. Ele ficou um pouco desconcertado eu sei. Mas fingiu bem.

          -Oi! A menina disse.  Ela segurava uma boneca pela perna e os cabelos loiros tocavam o chão. Fiquei curioso.

          -Oi, respondeu Angel.  E completou: -Ufa! Quase te atropelei!
-Por um triz! Ela disse sorrindo. Era uma menina dos seus nove anos.
Os olhos dela era tão azul que confundia com o céu.

          -Você é a nova vizinha? Angel perguntou.
          -Sim! Em carne e osso. Ela tentava agora se equilibrar no meio fio.
Eu sorri no meu canto.
          -Eu sou Angel, - aquele acolá É Celso. Quis esconder-me, mas depois acenei. Entrei sem querer em cena. Ela acenou para mim também.
          -Maria Isabel Ptolomeu, mas pode me chamar de Bel. Ouvi-aela falar bem explicado.
Ela sentou-se ajustando o vestidinho às pernas brancas que nem cera. A boneca no colo. Disse: 

          -Vamos brincar?

          -De que? Respondeu Angel. Eu fiquei calado. Não tem muita brincadeira que eu goste. Só se for passa anel, ou adedanha. E tem que ser com perguntas difíceis.
Mas ela gritou:

          - Esconde esconde!
          -Epa! Foi a exclamação de Angel.

Desci. A empregada empurrou-me até a rua. Aqui está bom, disse. A menina olhou-me de cima a baixo. Parece até que ouvi falar: “Mas e ele assim...”. E não é que Angel parece ter dito algo como, “pois é, mas a mãe dele quer que, a todo modo que ele brinque, para socializar e divertir”.
A menina olhou para o alto. Depois falou:
          -Ok! Mas quem conta primeiro?
          -Meu amigo ali o Celso.
Logo concordei. Não tive escolha. Afinal o diferente era eu.
Antes de começar ela queria saber tudo. Por que eu não andava, qual o problema.

          -É de nascença eu disse, para acabarem de vez as especulações.
Ela olhou para mim. Fiquei no canto da parede e comecei a contar. Achei engraçados, uns pontinhos de suor no nariz dela.
Comecei a contagem. 1, 2, 4, 3, 7, 10, 90... Não sabia contar direito.
Eles correram.  Virei-me e fui à caça. 

          Os paralelepípedos eram pontudos, fazendo-me chacoalhar na cadeira. Sem demonstrar fraqueza fui galgando uma a uma. Alias estou ficando perito em ser forte.  Forte em não demonstrar meus verdadeiros sentimentos. Cheguei frente ao muro da dona Joaquina, uma lagartixa correu assustada, parou na frente e ficou me olhando. Balançou a cabeça duas vezes.  Olhei através dos tijolos vazados. Gritei:

           -Angel! Atrás do pé de goiaba!

           Nisso Isabel apareceu correndo do terreno baldio. Tocou no poste atrás de mim. Ela tinha se salvado. Na corrida o vestido subiu um pouco a cima dos joelhos. Agora eu tinha que correr até o poste também. Assim com furor, puxei as rodas violentamente. Não podia perder essa. Quase caí para trás. Seria uma fatalidade. Um menino quase imobilizado cair da cadeira de roda de pernas para o ar. A cena seria grotesca demais eu pensei. Eu tinha que chegar primeiro. Angel saltou o muro e veio correndo como um cavalo louco. Dei tudo de mim. Os rolamentos rangeram em velocidade.  Parecia que eu remava contra a correnteza. Toquei no poste primeiro. Ufa! Foi por pouco!

          Olhei a rua. A palma da mão doía. Via tudo como se olhasse para um abismo.  Mas pensando bem, sobre o abismo pode-se voar. Era só criar asas.
Agora era Angel quem contava. A brincadeira continuou até quase anoitecer.
Podíamos brincar mais uma vez até o sol se pôr. Isabel contou. Eu corri para um esconderijo que só eu sabia. Correr era metáfora. Minha mãe adorava essa metáfora. Perseguia-me nos passeios dizendo, corre, corre corre. E eu ria muito.
De onde eu estava dava para vê-los tranquilamente sem ser visto. Angel foi para o mesmo lugar. Vi quando Isabel aproximou-se dele, conversaram alguma coisa, ficaram bem próximos, acho que Angel afagou-lhe seu rosto e beijou-a rapidamente. Mas ela não gritou.  Pensa bem, quando Isabel viu Angel era para ter gritado que o tinha achado. Assim eu gritei:

          -Parei de brincar disso!

 Isabel era muito curiosa. Por exemplo: queria saber de tudo, de minha vida particular. Queria saber como eu fazia pipi, se eu nunca ia andar, nem correr. Mas tirei essas perguntas difíceis de letra. Fingi que tudo era igual. Que minha casa era apropriada.  O vaso era mais baixo, tinha corrimão em todos os lugares. Depois queria dirigir minha cadeira. Até correu comigo. Tive que usar os freios. Ela queria até trocar de lugar comigo, para ver como era andar de cadeiras de rodas. Depois a convenci que não era necessário. Era só usar a imaginação.
Comecei brincar com ela de quem pisca primeiro.
Ficamos assim olho no olho. Ardia pra “chuchu”. É lógico quem piscou foi ela. Usei o truque de ficar concentrado numa pintinha que ela tinha bem embaixo do queixo. Entre a covinha. Ela tem o nariz um pouquinho, só um pouco arrebitado.  Descobri que ela era teimosa como uma mula. Confesso: Ela me fazia perder o fôlego. Quando estávamos assim no bem bom, eu descobrindo ela pelos seus olhos, Angel mudou de assunto.
          -Agora que somos íntimos, vou contar um segredo! Disse ele.
          -Certo! Cada um conta um! Entrei na brincadeira.
          -Mas tem que ser aquele segredo que te dá arrepios! Disse Isabel com sua eloquência.
Assenti em silêncio.
          -Olha aqui!
Angel pediu para olharmos para ele.  E ficou feito bobo balançando os braços. Pergunta:
          -Não observaram nada?
          -Não! Dissemos eu e Isabel em uníssono.
Ele balançou a perna direita.
          -E agora?
Ficamos olhando para ele calados.
          -Aqui seus burros, não vêem? Apresento para vocês o meu mais novo amigo. Vejam! Tudo que eu faço ele faz também.
          -Ah! Que legal! Eu tenho também! Gritou Isabel. Olha! Correu pela rua.
Eu não estava bom com eles não. E aí gritei:
          -Dois idiotas! Os dois são idiotas! Não vêem que isso, que nos imita, que não larga da gente é simplesmente uma sombra! Que todos têm! Aliás, toda matéria tem. As pedras, as árvores... Tudo.
Eles ficaram um pouco chateados. Aí Isabel para não ficar envergonhada disse:
          -O vento não tem!
          -Claro que não! Continuei. Existem coisas que não vemos, mas sentimos!
          -E as nuvens têm? Angel mostrou uma nuvem com a forma de um touro.
          -Tem. Fraquinha, disse Isabel. Quando está pesada de chuva. Aí sim tem.
Nesse momento parecia que Isabel olhava para mim. Os olhos pequeninos, azulzinho, miúdos. Já conhecia os olhos dela quando ficavam assim miúdos. Disse ela:
          -Ah! Agora já sei! A sombra é a cópia do corpo. Apontou com o dedo.  - Veja a sua. Parece uma cadeira ambulante.
Fiquei pálido. Mas já sabia fingir. Movimentei a cadeira. Fiquei por trás dela. E disse:
          -Veja! Estou te abraçando! E alongava minha sombra sobre a dela.
          -Tá nada! Ela disse se encolhendo.
          -Agora estou te beijando, veja! Continuei a brincadeira.
Aí ele me cortou gritando:
          -Tá nada ela disse ainda, quase chorando. Como não sinto?
Eu destilando minha raiva.
          -A sombra é assim mesmo sua tonta! Não a sentimos, não tem cheiro, mas existe.
Angel Observou:
          -Sabia que depois do meio dia ela só vai crescendo, ficando comprida até desaparecer?
          -Claro! Até o sol se pôr. Angel disse. – Veja a cadeira como está comprida. Apontou para mim.
Aí eu gritei:
          -E você, é uma besta quadrada!  Achava que a sombra era uma pessoa! Que imbecilidade!
Depois ficamos um tempo calado.
Aí Angel deu-me o avião. Joguei com força. Fez uma curva aberta, subiu e veio embaralhar nos cabelos de Isabel. Caímos na gargalhada.
          -Bem feito. Eu disse. Ela pegou o avião e o rasgou.
          -Agora conta o teu segredo, falou Isabel olhando para mim.
Eu olhei bem dentro dos olhos dela e disse:
          -Meu sonho é ser escritor, eu disse.
Ela corou.
          -Grande coisa, disse ela.  Vai ser um pedinte. Escrever não dá dinheiro! Embora tem muitos que...
Não completou. Alias Angel não deixou:
          - Fala o seu agora, queremos saber!
          -Então tá, ela falou. Olhou para o céu, depois para o chão e disse: 
          -Eu estou apaixonada!
Ficou cutucando o chão com uma varinha. Naquele tempo paixão era uma palavra. O significado não levava a ação. Sabia-se apaixonado e só. Não se beijava nem se abraçava. Era uma coisa distante como o sol. Estava lá em cima. Intocável.

Rimos. Falamos na mesma hora.
          -Que coincidência!
Ficamos os três olhando para o chão. Ela falou:
            -Sabia que a sombra nasce com a gente e só nos larga quando morremos?
          - Quando meu avô morreu não prestei atenção! Angel disse.
          - Será que tem um mundo só das sombras? Disse Isabel pensando.
Deve de ter, eu pensei. Achei Isabel um pouquinho fria, uma personalidade pedante.
Aí Angel contou a surpresa:
          -Sabia que hoje é meu aniversário?  E que vocês estão convidados?
 Os dois ficaram correndo em volta de mim até cansarem. Rimos muito.

                                                              *
          

          Meu pensamento divagava, longe nessa história singela. Fazia na mente o mesmo que pescadores experientes fazem. Usam e abusam de engôdos diversos para ludibriar suas presas. Difícil escapar, pois os peixes morrem pela boca.
Depois de estudar por anos a estrutura, nos diversos livros que falam da poética, ainda não achei por assim dizer, o graal, isto é a estrutura que dê ao texto, simplicidade, autenticidade, compreensão, forma, para atingir o ápice.
Copiei, copiei e copiei. Criei pouco ou quase nada. Como disse o velho Mago do morro do livramento, “Há histórias que não pertence ao autor nem o título...”
Eu queria usar essa história como isca, não importando os personagens que são meros coadjuvantes, nem a história que é banal, mas uma frase que a personagem feminina disse e a levei para toda a vida:
“A sombra é cópia do corpo!”.

Nesses anos todos, já se passaram quarenta anos, construir um catálogo de obra razoável.  Tenho vários romances depositados em bibliotecas pelo mundo a fora. Outros tantos dormindo numa pasta esquecida do computador. No início eu queria só a glória, ser reconhecido, ser eterno.
Mas verdadeiramente escrevia para uma única pessoa. Isabel. Mas era indescritível a dor da incerteza. Queria que por acaso uma das obras minhas tivesse caído em suas mãos e ela ao ler desse um suspiro. Mas isso é um sonho impossível.
Um ano desses, chamaram-me para uma mostra em minha cidade natal. Relutei. Não me achava preparado. Arrumei uma desculpa qualquer, estaria escrevendo um novo título, e assim não parava nem para comer. Uma mentira razoável. Soube que tem escritores que agem assim. Deixaram-me em paz, portanto.
Um ou outro livro meu, os críticos deitaram algumas vezes o olhar. Se, gostaram não sei, mesmo por que, isso perdera a importância. Entre tantos títulos houve alguns Best-Sellers que entupiram minha conta. Foi uma época de orgias e prazeres.
  Mas só de sexo e comida não vive o homem. Principalmente quando a fama e dinheiro vêm desses romancezinhos que escrevemos de um fôlego só: raso, entupido de sexo e ação. Mas que o grande público adora.
Não cuspo no prato que comi isto não, pois essa fase ajudou-me, na jornada. Afinal foram esses textos que pagaram minhas contas, viagens, mulheres, bebidas...
E a história de um escritor não é nada mais do que, a jornada do herói.  Assim devemos colocar todos os elementos inerentes na estrutura para que a vida seja aprazível.
Porém são essas nuances que me deixavam na maioria das vezes constrangidos, pois parecem imitações baratas.
Nesse afazer, “solitário”, o escritor é a soma de tudo que viu que leu que viveu que sentiu...
Desses atos acima acredito piamente na leitura.  Pois a respeito da vida, vive a vida dos outros. A leitura essa sim é: salvação e perdição.
Muitas vezes somos criticados por criar, meros pastiches. Acredito que sim. Todos esses anos tento livrar-me dessas influências, e até empaco como burro frente a uma lauda, e nesses dias de sofrimento, as páginas são só preenchidas após muito suor e lágrima.
E são nesses dias dolorosos que me vem a frase dita por uma criança pura, mas que parecia um corvo, o mesmo que assombrou outros escritores. Pois estaremos sempre andando em direção ao abismo. E o corvo piando.
Quarenta anos se passaram.  E a frase martela dia e noite em minha cabeça.
Um belo dia recebi um e-mail que dizia:
“Sr. Celso Furtado da Silva, convidamos o estimado escritor, para participar do primeiro numero de nossa revista de arte”.  
Com o objetivo de criar, como dizia o texto, o enlace harmonioso autor/leitor, era o principal motivo para o lançamento da revista, a “pro - letras”, e dizia em seguida que eram para abrir espaço para literatura, artigos sobre educação, política, saúde, notícias, vídeos, imagens  e artes diversas, em português e outros idiomas.
Para aguçar a curiosidade, dizia ainda, “a revista, apesar de recente, já conta com autores conhecidos, e de renome mundial” e citava alguns nomes. Uns conhecidos e outros nem tanto. Enfim avisava que, “para escrever na pro - letras é necessário fazer a inscrição e aguardar um e-mail de aprovação, mas que meu nome já tinha sido aprovado pela diretora e produtora Dr. Isabel Ptolomeu.
Bem antes desse e-mail, soubera por um conterrâneo, (temos esse terrível defeito de querer saber da vida dos amigos, no intuito de medirmos as vitórias e também os fracassos) que Angel se tornou piloto de caça da força aérea. Que também adorava esportes radicais.
Já Isabel tinha se tornado uma médica super reconhecida mundialmente e pelo que sabia até ali tinha mudado para São Paulo.  Até aqui morreu o neves, eu disse. Nunca mais nos vimos.
 Tenho montanhas de anotações. Essas anotações estão numa pasta que a denominei de secreta. Que antes dessa correspondência, não tinha ideia de editá-las e muito menos publicá-las.   Pensava: essas jamais vão brotar. São sementes podres. Jamais serão romances. Jamais será algo. Não pela qualidade.
Mas por que fiz a vil promessa, de escrever uma lauda diariamente, sem usar nada conhecido, nenhuma estrutura que seja, a não ser, o inconsciente. Isso por que meu sonho era escrever uma obra maior, sem interferência externa, vir de um embrião sem pai e sem mãe.
E tais anotações foram-se se acumulando, num espaço dedicado ao entulho. Mas o pandemônio do tempo é estarrecedor. Vem como uma máquina fora dos trilhos.  E assim escravo deste monstro que criei, todo dia, tal autômato, vou dedilhando as teclas, e estas formando palavras, frases, orações, parágrafos, numa loucura inimaginável. Imagine alguém que se furte a vida inteira a amontoar pedras a beira de um caminho. Formará uma montanha sólida, mas amorfa. Foi o que aconteceu comigo.
E os anos foram passando um a um. Lia dez vezes mais do que escrevia.  As coisas iam ficando inacabadas.  Acumulando, criando mofo, perdendo as cores.
E aí surge esta oportunidade de cuspir tudo para fora. Colocar tudo e talvez conseguir o reconhecimento de Bel. Meu Bel de outrora.
Queria provar que ela estava errada.
E assim dia e noite fui tirando da pasta secreta um por um e editando-os (o trabalho prazeroso dos cortes), pra que o texto fique o mais enxuto possível.


Em seis meses ficaram prontos.  Justo quando dei por acabados uma notícia estarrecedora: Isabel tinha morrido num acidente, voltando para casa. Quem me contou disse ainda: Um acidente bobo, perto de casa.
E agora como eu ficaria? Como a responderia?
Meu luto foi curto. Lembro que fiquei atarantado uma semana. Sem comer e nem sair. Depois  já estava comendo, bebendo e fazendo sexo normal.
Os escritos é que submergiram.
Tudo foi jogado numa gaveta e esquecido por um longo tempo.
Só hoje quando completaria dez anos de seu falecimento pude reler alguma coisa.
Sou categórico em dizer: Nessa vida somos tudo: Puta, bandoleiro, cafetão, jornalista, poeta, dentista, médico, empresário, juiz, mocinho, bandido, ditador, médico etc. e etc. Tudo o que queremos ser.
Tinha a ideia megalomaníaca de ser Deus. Um deus à beira do abismo.  O olhar no vazio. Um olho no inferno outro no paraíso.
Esse tempo todo na lida, copiando,estudando diversos autores para melhorar os textos.  Meu sonho era escrever “O Romance”. O grande texto.  Assim enquanto escrevia amenidades, Li o sistema de Stanislavski: Em que diz: O primeiro aspecto do sistema é colocar o inconsciente para trabalhar. O segundo é: Assim que se inicia, deixe-o de lado (leave it alone).
Ele dizia que o subtexto é tudo aquilo que o ator ou personagem, diz, não com as palavras, mas com o corpo. E é justamente aí onde se encontra o graal.
Aí eu passei a anotar as falas de pessoas comuns. Nas ruas nos bares, em casa.  O que interessava mesmo eram as ações.  Na face está o que não se diz. A verdade crua.  E acredito que o ator completo, é aquele, que além de falar o texto, passa o que está nas entrelinhas.  “O que vem para a face, estão nas dobras do texto”. Um personagem pode dizer: Eu te odeio, e transparecer para o público: Eu te amo! E vice e versa.
Assim foi quando, há exatos oitenta anos aquela menina, Bel disse:
-As sombras são a cópia do corpo, a sua se assemelha a uma cadeira!”“.

 E só agora depois de longos anos tenho a coragem de respondê-la:
“As sombras sim, existem. Falo agora categoricamente. Mas só do corpo. A alma é transparente. E ela a sombra, nas nos abandona na morte. A alma sim”.
Digo mais:
  “A sombra, a terrível sombra que todos temem, é somente cópia do corpo, não da alma”.


       Brasil, 29 de Dezembro de 2016








quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Aleppo

                                                                      


                                                Alepo



O sol nascerá amanhã com os raios dourados
Ouro esparramado, sobre o solo, estéril de Alepo?
Cidade em ruína, ao relento do tempo,
Dos inocentes mortos, crianças
Maioria, órfãos de amor,
De tudo afinal,
Gritos inocentes,
Vida inútil e vã
Entre forças
Descomunais,
À sombra e socapa
da retina cega do mundo,
Genocídio, guerra infame,
A despeito das bombas e rajadas,
o silencio aterrador
Dos humanos,
Desumanos que
Por fim gritarão:

-Feliz natal! Feliz ano novo!

sábado, 12 de novembro de 2016

Longe dos olhos de Deus









                 Longe dos olhos de Deus


E ele disse-lhe: Porque temeis, homens de pouca fé? Então, levantando-se repreendeu os ventos e o mar, e seguiu-se uma grande bonança.

Primeira:

           Cruzamento da Rua Aristides Fagueiro com a esquina da morte. O movimento intenso de carros e motos. Eu a vi por instante. Ela estava feliz.  Via-se claramente em seus olhos. Uma moça alta, olhos claros, bem bonita, com seus vinte anos.
Quando atravessava a rua um carro azul veio em disparada e pegou-a em cheio. Fez um barulho surdo. 
Morreu na hora.
O trânsito todo parou. Só o atropelador não. Eu corri para vê-la. Aliás, todo mundo.
Virgínia era seu nome, agora todo mundo sabia. Pois ela segurava nas mãos firmes e bem pintadas, esmalte vermelho, seu convite de casamento escrito a mão:
                            
“Lindo é quando alguém escolhe pousar ao teu lado, podendo voar. Podendo encontrar até outros ninhos, outros caminhos, escolhe ficar.
Parece mentira... Resolvemos nos casar.
Dizem que é loucura... Mas esse é o privilégio de amar”


Um convite simples.  Desenhos de pássaros nas bordas.
Embaixo o nome dos noivos:
                            
                    Virgínia & Leandro


Segunda:

Meia noite, hora das feras saírem. Numa rua, um vulto trabalha silencioso no quintal. Com as mãos faz um buraco. Não tão fundo nem raso demais. A terra é escura e molhada com a neblina. Isso dificulta sobremaneira o trabalho do homem. Sim é um homem. Anda em pé e usa um chapéu de palha. Observa o buraco. Mede com um dos braços. Quando se dá por satisfeito levanta-se e entra na casa.

Volta com algo nos braços. Parece uma boneca. Uma mulher o acompanha. Colocam no fundo e vão jogando a terra. Estão enterrando. Sobrou muita terra. A mulher levanta-se e pisa socando a terra. Um pé de criança ainda aparece. A mulher discute com o homem. Depois coloca uma pedra em cima.

Vão dormir.

De madrugada como fazia todos os dias, o cão do vizinho entrava pelo buraco da cerca e virava a lata para comer. Nesse dia, sentiu algum cheiro diferente no ar. Foi até a pedra, levantou as orelhas, e começou a cavar. Cada vez mais perto, rodeava a pedra rapidamente. Enfim pega o embrulho pelos dentes e atravessa novamente o buraco da cerca. Nesse ínterim o vizinho já havia pegado a carroça e já saia para o trabalho de catar papelão, e latinhas, quando viu o cachorro, chegando.

Toma-lhe o embrulho e se assusta com o que vê dentro. Uma criança recém nascida. Escuta o peito, observa a barriga, tudo imóvel, quando observa triste que já se encontra morta.

Coloca-a sobre a mesa, e liga para a polícia. Isso já era manhã de domingo. Às dez horas a rádio patrulha chega. A criança ainda deitada sobre a mesa enrolada em sacos plásticos.

O homem explicava para o policial do rádio que já ia sair para trabalhar, quando viu seu cachorro latindo. Estranhei, disse. Quando vi essa maldade. Os policiais e o homem vão até o buraco da cerca, e vê os vestígios no quintal do vizinho.

-Quem mora aí, questiona o policial.
-Um casal. Uma moça dos seus dezessete anos e um cara mais velho.
O policial tira a arma do coldre e grita:
-Polícia! Saiam com as mãos na cabeça.
O casal com sono pesado ouve algo, e se desvencilha um do outro. Escuta gritando lá fora agora mais alto:
-polícia!

Na delegacia ela explica:
-Minha família não queria nosso namoro, por que ele é viciado, aí resolvi...
-Mas é sua filha... e era linda! Ainda o delegado falou.
-Agora esta feito, acabou! Disse ela chorando. Agora tenho que pagar.


Terceira:


Em um bar. Numa mesa um casal briga:

-Eu sei que vou sofrer!  Ainda tenho muito carinho por ti, mas infelizmente não dá mais, chega de ser capacho. 
O homem toma um gole. A mulher olha nos seus olhos:

-Você jura! Terá coragem? 
Falava isso por que todo mundo sabia que ele era “arriado os quatro pneus por ela”.

-Verdade! Isso é um ponto final!
Joga uma nota em cima da mesa, diz:  fica com o troco, e sai.
A mulher fica sem ação.

Chegando a casa a mulher estampa nas redes sociais:
Solteiríssima. E mais adiante. Feliz e determinada.

No outro dia, ela acordou cedo, foi ao posto de saúde e pegou o medicamento que fazia uso diário: clonazepam. Depois foi a imobiliária e alugou um apartamento a duas quadras do ex.
E a tarde ligou para ele nesses termos:

-Estou fazendo um churrasco aqui em casa, e logo me lembrei de  você. Por que não pensei. Você gosta tanto de churrasco... Podemos ser amigos ou não?
Do outro lado da linha Arnaldo sem saber o que responder acompanhava toda a conversa de Adelaide com o seu inequívoco arrã, arrã.
Ela dizia:
-Convidei também um casal de amigos, é bom para você se enturmar. Agora solteiro né?
Arnaldo surpreso concordou, afinal ainda gostava muito dela, e talvez sobrasse, no final da festa, restos de carinhos.
Quando chegou o samba já rolava, a carne na brasa e a cerveja gelada.
Adelaide vestia um short curto, e o casal dançava.
Ela prepara uma bebida para ele. Acrescenta o medicamento. Em dez minutos ele estava desacordado. Ela pega uma marreta de construção e bate-lhe forte na nuca, que o crânio se esfacela.
Depois com a ajuda do casal de amigos enrolam num plástico escuro e levam para desovar longe.
O lugar era ermo. Só uma empresa de reciclagem. Jogam o embrulho na vereda e tocam fogo.


Quarta:


José levantou cedo. “Tenho que resolver isso meu Deus, estou acabando minha vida nas drogas”.
Caminhou por quilômetros até a boca. Estava fissurado. Pediu fiado. O chefe falou para ele que já tava por aqui com ele, e que ele já devia muito e que era melhor pagar o que devia primeiro.
Ele falou que esperasse mais um pouco, que o pai era aposentado, ganhava pouco e quase não dava para segurar seu vício. O chefe apontou a arma para o seu peito.
-Leva esse cabra daqui! Dá um fim nele!
Arrastaram José até um beco e deram um tiro no meio da testa.
Nesse momento o pai dele já o procurava na vizinhança, quando alguém gritou:
-Seu Pedro! , encontraram agora um presunto, lá na invasão. Parece muito com o filho do senhor!
Chegando ao local o velho reconheceu o filho e acendeu uma vela. A cabeça separada do corpo. O pai lamentou o ocorrido e disse que tinha pedido para o filho parar com as drogas.  “Infelizmente aconteceu isso”, comentou o pai da vítima.
Segundo o delegado do caso, o fato de estar com as mãos amarradas pode indicar que José tenha sido morto em outro local e levado para ali apenas como uma forma de “se desfazer do corpo”. Completou:
          -Deve ser ajuste de contas e como sabemos, nada funciona sem dinheiro, nem igreja.

Quinta:
Zé empurrou a porta e entrou. Casa simples. Um barraco. As mulheres o esperavam sentado na sala. Sim ele tinha duas mulheres, em convívio pacífico: A legítima, que a chamava de Branquela e a amante, baixa e gorda.
 Ao seu encontro:
-E aí Zé, vendeu todas!
-Tudinho! Veja! Retirou o pano que cobria a cesta.
-Ué Zé, mas não é que a diaba tem uma carne boa!
-É mesmo! E a menina como tá?
- Lá no quintal brincando, até comeu também!
-Não brinca! E é, é?
-Pois!
Todos conheciam Zé da coxinha naquelas redondezas. Todas as manhãs, passava gritando, e a molecada repetia: É de gato seu Zé?  Ele xingava com palavrões, depois falava com seu sotaque característico:
-É não miseráveis! E replicava: - É de frangoooo!  seus filhos da puta!
Mas verdade seja dita. Todos gostavam das coxinhas. Dizia-se delas que eram bem preparadas, ótimo tempero, com bastante carne, macia e com gosto indescritível. Era grande a freguesia.
-Vai ao quintal. Vê a menina.  Entra, olha o fogão. Um osso, comprido de aparência de uma tíbia. O pega e fica roendo, as partes que não alcança com os dentes cutuca com os dedos.
Com a cara cheia de gordura pergunta para as mulheres se tinha acabado.
Branquela coça a cabeça e diz, olhando para o quintal:
-Logo temos que buscar mais!
A gorda sentada no tamborete.
-Essa é a mulher, é? Zé solta o osso:
-É! O homem deu para a semana toda!
Vai até a sala e coloca um cd. Fazem um tipo de pantomima, pegam um litro de cachaça e vão beber.
Acordaram com a polícia arrombando a porta.

Só uma pessoa na comunidade não gostava dos salgados. Esta pessoa agora abanava um jornal na cara do marido que lia, entretido a página de esporte: “Oh! Veja isso homem! Leia aqui! Empurrando o jornal para o marido. Ele deixa os esportes de lado e lê as notícias policiais. “Presa família de canibal”. Ela continua: “Esse sujeito aqui, que diz pertencer à seita “alvorecer”, e que mata as pessoas para saciar a própria fome, não é nosso vizinho, o vendedor de salgadinhos? 
Veja o que a policia diz dele: “Ele mata, descarna as vítimas, guarda em freezer e vai comendo no dia a dia. Com o resto faz salgadinhos para vender a freguesia”.
O marido olha com náusea. 
A mulher ainda diz: “Parece ficção, mas esta aqui ó, todos os dias nas páginas policiais”.
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quarta-feira, 9 de novembro de 2016

O mar


   



                                  O mar


 Para uns, são coisas insignificantes; para mim são retalhos de vida que lanço como o faz bem o senhor que atira pão aos pombos  -Etiel Oldlaniram






Eu descobri minha paixão pelo mar, aos doze anos, quando tive que viajar a capital com meu pai, em visita a meu avô internado com uma doença incurável. 
A visita foi estranha porque não pude entrar no hospital e fiquei na sala de espera olhando os rostos sérios passar naquele ambiente insalubre. 
Ele ficaria internado por tempo indeterminado soube depois pelo meu pai, ele explicou como seria o tratamento, um monte de palavras médicas difícil de entender. 
O que eu entendi é que ele não voltaria para casa esse verão.

Depois fomos almoçar e até o ônibus retornar para a cidade natal, tínhamos umas quatro horas a toa. Foi aí que meu pai disse:

          -Diacho!  Já estamos aqui, não custa nada conhecermos o mar!

Não conto a emoção que senti ao ouvir isso. Foi a mesma quando li pela primeira vez um romance de Joseph Conrad. E ele ama o mar. Ou parece amar. Comigo foi amor a primeira vista.

Então pegamos um lotação ali na lagoa, que cruzou quase toda a cidade.

 Passamos pela roleta e pagamos a passagem. Por sinal roleta não existia de onde tínhamos vindo. Mas não eramos bobos, isso não, observamos os outros passageiros para não haver erro. Meu pai também era viajado, já tinha morado um tempo no Rio, quando era solteiro. Na década de trinta.

 Eu estava extasiado com o movimento, o povo andava apressado, quase correndo, pareciam que tinham perdido alguma coisa importante. Talvez o sossego que tínhamos de sobra no pequeno povoado que vimos.
Olhava os prédios com curiosidade.  Como conseguem viver assim um sobre o outro, eu ia pensando curtindo  a viagem.

E assim foi uma meia hora olhando pela janela.  O vento forte fazia-me fechar os olhos  vez em quando. Observei que quando as pessoas chegavam onde queriam puxavam uma cordinha e soava um som estridente indicando que o motorista teria que parar no próximo ponto. Apontei para meu pai. Ele sorriu de volta.

Foi quando eu vi. 
Primeiro veio uma aragem avisar pela janela, um vento pesado, um ar branco que depois soube que era maresia. Depois um braço comprido o manguezal. A vegetação de gramíneas, arbustos pequenos, cajueiros e principalmente coqueiros. Depois veio toda uma amplidão. Um azul esverdeado profundo, parecendo engolir a terra. Estrondo de brumas brancas correndo até a margem. Uma faixa clara onde poderíamos correr descalços sobre a areia.

Que prazer senti quando tirei o sapato apertado. O olhei sem arrogância. Até onde sabia pelos romances, ele era temido. Carecia de respeito.
Tiramos a camisa. Meu pai persignou-se e jogou um punhado de água sobre a nuca. Era para não pegar resfriado. Fiz o mesmo. Fomos eu e meu pai, saltando as ondas, que se aninhavam entre nossas pernas empurrando-nos para trás e para frente.

          -Venha mais Artur! Não tenha medo, ele disse!

Eu estava tremendo de frio. Mas a água era morna, o frio devia ser a emoção, de está ali, naquela grandiosidade de água. Curioso, enchi a concha da mão e perguntei sorrindo:
          -Que gosto tem?
Meu pai sorriu.
          -Só se provar que vai saber, falou.
Eu tomei um gole. Arrepiei.
          Ai! É salgado, falei.
Ele não falou por maldade. Isso não. Era mais por galhofa. É tanto que nunca vi meu pai sorri tanto.
Perguntei depois que ele parou:
          -Aonde vai dá toda essa água?
Ele olhou para o horizonte, fez alguns cálculos e disse:
          -Acho que, se nadarmos seguindo aquela nuvem ali, está vendo?
          -Sim!
          -Chegaremos ao continente africano.
          -Ah!

Não perguntei mais nada. O mar bastava. Não queria perder aquela emoção que estava sentindo. Imaginei os piratas, os personagens dos romances singrando esses mares, em grandes aventuras.

Depois fomos nos enxugar. Enquanto olhava algumas gaivotas no horizonte, pensei no meu avô, sozinho ali naquele hospital frio, e aqui toda essa natureza explodindo, as ondas quebravam bem perto de nós.

          -A maré esta subindo, meu pai falou.

Um mês depois meu avô faleceu. Isso foi há muito tempo.

Até hoje, mesmo adulto, gosto de ver as ondas explodindo na areia, nas pedras, e quando quero recuperar minhas energias, vou de encontro ao mar.


quinta-feira, 3 de novembro de 2016

O Programa




             
             
                              A rua


Eram seis da matina. O vigilante Severino vinha subindo a ladeira em direção ao centro. Trabalhava a noite e vinha morto de sono. No sentido contrário vinham os irmãos Ariosvaldo, Reginaldo e mais um menor.
          
          -E aí mano como vai?  Batem-se as mãos como o usual.
          -Tô morto cara! Estou vindo do trampo. Vinte e quatro horas sem dormir. E aí quem é o intruso?
          -De menor cara, ele tem umas idéias aí, ta afim?
          -Porra estou fora de órbita, mas coé?
          -Vamos fazer um ganho agora. 

Mostra o tresoitão, por baixo da camisa. De menor saiu hoje, da casa de custódia, mostra aí mano. De menor levanta a calça. Usa uma tornozeleira eletrônica. Sorri. Ariosvaldo pega no ombro do outro como fazem os amigos. Fala no ouvido do outro:
          
          -O amigo tá duro pacas, entende precisa arrumar uns para a sobrevivência e aí demos a ideia da loja lá do centro. Mesma coisa de tomar doce de criança. Tem uma mina e um segurança otário entendeu!
          -Sei! Mas como vai ser a comissão?
          -Pô cara dividimos em quatro! Sem apelação!
          -Aí! Tô dentro! Qual minha função?
          -Pô meo, De menor vai chegar na cara dura, arma em riste entendeu. Qualquer coisa de errado ele toma a frente, sabe como é a lei! Eu vou com a mochila guardando os cobres, meu irmão fica na esquina e tu fica de retaguarda, certo. Sem vacilo! Qualquer movimento avisa.
          -Falou mano! Conheço a mina lá de vista! Uma bunda, porra! Se der mole como. Deixa esse agrado pra mim?

          -Qual é malandro, nós é bandido mas temos ética, não somos estupradores não! Mas se tu quer, depois de pegar nossa grana, pode fazer o que quiser!

          -Quero muito! Já tentei ficar com ela, mas a fila da puta não quis! Tá na mira!

                           A loja


Lúcia tirou a blusa e deixou à mostra um seio. Duro. A auréola escura. Pegou outra blusa com um tom azul turquesa e vestiu com certa dificuldade, já que usava uma só mão. As pernas longas e malhadas dificultavam o trabalho. Ao mesmo tempo tirou a calça, a bunda bem torneada, e vestiu de diferente cor para combinar.

Marlon o segurança, a olhava de meio jota há muito tempo, talvez dali surgisse um romance, pois ambos se olhavam, e não segurou o riso ao ver Lúcia com tanta destreza em trocar as roupas dos manequins.
Ele por seu turno pegou todo o dinheiro do caixa, colocou numa bolsa de plástico escura e se dirigiu a sala onde guardava as notas maiores até o horário do depósito na rede bancária. Foi quando ouviu o grito:

          - Assalto! Todos quietinhos e de mãos para cima. 
Marlon só teve o trabalho de fechar a porta por dentro. Porra! Porra! E agora pensou. Lembrou-se que deixara a arma na gaveta. Assim o que podia fazer era ficar quieto e rezar.

De menor veio com a arma e apontou para a cabeça de Lúcia.

          -Aqui seu pilantra! Abre essa porta e passa todo o dinheiro senão vou estourar o crânio da mina aqui! Lúcia estremecera.
Enquanto isso Ariosvaldo ia rapidamente enchendo a mochila com peças de roupa.

Lúcia estava fria. O cano do revólver machucava sua fronte. “Pai nosso que estais no céu... Não me mate! Por favor!

         -Só depende do seu parceiro! Abre essa porta aí! Vou contar até três. Depois o bicho vai pipocar!

-Um...Dois e Pum!

Quando o capitão chegou, tinha cérebro espalhados por todo o teto. 

                             Rádio

O locutor dando ênfase à fala:

          -Estou aqui com o Capitão Dagoberto, boa noite capitão! Agradeço sua presença aqui.

          -Boa noite, Áureo, boa noite ouvintes!
          -Capitão, conheço seu trabalho, um trabalho árduo, competente, fazendo o que pode para a segurança do município, queria saber do senhor o que podemos fazer para melhorar estas estatísticas de terror que hora ou outra aparecem como esse agora da morte da senhorita Lúcia, vendedora, esse crime bárbaro...
          -Olha Sr Áureo, até que esse ano as estatísticas estão favoráveis, estamos combatendo esses crimes e outros, eu criei  a guarda de bairro, coloquei mais homens nas ruas, dita números, continua:  -Mas esses crimes é de difícil prevenção. A lei é frouxa. Logo os indivíduos estarão soltos!

          -Eles, os assassinos, já estão presos?
          -Sim. Meia hora depois do comunicado, saímos em diligencia, e pegamos os quatro meliantes...
          -É verdade que existe um menor?
         -Verdade! E como sempre eles confessam o crime! Assumem tudo! A pena para menores é branda!
O Locutor fica em silêncio. Faz algumas observações a respeito das leis, do ser humano, da maldade...
         -Como se sucedeu a prisão Capitão, eles tentaram fugir? Responda por favor no segundo bloco. Propaganda.

         -Ah! Sempre tentam. Sempre que ocorre crime nessa região sabemos que podem seguir pela rua do rio. Então montamos bloqueio no acesso a uma estrada vicinal  ao Centro. Já havíamos recebido as características do carro, um fusca ano meia nove, branco, que logo avistamos.
 Fizemos a abordagem e conseguimos prender todos eles ainda com a arma do crime.
Ele destacou que todos têm antecedentes criminais, exceto o vigilante.
          -Eles iniciaram alguma reação?
          -Não Sr Áureo, é sempre assim. Quando são cercados parecem criancinhas, até choram, chamam pela mãe...
         -É isso, infelizmente a moça morreu, e agora? Dá sinal para baixarem a musica. Continua: Logo logo advogados, usarão as brechas da lei que são muitas, colocam esses salafrários em liberdade e presa mesmo estará a menina Lúcia, dezesseis anos, uma vida inteira pela frente. Obrigado Capitão Dagoberto, pelo seu trabalho, uma luta constante, que oxalá um dia consigamos viver em paz. O capitão tece os últimos comentários e...
          -Obrigado! Amém!
O contra regra aumenta o volume da música de fundo. O locutor imposta a voz:
         -Vocês acabaram de ouvir: Ronda policial. O programa que não tem medo de falar a verdade doa a quem doer.
Entram as propagandas.