quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Sobre a questão das leis






Em geral as nossas leis não são conhecidas, senão que constituem um segredo do pequeno grupo de aristocratas que nos governa. Embora estejamos convencidos de que estas antigas leis são cumpridas com exatidão é extremamente mortificante ver-se regidos por leis que não se conhecem. Não penso aqui nas diversas possibilidades de interpretações nem nas desvantagens que se derivam de que apenas algumas pessoas, e não todo o povo possa participar da interpretação.
Talvez estas desvantagens não sejam tão grandes. As leis são tão antigas que os séculos contribuíram para a sua interpretação e esta interpretação já se tornou lei também, mas as liberdades possíveis a respeito da interpretação, mesmo que ainda subsistam, acham-se muitos restringidos. Além do mais a nobreza não tem evidentemente nenhum motivo para influir na interpretação por seu interesse pessoal em nosso prejuízo, já que as leis foram estabelecidas desde as suas origens por ela mesma; a qual se acha fora da lei, que, precisamente por isso, parece ter-se posto exclusivamente em suas mãos. Isto, naturalmente, encerra uma sabedoria – quem duvida da sabedoria das antigas leis -, mas ao mesmo tempo nos é mortificante, o que provavelmente é inevitável.
Além do mais, estas aparências de leis, apenas podem ser na realidade suspeitada. Segundo a tradição existem e foram confiadas como segredo à nobreza, mas isso não é mais do que uma velha tradição, digna de crédito pela sua antiguidade, pois o caráter dessas leis exige também manter em segredo sua existência. Mas se nós, o povo seguiu atentamente a conduta da nobreza desde os mais remotos tempos, e possuímos anotações de nossos antepassados referentes a isso, e as temos prosseguido conscienciosamente até acreditar discernir nos fatos inumeráveis certas linhas diretrizes que permitem concluir sobre esta ou aquela determinação histórica, e se depois destas deduções finais cuidadosamente peneiradas e ordenadas procuramos adaptarmos de certo modo ao presente e ao futuro tudo aparece então como incerto e talvez como simples jogo de inteligência, pois talvez essas leis que aqui procuramos decifrar não existam. Há um pequeno partido que sustenta realmente esta opinião e que procura provar que quando uma lei existe apenas pode rezar: o que a nobreza faz é a lei. Esse partido vê apenas atos arbitrários na atuação da nobreza e rechaça a tradição popular, a qual, seguindo o seu parecer, apenas comporta benefícios casuais e insignificantes, provocando em troca grave e danos, ao dar ao povo uma segurança falsa, enganosa e superficial com respeito aos acontecimentos do futuro. Não pode negar-se este dano, mas a maioria esmagadora de nosso povo vê sua razão de ser no fato de que a tradição não é nem mesmo ainda suficiente, que, portanto há ainda muito que investigar nela e que, sem dúvida, seu material, por enorme que pareça, é ainda demasiado pequeno, pelo que terão que transcorrer séculos antes que se revele como suficiente.
O obscuro nessa visão aos olhos do presente apenas está iluminado pela fé de que virá o tempo em que a tradição e sua investigação conseqüente ressurgirão de certo modo para por ponto final, que tudo será aclarado, que a lei apenas pertencerá ao povo e a nobreza terá desaparecido. Isto não é dito por ninguém e de modo algum com ódio da nobreza. Melhor, devemos odiar-nos a nós mesmos por não sermos dignos ainda de ter lei. E por isso, esse partido, na realidade tão atraente sob certo ponto de vista e que não acredita, em verdade, em lei alguma, não aumentou as suas fileiras, e isso porque ele também reconhece a nobreza e o direito de sua existência. Em realidade, isso apenas pode ser expresso com uma espécie de contradição: um partido que, junto à crença nas leis, repudiasse a nobreza, teria imediatamente a todo o povo a seu lado, mas um partido semelhante não pode surgir porque ninguém se atreve a repudiar a nobreza. Sobre o fio desse cutelo vivemos. Um escritor resumiu isso certa vez da seguinte maneira: a única lei, visível e isenta de dúvidas, que nos foi imposta, é a nobreza, e desta lei haveríamos de nos privar a nós mesmos?

Franz Kafka