quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Rali dos sertões



Foto copiada do site: http://sigcomunicacao.pressroom.com.br/265642d040/rally-rota-sc-chuva-ditou-as-regras-do-primeiro-dia-do-rali.html



                                                        Rali dos sertões



          Ao voltar para casa, vindo da baixada santista um dia desses, um passeio  normal,quase se transformou em  pesadelo. Senti-me num verdadeiro rali.

           Faço essa rota já há algum tempo, e em dias normais, limpo e claro não preciso mais acionar o GPS .  Escolho a rota que passa pelo sul de Minas, preferência esta, devido a algumas recompensas :  menos pedágios e cidades próximas ( gosto de parar para comprar “trecos” ou algum “trem” como diz o mineiro).

          Às dez horas em ponto entramos no carro, eu e Claudia. Era domingo depois do carnaval. Cálculo para almoçarmos em Caçapava,  num restaurante com cardápio variado.
Na garagem, enquanto eu escolhia a trilha sonora no spotify, minha mulher dava as últimas recomendações de praxe ao nosso filho. Despedimos-nos.

          Venho pela orla, para dá aquela ultima olhadela e ver o mar azul formar com o céu a  linha perfeita do horizonte. Alguns navios interceptam a linha. Na calçada pessoas exercitavam-se   enquanto  sobre os coqueiros  duas gaivotas matreiras se equilibravam quase paradas ao vento. Isso é que é vida, pensei. A das gaivotas.

          Saio da cidade e pego a Rodovia dos Imigrantes. No topo de um morro, no meio da mata, um restinho da atlântica, plantada uma favela. Quantas desigualdades. Ali atrás edifícios faustosos quase tocam os céus. Debaixo de um viaduto sobre o manguezal  casinhas de madeira se equilibram em pernas de pau pareceu amontoados de aranhas caranguejeiras.  A vida ali deve ser um inferno.

          São Bernardo do campo. Lembro do ex- presidente Lula. Agora julgado e condenado por que lutou a vida inteira contra os ricos. Os poderosos. Desde o início de sua vida. Aqui nos sindicatos. Essa é uma luta insana. Você pode até vencer algumas batalhas, mas a guerra  eles vencem. É como nadar contra a correnteza. Você pode até avançar alguns metros, mas a força não pára. Um cochilo ela te leva rio abaixo.

           Entro na Saída  27 e pego  o rodo- anel  e sigo a placa de Mauá até entrar na rodovia Governador Carvalho Pinto. Aqui as margens das pistas o gramado é exuberante.
Itaquaquecetuba.  Vem do (tupi-guarani, takûa(ra)-kysé-tyba) "Taquaquicetuba" que significa "muitas taquaras cortantes". Claudia pede ajuda ao Google.

          -Isso tudo aqui era dos índios. Olho em volta. -Aí vieram os brancos, os bandeirantes, e os dizimaram e...

          -Já vem você com esse discurso esquerdista! Pó parar!
-Verdade! Eu digo. Qualquer coisa agora é esquerda comunista ou direita fascista! Já deu.

          -Ô nome difícil sô” digo,imitando os mineiros para mudar de assunto.

          Depois São José dos campos. O brasileiro é um povo religioso.  A maioria é de católicos, mas nos últimos tempos vem crescendo bastante os protestantes.

          -Deve ser por que...

          -Pelo amor de Deus! Religião não se discute! Concentra na estrada!

          Vou lendo placas, sou leitor assíduo, Mac Donald, Havan, Burgue King, tudo isso passa ao largo, as margens, fomos colonizados pelos Portugueses, mas, explorados pelos Americanos. Vejo a estátua da liberdade azul.  Penso discorrer sobre capitalismo. Só penso.Na placa, pastel do Maluf. “Já pensou se ele fizer no pastel o que fez na vida pública!”. Rio sozinho.

          Pindamonhangaba. Pergunto a Claudia que está com o celular na mão qual o significado.  Parece que é anzol ou referente ao rio Paraíba do Sul que na região é bastante sinuoso e faz curvas que lembram um anzol. Viva o Google, penso.

          Pego o retorno para Caçapava. Meio dia. A fome apertou.

          -Picanha senhor! Fui acordado pelo garçom.
          -Sim!
          -Alho e óleo?
          -Por favor!
          -Mais alguma coisa?
          -Coraçãozinho!

         Ele empurra com a faca. Conto dez. “Dizem que os sentimentos vem do coração mas não é verdade, vem do cérebro”.

          -Obrigado!

          Foi um almoço rápido. Queríamos passar em Aparecida. Compramos umas fitinhas multicores e uma imagem de Aparecida a pedido. “Quero uma com o manto preto com detalhes dourados! Acho lindo!”

          Guaratinguetá. Sem esperar Claudia passou o bizu: De origem tupi, a palavra "Guaratinguetá" significa"muitas garças", pela junção de gûyrátinga (garça: literalmente, "pássaro branco", pela junção de gûyrá, pássaro e tinga, branco) e etá (muitos). Recebeu esse nome pela grande quantidade de garças existente nos domínios do município.

          Volvi meus olhos ao céu. Não vi uma sequer. Gosto de graça das garças. Rio da frase. Garça tem graça nas suas longas pernas. São desengonçadas.

          Lorena. Nome bonito. Se eu tivesse uma filha poderia chamá-la Lorena. Passa-me paz, sei lá. Deus me deu dois filhos maravilhosos.

          E a viagem segue nos conformes até a entrada para Cruzeiro, uma cidade de são Paulo que parece que só tem um edifício e ali as margens da pista. De cor azul. Bem em cima  vejo uma enorme nuvem negra que escurecia toda a serra da Mantiqueira. A serra da Mantiqueira é uma cadeia montanhosa que se estende por três estados do Brasil: São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. A serra tem uma formação geológica datada da era arqueana que compreende um maciço rochoso que possui grande área de terras altas, entre mil e quase três mil metros de altitude. Viajar é cultura.

          Eu resmungo algo, e Claudia tira os olhos do zap zap questionando-me com o olhar.
          Explico:

           -Ali ó aquelas nuvens que parecem pesadas pode ser uma tempestade que vai cair lá para o lado de minas.

          Ela observou demorada. Olhou no celular.

          -Deixa-me pesquisar. É... Aquela nuvem parece com essa da foto. Tenta me mostrar. Eu olho rápido.
          "O nome cumulunimbus é a combinação das palavras em latim cumulusque quer dizer amontoado, e de nimbus, que quer dizer chuva.

          Apontei para frente.

          -Temos outra alternativa: Podemos ao invés de ir por aqui, ir direto pela Dutra, passando por Três rios e fugimos talvez dessa chuva, o que é que você acha?

          Eu tenho comigo que toda Cláudia é igual a revista Claudia, adora dá conselhos. Mas essa vez ela disse: “Faça o que achar melhor”. “Lavou as mãos ó!”.

          Eu mal acostumado virei à direita e seguimos de encontro à nuvem negra.
Assim que avistamos a placa bem vindo a Pouso Alto, região das águas. Realmente.  Desceu o maior pé d’água.Um verdadeiro dilúvio.

          Fiz o que pede o manual. Diminui a velocidade, coloquei o ar no desembaçador, liguei o pisca alerta e vim navegando em mares profundos. Tive vontade de parar algumas vezes, pois as gotas da chuva eram tão grandes que mesmo o limpador estando na velocidade máxima não dava conta e a visibilidade caia assustadoramente. E mais. Sou míope. Na sala de aula, a professora vendo a dificuldade para eu lê, espremia os olhos cada vez mais, ela vendo aquilo vaticinou:

-Ai coitado, vai ter que usar óculos a vida toda!
Pareceu que ela falara de uma doença contagiosa. Eu detestava óculos,e foi um martírio acostumar-se. Nos primeiros dias doía o dorso das orelhas, e o osso do nariz. Em compensação tudo ficou mais colorido e límpido. Assim foi mais fácil aguentar as gozações, os apelidos "fundo de garrafa", quatro olhos", "ceguinho". Mas o pior foi para dar o primeiro beijo. A garota também usava e constantemente trombávamos no ato. Mais acostumamos. Ela tombava um pouco a cabeça de lado e eu também e nossos lábios se encontravam, rapidamente. Hoje em dia é uma peça indispensável, é a primeira coisa que pego ao acordar e a última que largo ao dormir. Curtir quando os Paralamas fizeram a música "óculos" as garotas deixaram o preconceito e agora usar óculos até, dizem dá um certo ar de "inteligencia". Agora tem a cirurgia, mas refutei. O óculos faz parte de mim.

Passei vária cidades sem perceber.

Lá fora o tempo estava cinza. Comecei senti frio, mas não podia desligar o ar. Fiquei até com pena do carro da frente, pois, os vidros parecia espelho de sauna a vapor.

          Mais um pouco e a chuva abrandou e foi assim que passei Pouso Alto,Caxambu,Baependi e quando estava aproximando da entrada de Aiuruoca, penso em Isis Valverde sempre, naquela propaganda das sandálias havaianas.  Ela é de Aiuruoca.  Significa casa de papagaio. Dou seta para entrar.
Claudia tira os olhos do celular.

          -Uai! Tá fazendo o que?

          -Vou parar aqui e esperar a chuva passar!

         “Quem sabe que não vejo a Ísis Valverde em alguma cachoeira ,e de  biquíni calçada com uma havaiana branca?”.  E ao ver-me dissesse:

          -Uai! Como você chegou até aqui com esse dilúvio?

          -É exatamente nos dilúvios que encontramos as sereias, eu diria.

          A pele dela toda pontilhada de arrepios.
Eu desconverso.

          -E essa chuva hem!

Ela diz com malicia.

          -Foi para a gente se encontrar!

          Eu tiro os óculos e fixo nos seus. Percebo que fiz algo que não costume fazer em público. Tirar os óculos para mim é se desnudar. Tento colocar outra vez. Ela segura minha mão.

          -Não espera! Teus olhos assim na chuva brilham como os olhos de um lobo! 


          Esse pensamento surreal veio como um raio e caiu bem perto de nós passageiros da estrada  seguido de uma rajada de trovão. Olhei o retrovisor. Agora éramos mais de vinte faróis piscando numa carreata.  Descobrimos tarde que o relógio do tempo era real, tinha sido atrasada uma hora. O horário de verão tinha acabado. Escureceu.

Nisso a chuva parou por milagre ou pirraça.

          -Toca para casa, disse Claudia. Eu sei bem o que você quer aqui! Parece um adolescente.

          Aiuruoca ficou para trás. E Ísis Valverde não apareceu. E minha adolescência vai longe.

          Diminuo a velocidade do limpador e troco a música. Desliguei o pisca. Foi quando em Bom Jardim de Minas o criador resolveu abrir todas as torneiras novamente com gosto e veio junto um pé de vento feroz. Parecia uma pena pelos pensamentos pecaminosos.

          Entro no manual novamente: Pisca ligado, velocidade reduzida, distancia entre os carros, desembaçador e limpador na velocidade máxima. Mas a coisa havia piorado. Era noite, os carros mais afoitos tinham sumidos na frente e eu agora estava sozinho na pista me senti um vaga-lume na noite fria.  Prossegui viagem. Não podia parar. Nessa hora é melhor seguir devagar e sempre. Ajeitei o os óculos sobre o nariz e aproximei mais do para-brisa. O acostamento estreito, parar era um perigo. Assim aos trancos e barrancos avistamos as luzes de Juiz de fora.

          -Eu vou ligar para minha irmã, aviso que vamos dormir aqui, é mais seguro. Disse Claudia.
Ninguém atendeu. “Ora, as pessoas aqui tem o que fazer aos domingo em vez de ficar em casa, penso”.
Ligou para um irmão em Ubá.
          -Aí está chovendo?

          -Nem uma gota, disse ele.

          -Nnão? Aqui está um dilúvio!

          -Prá você vê, dissera ele.Ele gosta de falar mal de tudo. Aqui o pessoal não reza por isso não chove. “Eu aqui rezando para não chover”, penso.
Desligou.

          -Meu irmão falou que em Ubá não chove nem a pau, disse Claudia sorrindo.

          Decidimos seguir em frente. E honestamente prefiro chegar logo em casa depois de uma viagem.

           Até Cel. Pacheco  foi tranqüilo. De Cel. Pacheco a Tabuleiro choveu bem, mas a pista bem marcada e sinalizada  ajudou bastante.

          -Bendito o olho de gato, digo. É de grande ajuda na escuridão.

           Rio Pomba a Ubá é que foram elas. Bateu o desespero. A chuva aumentou assustadoramente, e a pista parecia um quadro negro, não tem faixa, as placas ficam no meio da vegetação e os quebra -molas não são pintados, “Para onde vão os impostos que pagamos quase grito quando passo por cima de um que nos jogou quase ao teto. Veja isso! As estradas sem acostamento, sem capina, as pistas não tem caimento, sem caneletas, riachos atravessam a  pista tornando-as perigosa com risco de aquaplanagem , atravessa todo tipo de entulho,barro, pedras, bambu, arbustos  e por incrível que pareça arranjei humor para lembrar  da piada do caipira e do engenheiro:

É assim:

O caipira sentado no barranco, pitando, apreciando a paisagem, quando para um carro e descem dois sujeitos com um monte de tralhas. O caipira observando os dois, mede dali torna a conferir, até que o caipira não resiste e pergunta:
- Me adescurpe a intromissão mas o que é que oceis tão fazendo cum estes trecos tudo ai?
- É que nos somos engenheiros e estamos fazendo as medições de uma estrada!
- Ah bão, é que aqui nóis num faiz estrada desse jeito não! O engenheiro em tom desafiador pergunta:
- Ah, não? Então como é que vocês fazem estradas por aqui?
- Ah bão, a gente sorta um burro pelo caminho e vamos seguindo o bicho, por aonde o bicho passa é o meio caminho para se faze a istrada. O engenheiro , pergunta:
- E se você não tiver um burro para fazer a sua estrada?
- Bão, neste caso a gente chama um engenheiro.

Carros cruzam  piscando loucamente os faróis . Diminuo a marcha.

          -Ai meu Deus! Espero que não seja acidente! Diz Claudia.
Redobro a atenção.
          -Lá na frente, cuidado, uma árvore caída! Grita Claudia. Só dá tempo de eu passar por baixo desviando pela direita. Ela não soltava o rosário recém comprado em Aparecida. ”Será que vale, questiono, não foi bento!”.

          Na frente a giro flex da polícia e dos bombeiros joga raio de luz vermelho em todas as direções Também nos eucaliptos em volta. Um carro branco que tinha me ultrapassado uma meia hora atrás tinha derrapado e batido no barranco. Eu tinha até xingado ele, pois na ultrapassagem  jogou muita água no meu pára-brisa. Apressadinho de uma figa, tinha gritado.Agora deu pena. Espero que ninguém tenha se ferido. Passo devagar observando. Tem uma maca na chuva. Os bombeiros prestam atendimento. Um policial sinaliza com a lanterna, para que ninguém pare.  Seguimos.

          Quando avistamos as luzes bruxuleantes do Bairro São Sebastião,  suspiramos aliviados. “Vixe como tem Santo!”.  
Ledo engano.
 Não era o fim.
         "Parece que os governantes fazem especialização com os governos anteriores. Sem exceção todos aprendem direitinho como tapar buracos.  Não deve ser asfalto. Deve ser tinta preta e areia que solta na primeira chuva e ele, o buraco aparece novamente.
São todos de nós conhecidos. Tem um ali perto da pracinha do lado da escola em frente uma padaria indo para o Caxangá, apelidei –o  de bombinha “cabeça de negro” Depois que você passa em cima é que sente o estrondo.
Ali na rua da geladeira tem outro. Todo o dia eu o cumprimento. Na beira rio outro, perto da ponte. Esse passo no meio com os pneus. Tem um na esquina que exige um pouco mais de perícia.Você finge que vai subir na sarjeta e dá um golpe para dentro.
Em frente ao posto policial, na gare do trem, dois que vivem cheio de água. Esses são bons para encharcar os pedestres e passageiros que ali esperam o coletivo.

          Já quem faz o quebra molas, esses são do mau, penso.  Sou a favor até, desde que bem sinalizados. Mas os daqui ninguém vê. São fantasmas. E não colocam placas. Só sentimos depois do baque.

          Dessa aventura o resultado foi a troca de dois amortecedores, duas lâmpadas queimadas e o escapamento estourado.
          Meu desejo era terminar essa crônica ou sei lá, relato de viagem, vai, com vários palavrões e pessimismo com toda a situação, mas lembrei de minha mãe, que dizia que tudo tem um lado positivo.
          Assim fui Tirando a bagagem toda amarfanhada. Na chuva mesmo. O portão cismou em não abrir.  Desconfiava que no porta mala tivesse mais surpresa e vi as roupas encharcadas, tralhas quebradas, o violão tinha perdido a “mizona” arrebentada, um vidro de molho de pimenta malagueta esparramado  junto com o cheiro da cachaça derramada. Um verdadeiro samba do crioulo doido.

          Quando ia soltar um palavrão escolhido a dedo bem impudico, vil, sórdido, vi  lá no cantinho enrolada  numa folha de jornal amassado, a santinha, comprada a pedido,intacta e vestida com seu manto negro e dourado, aí desabafei.

          -Temos que lutar pelos nossos direitos sim! Nós, simples mortais pagamos os impostos em dia.           
          -O que fazem com os impostos? Enchem o bolso.
          
          -E que podemos discutir religião sim!
          -Discutir futebol sim!
           Temos que falar sobre sexo sim!
          Temos que discutir política sim!
         -Mas tudo civilizadamente, com educação e respeito pelo outro.
Só assim, podemos melhorar o lugar que vivemos.

          E que Deus seja louvado.