sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Não me pergunte o motivo


       Foto sugada de http://obviousmag.org/j_domingues/2015/como-nasce-um-escritor.html




          Um belo dia depois de sair de um castigo, - minha mãe tinha imposto escrever do próprio punho “Eu estou arrependido” cem vezes numa folha de papel almaço, tinha xingado alguém de filadaputa,-  ressabiado  fiquei ali a beira da estrada sob a mangueira, que todos respeitávamos, afinal ela nos dava  três coisas essenciais: O fruto, a sombra e a algazarra dos passarinhos ao cair da tarde.

          Emburrado eu cavava a terra fazendo um buraco. Foi quando os meninos da rua do rio, ao passarem para a escola me gritaram:

          -Estais cavando um buraco para chegar ao Japão moleque?

          Eu não respondi, mas confesso que fiquei encafifado. Será que se a pessoa cavar, dia e noite e noite e dia sem parar chegará ao outro lado da terra? Seria interessante, ah seria. Sair de um buraco no meio do Japão! Eles ficariam tão assustados que me olhariam com os olhos fechadinhos.

Assim não parei de cavar. Mas tarde outro passou:

          -Cuidado menino, pois cavando assim com tanto afinco, pode bem daí jorrar petróleo!
Dessa vez não pude segurar o riso. Sabe que seria o máximo! Eu, euzinho, o maior produtor de ouro negro da terra, do universo, das galáxias?
Seria um Sheik. Usaria aqueles turbantes, teria um castelo, um harém para meu deleite. Só assim talvez Maristela olhasse para mim. Ela a causadora principal do xingamento. Aquela presunçosa, ridícula e gananciosa. Não! Ela não é gananciosa, pois quando ela me beijou atrás da porta eu ainda não era Sheik. Ela é só um pouquinho chata e beijoqueira. Só.
Continuei cavando. Ainda não tinha decidido nada. Também se jorrasse água não era de todo ruim. Aqui água é dinheiro.

          Enquanto cavava ia perdendo a raiva e notava principalmente que quanto maior as coisas, maiores os desafios. Os que me viam de longe via a terra saltando do buraco igual uma abelhinha que perdi horas e horas da minha vida vendo o trabalho incansável dela em perfurar uma parede. Entrava, cavava, jogava a areia para fora com as pernas. Tinha muito esmero em fazer o buraquinho. Passei o dia observando. Fiz até uma lente de aumento com uma lâmpada cheia dágua. Aprendizagem sabe? Deu pro gasto. Qualquer dia conto das minhas invenções. Gosto de desenhar, de escrever, de tocar violão até versos tento fazer uma vez ou outra. Não mostro pra ninguém. Necadecapiberibe. Pra mangarem de mim! Nunca!  Outra hora.
Sabia que quanto mais fundo o buraco a terra vai ficando úmida e morna? Eu não sabia. Será que é para os mortos não sentirem frio?

          Quando deram seis horas minha mãe apareceu na borda. Devia está com pena de mim. As mãos nos quartos ela disse:

          -Pára com isso menino, sai daí e vem comer um pouquinho. Fiz aquela comidinha que você gosta!
Não respondi. Quando ela ia saindo eu disse sem olhar-la que ia morar no buraco. E frisei: Para sempre.
Ela foi sorrindo. Ainda disse sem se voltar:
          -É mesmo! E vai viver de que?

          Assim fiquei matutando como seria viver num buraco. Fui enumerando: As formigas moram e que eu saiba moram muito bem. O tatu, o coelho, a cobra, algumas abelhas, cupins, traças...
Estava lembrando-me de mais, quando ouvi os moleques voltando da escola.
Um aproximou. Sempre é aquele nosso amigo, arreliento. O que beijou Maristela e me contou sorrindo. O filadaputa.

          -Fica aí bobo, que nessa profundidade, se tu morrer agora mesmo não vai ter trabalho algum. Vai ser só jogar toda essa terra de volta e plantar em cima uma cruz. Aqui Jaz um Zé ninguém.
Aí comecei a chorar. Eu não queria ser Zé ninguém! Queria ser alguém na vida! Não um número de CIC, CPF, identidade ou   isso em minha lápide! Zé ninguém...
E pra Zé ser alguém precisa de que? Fiquei pensando e chorando.
Nunca tive tanto dó de mim na vida  quanto esse dia.
 A empregada lá de casa chegou, olhou para minha cara e disse:

          -Liga não dona Nazinha, é banzo. Meus antepassados sentiam o mesmo quando tinham saudade da África. Demora mas passa!

Então foi decretado que eu estava com “banzo”.
Esse banzo não é bom. É uma dor igual senti mais tarde com a morte dos meus pais. É dor e abandono. Junto é pior.
                                ***
Na coluna diária que escrevo alguém um dia perguntou:

"Com toda vênia que o senhor escritor merece, me diga uma coisa: o senhor viveu  tudo o que escreveu ou escreve ou de outra forma,  mentiroso e vil inventa essas coisas num lampejo para se vingar de quem viveu verdadeiramente? Ou o intuito é encher a página dessas coisas e embolsar a grana?
Assina: Maristela.

Até hoje não respondi.
Confesso que não sei.