quinta-feira, 28 de março de 2019

No país do carnaval: a morte de Arlequim


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                No país do carnaval: a morte de Arlequim


          A coisa aconteceu nos idos de sessenta e quatro, no mês de agosto, mês de desgosto, nessa época Serafim era um jovem sonhador.  Tinha dezoito anos, sonhos e ânsia de liberdade. Vivia a vida na idéia de um mundo novo cheio de amor e paz. Como a gazela que sai todos os dias para ruminar sem preocupação com a existência dos predadores. Esses têm muita fome e precisam se alimentar.

         Esse dia, era de manhã, o sol ameno, ventos calmos, Serafim estava ruminando idéias, com a mente no mundo da lua, quando súbito os tanques encheram as ruas, a roldana metálica tilintavam no asfalto moendo tudo que encontrava na frente e foi dado o toque de recolher e em seu quarto ele acordou de um pesadelo medonho. Agitou a cabeça como se quisesse acordar, mas tudo o que estava acontecendo lá fora vinha para seu quarto na imagem distorcida de um pequeno televisor. Era realidade.

         Foi percebendo aos poucos.  Como a noite cai: O sol se esconde, os pios das corujas aparecem junto com os grilos e a luz desaparece restando apenas a escuridão.

        Houvera uma ruptura e o país caiu na mão dos militares. Uma parcela da  sociedade apoiou, principalmente os ricos e empresários. A igreja também. Achavam que seria uma transição. Até a mídia apoiou.
      Era perigoso pensar doutra forma.

        Assim, entendeu então que precisava fugir. Jogou umas mudas dentro de uma sacola, calçou o tênis e quando ia sair algo o jogou para trás com tanta violência que ele caiu de boca aberta sobre a cama.

         Eram três homens. Os dois que entraram na frente o seguraram pelos braços e o outro veio para cima tentando arrancar coisas que não sabia. Fala! Fala agora seu meliante!

         O que falar, se o que queria era somente era viver em paz.

         O levaram para diversos órgãos, sofreu torturas que deixaram marcas físicas e psicológicas e a mais nefasta foi uma que não havia maneira de escondê-la.

         A marca indelével foi segundo ele, graças a sua falta de sorte “fui o bode expiatório!”.

       Seu “Finzinho” como era conhecido, pau para toda obra. O que diziam dele.
       Sozinho ele relembrava e questionava-se porque não fugira como os outros. Aproveitaram a frase em voga na época: “Ame-o  ou deixe-o!”  Deixaram. Poderia ter ido para o Paraguai um tempo, até as coisas normalizarem. Mas achava que a coisa fosse provisória. Venderia muamba de todos os tipos para seu sustento.

          Não deu tempo.

          O sorriso agora forçado, diga-se de passagem, mesmo quando acordava melancólico. Mas não tinha escolha. Mesmo triste seus lábios não cobria seus dentes, brancos e largos. 
  
         O executor quando o pegou disse-lhe gritando: “deixe essa cara amarrada, o que estamos fazendo é para o bem de todos! Desamarremos esta cara!  Vamos homem! E assim os dois brutamontes o seguraram pelos braços e o deitaram numa mesa  e o terceiro com uma faca cega, sem afiação fez o serviço.

           Foi à única vez que o viram chorar. Buscaram as fichas dele em todas as repartições, em toda América latina, na China e até na Rússia dos Czares. Nada. Serafim tinha a ficha limpa. Não era guerrilheiro. Nem miliciano. Nem traficante.

 O soltaram. Mas as marcas ficaram.

          O lábio superior foi cortado rente ao nariz. O inferior perto do queixo. Não podia usar barba nem bigode. Piada triste eu sei. É para quebrar o gelo. Só sei contar história assim. Amenizando.  Apaziguando meus instintos. O  euphémein em grego virou eufemismo.

        Mas bola para frente que atrás tem gente. Resolveu assim mesmo ser feliz. O sorriso era possível, estava acostumado a andar para um lado e para o outro mesmo se o coração chorasse. Por mais que tentasse ficar sério, mesmo se fosse um Dom Casmurro, não conseguiria, pois sem os lábios os dentes ficavam a mostra, no quaradouro. Evitava olhar-se no espelho pelo menos ao acordar quando a melancolia o tomava e fechava os olhos, para evitar ver-se sorrindo e babando, babando e sorrindo.

         Deus meu, que pulha! Acordar assim sorrindo sem motivo,  andar por aí, ao léu. Isso é muito irritante. Mas logo pensa  nos que não tiveram  a mesma sorte, desapareceram como fumaça e a família procura os ossos sem esperança. Não acharam os restos mortais. Não tiveram um enterro justo, como manda o figurino: Um velório, o corpo, choro nem que seja de carpideiras, uma solenidade, orações, uma cruz mesmo de madeira podre, as feridas ainda abertas como cancros incuráveis.

       Ele se conformava por isso. Pelas histórias dos outros. Logo ele que não tinha coragem de matar nem um inseto tipo Gregor Samsa, quando acordou certa manhã.

       Abriu os olhos ao espelho.  Os dentes alvos e grandes. A gengiva hígida. Disse-lhe o dentista um dia: O sorriso é o cartão de visitas. Mas não assim permanente.  Assim parecia uma máscara. Seria ele um monstro que nem podia beijar? Outros  vivem cheios de  mulheres. Muitas vezes quando volta à noitinha vê pelos parques e jardins casais se beijando, eles se limitam ao prazer intenso do ósculo. Ele não.  Como beijar sem os lábios? Só se fosse à mordidas lacerantes, mas, todas fugiriam dele.

         Voltou a fechar os olhos.  Bom, tenho que trabalhar; economizar bastante para realizar o meu sonho. Até lá vou empurrando a vida assim desse jeito. O tempo passará de qualquer jeito. Salta da cama, tenho que ir, a fome não espera, ela nos engole sem dó. Ia sobrevivendo. Fazia serviços gerais. Não tinha preguiça com ele. Limpava quintal, fossas, capinava, e todo tipo de serviços próprios para máquinas. Nem animais conseguiriam. Sempre quando voltava de algum serviço, mesmo exausto, o chamavam na rua. Ele atendia de pronto.

          Na maioria das vezes em gracejos:

“Seu Serafim cuidado com os home hem! Eles estão de olho! Se te pegarem agora  vão tirar todos seus dentes!”. 

        Ele abanava a mão em frente à cara suja como espantasse mosquitos e gargalhava contente. Sua gargalhada parecia àqueles brinquedos de cordas, rouca e borbulhante, o que fazia muitas vezes as crianças assustar-se. Os adultos não. Riam dele até dá dor de barriga.

        -Não liga filho! É o Serafim!

        Muitas vezes era toda uma família que vinham da missa de domingo, com as melhores roupas, os melhores perfumes, corados, saudáveis.  E divertiam sobremaneira.  

        A reposta as pilhérias eram inaudíveis. 

         Tente falar sem os lábios meus caros que vão entender o que estou falando. As palavras saíam sem consoantes e eles caiam nas gargalhadas. Ele também parecia divertir-se. Embora os olhos enchessem de lágrimas.

         Quando rimos desencadeamos uma reação no sistema límbico, região do cérebro que controla as emoções ou o conjunto de nervos que liga a mandíbula às glândulas salivares acaba estimulando a glândula lacrimal. Estava escrito no livro de ciências. Deve ser isso o motivo do seu riso. Um dos muitos livros que ele achou jogado no lixo.

         Compreendeu. Por isso choramos quando rimos muito.

         Um palhaço dos bons, diziam-lhe batendo em suas costas. Um pulha! Gritava outro.

        Depois disso ele seguia seu caminho. Era o que podia fazer por hora. Ia vivendo de um canto a outro sem fazer mal a ninguém.

          Mas em surdina ele juntava todo o dinheiro que ganhava para realizar o sonho de sua vida. Anos e anos.
Foi no natal.

        Olhou para o relógio. Em fim chegou o dia!  Eram cinco para a meia noite e dava apenas para ele sair correndo com o saco nas costas e todas as traquitanas que levava no seu interior. Estaria preparado? Na rua, viu todos os festejos, as luzes brilhando de todas as cores e tamanhos; talvez tudo fosse diferente. Sim, mas seria inimaginável sentir tristeza aquela data que tanto lembrava sua terra natal seu jardim de infância.

        Bom, não era hora de pensar noutras coisas, teria que ter foco no que ia fazer para não ocorrer nenhum erro. Tinha treinado algum tempo, o tiro deveria ser certeiro, justamente no coração das pessoas.

        Escolheu essa data, pois segundo ele os corações estariam moles, ele repetia como um mantra. “Estão oles!”. A falta dos malditos lábios.

         Quando deu meia noite, o sino da torre completou as doze badaladas e as pessoas desejavam feliz natal, ele saiu do beco escuro  com o saco nas costas, e foi distribuindo flores e presentes a quem passava, saltando, sorrindo e chorando.

              De início as pessoas ficaram perplexas, sem ação, mas depois foram aceitando de bom grado.

             Esse dia ninguém soltou pilhérias com ele. Com certeza foi o dia mais feliz de sua vida. Ele quis desejar feliz natal, mas não conseguia.
            Serafim ficou envergonhado ao ouvir a sua voz, as palavras faltando sílabas, ouviam-se bem as vogais semelhantes um gato miando no telhado, ecoando em volta, coisas sem sentido e nexo.

       Essa noite ele dormiu tão bem que não notou a chuva cair até pela manhã quando os pingos vindos da janela o acordaram. Estava satisfeito. Tomou o café rápido e saiu para a rua.

      A rua estava cheia de crianças pelos passeios e praças brincando com os brinquedos de natal. Ele passou ao largo.

     Alguém o chamou. Está sabendo da última, disse-lhe.

        Alguém da sociedade local, homem poderoso, resolveu pedir aos mandatários, veja você mesmo no papel: que não era possível vê tanta felicidade, naquela cara repugnante, uma coisa horrível de se ver, andando por ali, nas praças e ruas, assustando as nossas crianças. E pedia encarecidamente em nome da população, que em plebiscito resolvesse a questão, questionando os honoráveis cidadãos, dizia o ofício assinado e datado por muitos, para responderem sucintamente, sem embromação, se sim ou não,  a obrigatoriedade do uso para Seu Serafim, de uma máscara para encobrir o terrível aleijão. Que não era possível cruzar com ele  andando daquele jeito com a boca escancarada cheia  de dente e babando pelos passeios e praças públicas de nossa  bela cidade. Estava espantando os turistas. E fazia por fim uma observação: Muitas vezes dava dó, mas na maioria das vezes dava nojo.

        Serafim leu tudo aquilo sem dizer uma palavra.

         A população não se furtou ao pedido e na câmara, houve grandes debates. No final ganhou o sim. Sim a partir daquela data, Seu Serafim, seria obrigado, com risco de multa ou prisão  em locais públicos a esconder de qualquer forma seu sorriso, usando para tal, dizia por último o ofício: qualquer coisa, mesmo  um lenço daqueles que os bandoleiros usavam para assaltar no velho oeste.

      Na segunda feira bem cedo o oficial levou a resolução.

       Vale dizer aqui que Serafim era homem culto. E em suas andanças recolheu a maioria dos livros que mantinha em sua biblioteca. Gostava de lê a maioria dos filósofos. De Nietzsche repudiou seu niilismo. Ele acreditava que tudo tinha sentido, principalmente a existência humana. Ria das idéias dele a respeito de Deus. Como Santo Agostinho, ele achava que era um predestinado.
Com  David Hume aprendeu que a razão seria o alicerce da sociedade.
 São Tomás de Aquino com sua ética e metafísica e teorizando como a realidade é constituída.
Georg Hegel com a fenomenologia do espírito, suas idéias de explicar o mundo real.
Com Descartes aprendeu a frase que pensava as noites de solidão: Penso, logo existo. Sobre Platão uma nota num canto, talvez para lembrá-lo.  Lê mais minuciosamente esse filósofo.
Kant estava ali pregado no muro. Tinha grifado a proposição de um princípio universal que não causasse danos para as outras pessoas.
Aristóteles, numa espécie de redoma, protegido dos mosquitos que rondavam o ambiente.

       Ele dizia que lia tudo, até bula de remédios.

       Além de todos esses autores tinha um bem atual, datava de mil novecentos e quarenta e sete. A capa tinha sido arrancada, aliás, não dava para advinha-lo um livro, a não ser pelo texto comum em todos: Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. Proibida a venda desta edição em Portugal e resto da Europa.
 O autor começava com a letra  O e o sobrenome era  Carvalho. As folhas que foram encontradas não davam pistas. Estavam numa lata grande, onde estava escrito: manteiga natural e sem sal, que Serafim usava como sanitário. Páginas estas todas sujas de excrementos. Ele usou para limpar-se.
        
        Mas isso não tira o mérito do escritor. É só objeto encontrado na cena onde se fez a perícia para entender o que acontecera. Cada um tem suas funções. Seria honra de ter uma  de suas páginas usadas em tão relevante fim?
             Serafim, lia nesse interlúdio de ócio, além desses livros técnicos, também a Commedia dell'Arte. Nada melhor para esquecer a realidade que ele vivia.  O que o fez se apaixonar  por esses personagens principalmente, Colombina, seu amor platônico.

            Quando veio a ordem de esconder-se atrás de uma máscara ele logo escolheu que seria o Arlequim. Pela sua leveza. Pela sua paixão.

               Assim correu numa loja dessas onde se vende de tudo e comprou a máscara, e passou a usá-la diariamente. Todos gostaram. Melhor assim, disseram: E ia ele pra baixo e para cima sorrindo da vida que levava.

             Mas o tempo é senhor da razão, da ferrugem, da rotina, das rugas...

              Assim os mesmos cidadãos disseram: não dá, disseram. Aquela cara sempre sorridente dava nos nervos. É preciso mudanças.
Que escolha outra.

          O que fazer pensou Serafim para agradar a todos?

          E correu a loja o mais depressa possível. Pierrô. Agora seria o pierrô, amante de Colombina.

         Logo disseram: Isso é bom! Tudo resolvido! Pierrô está bem! “a tristeza é razoável, já a felicidade fere como faca”. A tristeza une pela infelicidade. Esse está bom. Assim não nos fere com sua alegria, diziam.

        Assim mataram o Arlequim, mas Serafim encontrou forças para divertir as crianças na rua. E se divertia ainda.

       Só à noite, ao voltar para casa, todo o dia mirava-se no espelho e via aquela lágrima caindo silenciosa e foi entristecendo-se.

       Sempre quando estou contando essa história e chego aqui, desculpe, minha voz embarga, pois me lembro dos textos daqueles livros saltando em negrito e do sorriso dele, a bondade, me dá um nó aqui...

          Encontrei-o ali, naquela árvore, pendurado numa corda, enforcado.
         O bilhete dizia: Eu só queria ser feliz!