terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O estreito beco da vida


Naquela fria manhã de inverno, a brisa soprava amena como em um dia comum, a natureza explodia em beleza, foi quando tudo aconteceu. As energias universais calaram-se talvez com desdém do ódio e do terror. Porem, não se pode desprezar o maligno neste tempo nem nos remotos séculos passados, pois, ambos o bem e o mal andam lado a lado.

Numa alcova escura, Antônio escovou os dentes, cuspiu na pia branca, cascas de feijão e restos de verdura e observou quanto mal fazia sua higiene: pelo ralo desceu resíduos que estavam impregnados em seus dentes. Olhou-se no espelho e custou a se reconhecer naqueles olhos brilhantes, olhar de felino no escuro.

Foi ao quarto da filha, curvou-se e beijou-a na testa, viu a mulher deitada de bruços, mirou-a, encostou a porta em silêncio saindo para a rua. Olhou o céu e viu que as estrela ainda não tinham perdido o brilho, e no opaco dos seus olhos as sombras dos postes caiam esqueléticos sobre a terra amarelada pelas luzes.

Os homens para ele eram indecifráveis. Nessa estepe, havia os que eram tão amorosos, mas que de repente, quando eram contrariados por algo singelo, pobres homens, o coração explodia como bola de soprar, irados; outros iam guardando as mágoas em lugares sombrios, e esses sentimentos, represados envenenava o sangue e quando se rompia, explodiam como vulcões outrora extintos.

Com esses pensamentos pesando sobre si, olhou em volta a escuridão, os sons e cheiros monótonos do universo faziam ouvir a pequenez dos seus passos sem ecos no estreito beco da vida. Mirou o relógio. “Exatamente na hora, pensou. Como todo o sempre. Ali na esquina viu o padeiro. Em cima do pontilhão cruzou com a lavadeira. Viu-a Atravessar o pequeno rio, poluídos pelos esgotos fétidos.

A palafita seguia as margens do rio, implorava uma salvação que jamais viria. Urubus revolviam o lixo, e algumas pessoas com sacos nas costas separava coisas. “Que vida meu Deus!” Subiu os degraus, observando os pés nos passos vagos. Sentiu na pele o frio do vento, “passa morte longe de mim”, e persignou-se. Observou os braços fortes. Trabalhador braçal na construtora.

Entrou numa rua de casinhas coloridas e sentiu o cheiro de café fresco. Esse cheiro trouxe-lhe recordações. “Senta e come traste!”. Ouvia frases ditas distantes. E ai sentava e comia uma água salobra com um pouco de farinha, quieto. Morde os lábios frios pelo vento. “Agente nasce só e vive só nesse mundão. Somos como boiada, perdidos... sem rumo”. Apressou o passo em direção ao centro do pequeno povoado.
Deu uma carreira como para afastar os maus pensamentos e saltou um muro. “Bem na hora, não falei?” No mesmo instante o trem passava sobre os trilhos gemendo, as rodas de ferro batiam nos dormentes fazendo um barulho ensurdecedor. Postou-se bem perto para sentir a terra contígua afundar. Gostava daquilo, sentir-se bem perto da morte, ouvir seus alaridos o seu hálito sanguinolento. Viu-se deformado sobre as rodas, a cabeça separada do corpo, livre de todos os pensamentos ruins, e a paz.

Observou que se tomasse essa decisão, seria melhor para todos, para o mundo até, refrearia todo seu ímpeto, como um arco distendido sem força para a propulsão, e tudo se acabaria naquele instante como um passe de mágica, e o plano que arquitetou há dias, esse terrível plano, não se completaria e assim a vida correria o seu rumo, na rotina dos dias como um rio no silêncio dos vales, sem surpresas.

E esse plano que arquitetava era como as aranhas que tecia suas redes insólitas, somente no intuito de pegar suas presas. Sobravam então milhares de vítimas inocentes dos instintos maléficos dos homens. Que no silêncio, traçam as armadilhas para seus semelhantes, investidos unicamente pela cobiça e ganância, levando até o fim dos séculos suas fúrias. Pobres vítimas. Sem escapatória ou clemência. Sem lágrimas nem súplicas, nem nada. Nada.

O trem passou e as pessoas que se juntaram espalharam-se pelos caminhos em algazarras. Uns entravam a esquerda, conversando outros a direita apressados sem fitarem-se nos olhos suas tristezas. Ele em frente e em silêncio.

Como em qualquer desastre, segundos antes, tudo é normal, sem avisos de qualquer natureza, a não ser, pequenos detalhes não observados pelo olho humano. E o tempo, esse escoa vagarosamente, enchendo o silencio de sons descompassados, batendo como um coração cansado. Empurrando o sangue através das veias, aos minúsculos capilares. E no momento ímpar, do infortúnio, nada se passa despercebido, nem uma simples folha que cai. Apenas uma folha. “Ao cair da mais diminuta folha as grandiosas coisas, Deus todo poderoso tudo sabe” Pensou na frase dita pela mãe quase todos os dias.

Desceu a rua beirando o rio. Sobreveio um hálito de coisas velhas. Estava quase na hora. O sol brilhava no canavial. Parou olhando o chão. Tudo começou, há muito tempo, quando matou e decepou por inteira uma pequena ave. Pegou-a nas mãos, que ainda não eram calejadas. Curiosidade de criança. O pai falou. “Depois ele larga disso, qual menino que nunca fez traquinagem?” Nessas traquinagens sentia um prazer estranho de poder sobre as coisas, as pequenas criaturas. Cortava a cauda e ria baixinho de prazer. O pobre bicho se contorcia de dor.

Depois ia lanceando devagar, amputando-a toda. Via feliz aquele pequeno ser indefeso e frágil capengar. Os pequenos olhos do bicho piscavam e quando finalmente retirava as vísceras segurando-os nos dedos o pequeno coração da criatura, chorava; chorava de prazer. Nesse momento observava que o pulmão era como uma pequena bolha de sabão. Só largava-o quando os pequenos olhos estavam sem brilho e completamente opacos.

Sentou-se no meio do canavial e ficou parado como uma fera no cio. E nesse dia o sol parecia estático, uma eternidade que vinha rondando no mesmo lugar perscrutando o silêncio, os sons, o cheiro, ameaçador. Viu um formigueiro em fila indiana, um movimento contínuo, desesperador para ele, infernal até, pois não gostava dos ritmos, da rotina do dia a dia, perguntando-se para si que força movia esses pequenos seres, acordar tão cedo, ter todo trabalho, todos os dias, meses, anos e séculos indefinidamente para sempre. Depois escutou os pios dos pássaros, o vento tangendo as folhas e o som parecia da infância, quando assava pipocas , o estouro dos grãos, enchendo a panela com a polpa branca e macia, comer queimando o céu da boca, receber umas tapas e encher-se de sentimentos ruins. Sentir uma secura nas entranhas que água nenhuma o saciava, nem a água gostosa dos potes de barro da infância.

Num impulso de ira, esmagou toda uma fileira e as observou correrem pela sobrevivência, para lá e pra cá com as mãos à cabeça como tentando compreender aquela fatalidade, ajudando-se umas as outras, fraternas nas dores, se tocando amigavelmente, questionando o motivo da grande tragédia que as abateram. E talvez, ao anoitecer orassem aos mortos, perante um deus e chorasse suas dores e rogassem proteção e paz, porquanto, no outro dia continuava tudo de novo, a mesma fila, o mesmo trabalho, os mesmos sonhos e as mesmas aflições. Não entendia essa fé no invisível. Gostava da dor, depois de tudo o caos.

Sorriu pesaroso. “Pobres criaturas! Se soubessem que seu deus era tão surdo que mesmo com a total aniquilação jamais seriam ouvidos seus gemidos e orações.” Deitou na grama macia, entediado e fitou o tapete azul do céu. Sentiu-se livre e possuidor de todas as forças. Dias e dias caminhou o mesmo caminho. E sempre viu as mesmas pessoas, as mesmas casas fechadas, os sons que vinham dessas casas alguns sombrios como urros e gritos e choro. Muito choro de criança. As casas com seus tormentas e dramas. Foi numa daquelas vielas que a viu pela primeira vez. A menina. Pobre menina de trancinha, amarrada com laçinho de fita amarela. Um arco dourado com uma constelação de estrelas azuis.

Ela acordou como todos os dias fazia. Feliz. Correu para a cama dos pais e beijou-os no rosto. Depois se vestiu e preparou a mochila com um pequeno pedaço de bolo de chocolate e suco de laranja. Da porta acenou e ouviu ainda “Deus te abençoe filha” e saiu correndo pela mesma estrada. Os pássaros eram os mesmos, gorjeavam as mesmas canções, as flores perfumavam o campo, o aroma doce de matas frescas e as borboletas bailavam no ar furta cores. Nada diferente. A beleza é inócua, não tem sentimento. Se por acaso tivesse, as flores essa manhã estariam murchas, os pássaros silenciosos, o sol rubro ou sombrio, a brisa, não haveria brisa e as borboletas não ousariam saírem dos casulos.

Se um meteoro gigantesco entrasse na atmosfera terrestre, em fogo e colidisse num impacto grandioso com a terra o terror não teria sido tão grande. A força da gravidade impulsiona os corpos um de encontro aos outros, do menor para o maior. O rio corre para o mar. As ondas quebram na praia. Que força atraiu aquela menina?
A menina ainda olhou para trás e acenou à última vez. E esse movimento formou ondas invisíveis no espaço, como gritos e lamentos e lançou desespero e abandono na humanidade e todos começaram a chorar lembrando cada um de seus dias tristes e era tanto pranto que o espaço ficou branco e rígido e essa parede invisível abafou a todos e foi por isso talvez que as forças do bem ficaram imóveis. Havia um vazio nas pessoas, algo para se temer.

Se num truque de cinema, levantássemos a câmera numa visão geral bem de cima, segundos antes do impacto, viríamos à estrada deserta ladeadas por grandes canaviais e as pegadas de ambos, uma de encontro à outra, uma grande outra pequena, como foi Jesus ao encontro do diabo, ambas se encontrando, inexoravelmente, debaixo daquela árvore onde existiam as três cruzes de madeira pintada. A menina e o monstro.

A menina prosseguiu, ora cantando ora calada, sem imaginar jamais o que a esperava. Quando as mesmas ondas tocaram aquele ser feroz deitado, esperando a presa, tão inocente e desavisada que nem as forças ocultas perceberam, pois o dia era magistral, o sol penetrava nas clareiras, borboletas tremulavam no caminho, o riacho, o pequeno riacho, corria quieto para a imensidão do mundo e sabia que bem longe encontraria o mar. E o mar um azul escuro e profundo como a tristeza de saber-se só. E que jamais voltaria para casa, não na mesma forma, mas talvez como o rio que corre para mar e volta em forma de chuva; outras formas, outros elementos...

Naquela fria manhã de inverno, a brisa soprava amena como em um dia comum, a natureza explodia em beleza, foi quando tudo aconteceu.