quinta-feira, 3 de novembro de 2016

O Programa




             
             
                              A rua


Eram seis da matina. O vigilante Severino vinha subindo a ladeira em direção ao centro. Trabalhava a noite e vinha morto de sono. No sentido contrário vinham os irmãos Ariosvaldo, Reginaldo e mais um menor.
          
          -E aí mano como vai?  Batem-se as mãos como o usual.
          -Tô morto cara! Estou vindo do trampo. Vinte e quatro horas sem dormir. E aí quem é o intruso?
          -De menor cara, ele tem umas idéias aí, ta afim?
          -Porra estou fora de órbita, mas coé?
          -Vamos fazer um ganho agora. 

Mostra o tresoitão, por baixo da camisa. De menor saiu hoje, da casa de custódia, mostra aí mano. De menor levanta a calça. Usa uma tornozeleira eletrônica. Sorri. Ariosvaldo pega no ombro do outro como fazem os amigos. Fala no ouvido do outro:
          
          -O amigo tá duro pacas, entende precisa arrumar uns para a sobrevivência e aí demos a ideia da loja lá do centro. Mesma coisa de tomar doce de criança. Tem uma mina e um segurança otário entendeu!
          -Sei! Mas como vai ser a comissão?
          -Pô cara dividimos em quatro! Sem apelação!
          -Aí! Tô dentro! Qual minha função?
          -Pô meo, De menor vai chegar na cara dura, arma em riste entendeu. Qualquer coisa de errado ele toma a frente, sabe como é a lei! Eu vou com a mochila guardando os cobres, meu irmão fica na esquina e tu fica de retaguarda, certo. Sem vacilo! Qualquer movimento avisa.
          -Falou mano! Conheço a mina lá de vista! Uma bunda, porra! Se der mole como. Deixa esse agrado pra mim?

          -Qual é malandro, nós é bandido mas temos ética, não somos estupradores não! Mas se tu quer, depois de pegar nossa grana, pode fazer o que quiser!

          -Quero muito! Já tentei ficar com ela, mas a fila da puta não quis! Tá na mira!

                           A loja


Lúcia tirou a blusa e deixou à mostra um seio. Duro. A auréola escura. Pegou outra blusa com um tom azul turquesa e vestiu com certa dificuldade, já que usava uma só mão. As pernas longas e malhadas dificultavam o trabalho. Ao mesmo tempo tirou a calça, a bunda bem torneada, e vestiu de diferente cor para combinar.

Marlon o segurança, a olhava de meio jota há muito tempo, talvez dali surgisse um romance, pois ambos se olhavam, e não segurou o riso ao ver Lúcia com tanta destreza em trocar as roupas dos manequins.
Ele por seu turno pegou todo o dinheiro do caixa, colocou numa bolsa de plástico escura e se dirigiu a sala onde guardava as notas maiores até o horário do depósito na rede bancária. Foi quando ouviu o grito:

          - Assalto! Todos quietinhos e de mãos para cima. 
Marlon só teve o trabalho de fechar a porta por dentro. Porra! Porra! E agora pensou. Lembrou-se que deixara a arma na gaveta. Assim o que podia fazer era ficar quieto e rezar.

De menor veio com a arma e apontou para a cabeça de Lúcia.

          -Aqui seu pilantra! Abre essa porta e passa todo o dinheiro senão vou estourar o crânio da mina aqui! Lúcia estremecera.
Enquanto isso Ariosvaldo ia rapidamente enchendo a mochila com peças de roupa.

Lúcia estava fria. O cano do revólver machucava sua fronte. “Pai nosso que estais no céu... Não me mate! Por favor!

         -Só depende do seu parceiro! Abre essa porta aí! Vou contar até três. Depois o bicho vai pipocar!

-Um...Dois e Pum!

Quando o capitão chegou, tinha cérebro espalhados por todo o teto. 

                             Rádio

O locutor dando ênfase à fala:

          -Estou aqui com o Capitão Dagoberto, boa noite capitão! Agradeço sua presença aqui.

          -Boa noite, Áureo, boa noite ouvintes!
          -Capitão, conheço seu trabalho, um trabalho árduo, competente, fazendo o que pode para a segurança do município, queria saber do senhor o que podemos fazer para melhorar estas estatísticas de terror que hora ou outra aparecem como esse agora da morte da senhorita Lúcia, vendedora, esse crime bárbaro...
          -Olha Sr Áureo, até que esse ano as estatísticas estão favoráveis, estamos combatendo esses crimes e outros, eu criei  a guarda de bairro, coloquei mais homens nas ruas, dita números, continua:  -Mas esses crimes é de difícil prevenção. A lei é frouxa. Logo os indivíduos estarão soltos!

          -Eles, os assassinos, já estão presos?
          -Sim. Meia hora depois do comunicado, saímos em diligencia, e pegamos os quatro meliantes...
          -É verdade que existe um menor?
         -Verdade! E como sempre eles confessam o crime! Assumem tudo! A pena para menores é branda!
O Locutor fica em silêncio. Faz algumas observações a respeito das leis, do ser humano, da maldade...
         -Como se sucedeu a prisão Capitão, eles tentaram fugir? Responda por favor no segundo bloco. Propaganda.

         -Ah! Sempre tentam. Sempre que ocorre crime nessa região sabemos que podem seguir pela rua do rio. Então montamos bloqueio no acesso a uma estrada vicinal  ao Centro. Já havíamos recebido as características do carro, um fusca ano meia nove, branco, que logo avistamos.
 Fizemos a abordagem e conseguimos prender todos eles ainda com a arma do crime.
Ele destacou que todos têm antecedentes criminais, exceto o vigilante.
          -Eles iniciaram alguma reação?
          -Não Sr Áureo, é sempre assim. Quando são cercados parecem criancinhas, até choram, chamam pela mãe...
         -É isso, infelizmente a moça morreu, e agora? Dá sinal para baixarem a musica. Continua: Logo logo advogados, usarão as brechas da lei que são muitas, colocam esses salafrários em liberdade e presa mesmo estará a menina Lúcia, dezesseis anos, uma vida inteira pela frente. Obrigado Capitão Dagoberto, pelo seu trabalho, uma luta constante, que oxalá um dia consigamos viver em paz. O capitão tece os últimos comentários e...
          -Obrigado! Amém!
O contra regra aumenta o volume da música de fundo. O locutor imposta a voz:
         -Vocês acabaram de ouvir: Ronda policial. O programa que não tem medo de falar a verdade doa a quem doer.
Entram as propagandas.







terça-feira, 1 de novembro de 2016

O buraco






                             O buraco

Tinha lido algo, a respeito da criação.  Nele o autor falava sobre a dificuldade dos primeiros passos, exemplificava com frases de outros autores e finalmente dava algumas dicas genéricas a respeito, da relevância das anotações, do escrever sem medo, dos cortes etc.

 Assim ao terminar o livro, sentiu-se como a lagarta que sai do casulo, transformada em uma linda borboleta, apta ao voo, a descoberta, ao primeiro texto.

 Nessa manhã de primavera, onde o sol brilhava lá fora, se achava frente à tela do computador. Abriu o Word e cintilou a página em branco.

Pegou o dicionário, as anotações que vinha fazendo no decorrer da semana, pensamentos, características, conceitos uma parafernália de palavras, e escreveu a primeira frase. Achou que não tinha consistência. 
A primeira frase serve de engodo para o leitor. Tem que ter conteúdo. Deletou.

          -Filho! Vem aqui!

          -Mãe! Eu estou tentando criar algo, uma poesia, um texto!

          -Deixa de vadiagem! Venha aqui!

Osvaldo deixou o computador ligado, minimizou o Word. Sempre tem os curiosos, e desceu ao quintal.

          -Seu pai pediu para você furar um buraco aqui! Temos que fazer uma cisterna! A água está cada vez mais rara.

          -Mas mãe logo agora que tinha uma ideia, o texto começara a correr macio, sem entrave, como um rio de planície.

          -Filho, primeiro o trabalho, depois a vadiagem!

Disse isso trazendo uma cavadeira e uma balde.

          -Mãos a obra, ele disse.

Tirou a camisa e ficou só de calção e descalço. Gostava de sentir a terra sob os pés.

Começou com as mãos mesmo. Nada de utensílios por enquanto. Queria fazê-lo o mais simples possível. Tirou as folhagens. O buraco seria embaixo da mangueira. Ainda bem. Uma sombra refrescante.
Quando cavou os primeiros centímetros já sangrava e doíam as unhas. A terra estava úmida e encontrou por acaso, moradores daquela profundidade. Pequenos insetos e minhocas.

As minhocas são importantes para a agricultura e para os pescadores como engôdos para os peixes.

O solo se cortado em longitudinal parece uma tela a óleo. 
Ia observando tudo isso com seu trabalho braçal. Engraçado que diferente de um texto, ele observou que cansava fisicamente no entanto a mente  estava leve e solta livre para pensar.

Pegou a cavadeira. Bateu firme no solo, e enchia a balde. Depois derramava ao lado. Ia se formando uma montanha roxa. Seria assim a formação das montanhas? Dos montes?

Gotas de suor pingavam na fronte. Ele passava o indicador e aspergia para o lado em gotas. Foi lentamente arredondando as bordas. Ansiava um buraco bem feito com paredes paralelas. Lá para o meio dia ele já desaparecia dentro dele. A terra é morna. Incrivelmente morna. Já podia sentar. E ficar olhando sua obra. A obra tinha lá sua importância, mas não era tudo. Mais ou menos um metro e oitenta de diâmetro e dois metros de fundura. Sabia por que conseguia deitar e ficar olhando as nuvens passando. A terra, essa terra que um dia cobrirá seu corpo, como um cobertor, lhe protegendo do frio, das adversidades do tempo, das intempéries da natureza, guardando seus ossos até tornarem-se iguais, somente pó.

Almoçou com grande apetite. O trabalho braçal lhe deu fome. Os outros dão-nos fastio. Será por isso que a maioria dos escritores do passado morria jovem? Será que a criação de arte suga nossa vida? Suga nossa alma?

Fez a sesta. Em sua casa era sagrado. Logo após o almoço corriam aos quartos. Um sono leve de meia hora. Levantou disposto. Passou em frente ao computador. O cursor piscava. Tinha forma de garra. Ele que quis. Baixou da internet.

A página brilhava a espera de uma palavra, uma frase, um parágrafo. Teclou sem muita convicção:

“A vida é formidável porque é finita”.

Minimiza novamente a janela.
Pegou a cavadeira e a pá. Era hora de continuar o trabalho.  Toca em algo. Uma raiz. Estava viva, pois correu uma seiva. Era o sangue das árvores. Se eu arrancar a mangueira poderá morrer, pensou. Deixou de lado. Servia como escora.
Bateu no fundo com força. Um baque seco. Duro. Uma pedra.
          -Porra!

Lembrou de Drummond: Uma pedra existia no caminho! E agora José?

Bateu e bateu. Nada. Deve ser a ponta do iceberg, se pedra fosse igual às geleiras. “Se não conseguimos remover o problema do caminho, dê a volta, contorne-o”.  
Foi o que fez. Foi contornando-a. Passou dela mais de um metro. Servia de escada. Era da cor cinza.
Um tumor? Um trombo dentro de uma artéria? Uma hemorroida? Essas imagens ridículas apareceram.

Agora tinha arrumado um ajudante. Seu irmão menor. Ele apareceu pela necessidade da obra. Victor. Tinha doze anos.

          -Você deve ajudar seu irmão! Sua mãe disse.

 Depois de lhe xingar de todos os nomes feios, pois estava perto de zerar um game apareceu na borda do buraco.
Trouxe a corda e na ponta a balde. Jogou no fundo. Ele enchia e o irmão puxava para cima, com força. O céu começou a escurecer. Victor jogou a escada e ele subiu. Por hoje chega, disse, se limpando.

Victor saiu alegre. Podia voltar ao jogo. Deixamos o buraco inacabado. Olhou de cima. Era um cone comprido. Vazio. Foram dormir.
O outro dia era sexta feira.

         -Vou passar toda féria nesse buraco, questionou.

         -Essa porra se continuar vamos chegar á china, Victor brincou.

Não era de todo uma má ideia. Chegarmos à China ou outro lugar qualquer. Continuaram  cavando. 
Incrível como o buraco os aproximou, se conheceram de verdade nesse período, mesmo.

Ele falou dos seus jogos. Era sempre uma jornada do herói. No início o herói no mundo comum, vivendo em paz, construindo junto da família.  Depois algo quebra essa harmonia. Pode ser um ataque de uma tribo, um roubo de uma mocinha, que o herói para resgatá-la terá que vencer vários obstáculos e fases. E em cada final de fase terá que lutar com um chefão. E no final do jogo lutará com o maior chefão, o mais perigoso, numa batalha épica de vida e morte, onde o herói usará todos os truques que treinou incansavelmente nas fases e vencendo o inimigo poderá levar de volta sua amada. A maioria dos games é assim.

          -Estou na última fase , para derrotar o chefão!

Findou mais um dia. Victor desceu a escada. Osvaldo ainda ficou lá dentro retirando o resto de terra. A noite tinha caído. Com certeza ele Victor foi zerar o jogo. Era sua vida virtual.  
Vida diferente. Seu irmão entrava na vida de personagens criado por outros, Já Osvaldo vivia a vida de personagens criado por ele mesmo.
Nisso uns braços puxou de volta a escada.

          -Hei! Ainda estou aqui, gritou!

Não ouve resposta.
Ouviu barulho de pá.  Pás de terra caíam sobre ele em abundancia. Alguém queria enterra-lhe vivo. Era isso. Começou a gritar. Em vão. Não lhe ouviam. 

-Eu ainda estou aqui e estou vivo, gritou.

 Por fim pensou. Tenho que fazer algo para safar-me. Saltou no intuito de agarrar a pedra. Estava fora de alcance. Os dedos estavam feridos. Doloridos.
 Mais terra caiu sobre ele, até cobrir-lhe por completo. Aturdido pensava: “Se eu fosse uma minhoca?”. Ia furando a terra até a superfície. Se fosse um verme talvez.
Mas era apenas um jovem tentando fazer um texto, que se transformou num buraco enorme, vazio, lutando contra tudo e todos, só o seu corpo, em posição fetal, engolido agora, sem meias palavras.





segunda-feira, 31 de outubro de 2016

O jogo





                                O jogo

Chegou bem cedo para a partida de dominó. Era sagrado. Todos os domingos depois da missa. Eram amigos de infância. Otávio e Ricardo. Um sabia tudo da vida do outro.
Otávio cumprimentou o amigo, pediu a mulher uma cerveja gelada e os petiscos de sempre: queijo fatiado e azeitona enfiada em palitos.   Baralhou as pedras com cuidado rodando com as duas mãos pela mesa.
Sentaram-se frente ao outro. Pegaram as pedras. Roberto dá início.
          -Hoje quero duas buchudas!
          -Vamos vê!
Depois de duas horas de jogo acirrado, Otávio dá o tiro de misericórdia colocando cabeça de terno nas duas pontas. Sorri.  Faz as contas mentalmente. Saiu quatro pedras.  Tem quatro com ele.  Agora sou o dono da partida, pensa. Chama a mulher.
          -Benhê! Trás mais uma gelada!
Ela entra com a garrafa de cerveja na mão. E na outra o abridor.
Ricardo olha atentas, as pedras.
          -Passo, disse Ricardo.
Otávio coloca uma sexta pedra.
          -Passo novamente, disse Ricardo. Otávio sorri. Levanta-se faz uma pantomima, e diz:
         -Aqui quem manda sou eu! Essa ponta é minha! Viu!
Ricardo sem paciência.
          -Joga!
Otávio coloca a pedra, com força.
          -Bati! E de carroção! Vale dois pontos! Fechei! Faz uma algazarra com o amigo, empurra, bate nas costas.
Depois da festa chama a mulher.
        -Benhê! Mais uma!
Ricardo avisa com gosto.
          -Ela saiu você não viu?
          -E´? Nem vi. Estava tão entretido com minha vitória!
Faz a observação
          -Anda entretido demais, não acha?
          -O que você está querendo dizer?
          -Que ela saiu e saiu com um short tão curto que se andar rasga!
E completa:  
          - Você não tem ciúmes dela sair assim não?
E desabafa para o amigo:
          -Aqui pra nós, com todo respeito.
Ricardo vai até a cozinha. Pega a cerveja. Otavio meche as pedras. Fica pensando.
Ricardo enche os dois copos. Toma o dele de um gole só. Chupa a espuma do bigode. Vai até a porta da sala. Observa se Helena havia saído mesmo. A rua deserta. Carros passam. Volta com as mãos nos bolsos.
          -O que foi, pergunta Otávio. Desembucha!
          -Não consigo ficar calado! Quando sei essas coisas, ainda mais de um amigo! Dá uma raiva! Tenho que contar! Mas é uma bomba!
Otávio solta as pedras. Fica rodando uma na mesa. Parece uma roleta.
          -Acende o estopim amigo! Que venha a bomba.

                                  A bomba

Ricardo toma mais um copo para criar coragem. Respira fundo. Fala.
          -Tua mulher, nunca desconfiou dela?
Olha para Otávio. Ele está pálido. Assustado. Por fim consegue balbuciar algo.
          -Nunca me deu um quê assim de preocupação! A família toda é assim. Da antiga. Quando casam é para a vida inteira.
         -Pois é! São dessas que eu desconfio mais, disse Ricardo.
          -Olha amigo, pare de falar mal da Leninha, pois é uma santa mulher. Aliás, ela vai todos os domingos na missa das sete, comunga com Cristo, e sai muito pouco de casa...
          -Mas esse pouco que sai, segundo a cidade inteira... inteira viu, quando você sai para o trabalho ela sai para os braços do amante. A pergunta é: Como você não sabe? Pois toda a vizinhança está careca de saber e falam por aí que você é um corno manso. E você sabe que nossa amizade não foi feita nas coxas! Isso não! Nossa amizade veio do berço, lá do interior, nossos pais foram vizinhos, compadres, toda essa coisa que faz os laços mais fortes...
          -Peraí!  Você tem provas? Porque essa vizinhança sempre teve inveja de mim, por que Heleninha é um show de bola de mulher, gostosinha, carinhosa e se não provar, toda essa ignomínia contra nós, essa amizade que tanto alardeia por aí, termina por aqui... Por essa luz, por Deus que se você não provar agora, não quero ver você aqui nem pintado de ouro, ouviu?
          -Mas amigo, como provar essas coisas?  Só se armar uma tocaia e como se diz por aí, pegar com a boca na botija!
 Otávio super apaixonado e reticente:
          -Sem provas, sem crimes! Faça o favor, de sair por aquela porta, ganhar o olho da rua, e nunca mais volte aqui! Nunca mais!
Ricardo antes de sair lava as mãos.
-Otávio!  Fiz o que grandes amigos devem fazer agora você faz o que quiser da sua vida. Sabe como o chamam por aí? Otário e não Otávio. Sai e ouve o estrondo da porta se fechando as suas costas. Meio dia Leninha volta.
          -Uai! E o jogo?
          -Dei uma buxuda nele e o idiota saiu morto de raiva.
Helena vai tomar banho. Otávio ouve a água banhar aquele corpo que ele até hoje achava que era só dele. A água corre fazendo cascatas em vários pontos. Ela é uma mulher cheia de encantos. Tenta não pensar, mas os pensamentos negativos chegam como gafanhotos, destruindo o que vê pela frente.

                                       Os Domingos depois

Uma semana depois, Otávio estava sentado numa cadeira balançando-se enquanto aparava as unhas. Helena na cozinha, lavando a louça de ontem. O radio tocando as dez melhores da semana. O locutor:
“Agora vamos tocar a mais pedida da semana:   A linda música que estourou nas paradas: “Infiel”. E claro como diz o título, a letra fala sobre infidelidade. E brinca com os telespectadores.
“ Gente! Traição ninguém merece!”  “Fui! Até domingo que vem com as dez mais! Tchau!” Deixa a música martelando. Infiel! Infiel!
Helena cantarolava. Otávio parou de cortar a unha do dedo mínimo. Ficou procurando naquela mulher, sua mulher há vinte e cinco anos, traços de uma traidora. Que estava até certo ponto tranqüila a seu ver, e procurava detalhes, algum rastro de infidelidade.  
Se questionava: “Uma mulher quando trai ficam rastros? Marcas? Sinais? Como deixam nos homens?”.
Certos sinais que Leninha, procurava, quando ele chegava das peladas, das quintas à noite, ela corria para o quarto e enquanto ele tomava banho ela vasculhava, pegava suas roupas, procurava  cheiros, marcas de batom, arranhões etc. e etc.
Ela chegou ao cúmulo, lembrou.  Um dia de madrugada acordou assustado, com ela medindo seu escroto, pesando com a mão e ele desconfiado perguntou e na época ela disse entre dentes:
          - Você sabia que se o homem transar na noite passada, o escroto fica mais murcho e mais leve? Que se a mulher for inteligente vai saber se o homem está lhe traindo?
 Ela falava assim na terceira pessoa.
E completava:
         -Os homens que tomem tento, que mulher não é boba!
Terminou de cortar a unha e a letra ficou martelando em céu cérebro. Aquilo não era letra de música decente. E soltou a imaginação.
Viu a mulher, nua sobre uma cama qualquer entregue ao prazer mundano. Fazendo as coisas que ele gostava de fazer juntos, com alguém que ainda não tinha rosto, mas tinha todo o resto, até dando dicas de como gostava, assim e assado, mais devagar agora acelera e tal e tal. Um beijo aqui, uma tapinha acolá. Ele foi ficando vermelho, uma opressão no peito e levantou-se.
          -Mas logo terá rosto! Ah! Isso vai!
Leninha o interpela:
          -O que foi?
          -Nada! Pensei alto!
          -Benhê! O Ricardo não vem?
         -Não!
Inventa uma história.
           -Discutimos na pelada de quinta! Uma entrada ríspida que ele me deu!
          -Nossa! Brigou com seu melhor amigo!
          -Amigo! Amigo! Um amigo da onça, isso sim!
          -Ele parecia ser tão cordial!
          -As aparências! As aparências! Vou buscar pão!
E saiu para a rua.

                                   A rua


Chegou à padaria, uma grande fila.  Viu rostos rindo dele nas janelas. Qualquer aceno o assustava. Muita gente. Lembrou-se que quarta era feriado e o pessoal veio todo da capital emendar a semana no litoral. Ele achava um saco à cidade nessa época. Era fila para todos os lados. Nos bancos, caixas eletrônicos, mercados, farmácias.  Segundo ele o povo não tinha coisa melhor para fazer.  Mesmo nas filas, parecem felizes, com vergalhões vermelhos do sol, tatuagens, roupas curtas, uns até de trajes de banhos. A cidade deixava de ser só dos pacatos moradores, e agora pertencia a turba que vinham de todos os lados. Postou-se no final da fila.
 Conversas gerais. A maioria relacionada ao calor ou a vida dos outros.  Pensou: até chegar sua vez, dava para tomar uma ali no bar da esquina, e avisou a pessoa de trás.  Um magricela de óculos, fundo de garrafa. Assentiu com a cabeça. Um tímido pensou. Detesto os tímidos. Uma raça de gente miúda que luta todos os dias para aparecer, e quando acontece, ficam vermelhos, calados e doidos para caírem num buraco.  Sofrem demais para se esconderem da vida.
A gelada não entrou bem. Veio uma azia até a boca do estômago. Lembrou de Helena. Um turbilhão de pensamentos.
Assim que a viu gostara do jeito dela, da sobriedade dela. É claro que também seus atributos. Seios fartos e bunda empinada. Quando tentou beijá-la pela primeira vez no cinema ela pôs a mão no peito dele e questionou:
          -É para casar? Só quando ele assentiu, é que ela beijou-o com paixão, enfiando a língua o mais profundo possível.
Um ano depois desse primeiro encontro ele tentou algo mais. Novamente veio o toco.
         -Sou virgem e só faço depois do casamento!
Nove meses depois se casaram.
A lua de mel passou-se numa chácara de um amigo. Como não era noite de lua ele na hora quis acender a luz. Ela correu para se vestir.
          -Acho uma tremenda falta de pudor a mulher fazer sexo assim às claras. E apagou a luz.
No outro dia os familiares queriam saber se sangrou. Uma cafonice. Sangrou. Será que não foi a fimose? Deixa disso Ricardo. Fui seu primeiro namorado. Ela era Bv. Boca virgem.
Até chegar aos dias atuais, foram dez anos de escuridão total. Agora mais livres das amarras que a sociedade cinge os nós, tinham experimentados quase tudo. Só o sexo anal ainda era tabu. Claro que ele tinha tentado, sem lograr êxito.
Assim balançou a cabeça sem acreditar na história que o amigo contara. Mas esses lances são como chicletes, colam na mente e só se dão por vencidas quando o escritor passa ao papel.
São fatos relevantes da vida que entalham a alma.
E se ela estiver fazendo com outro justamente o que não faz comigo?  E se e se?
 Nisso o quatro olhos levantou a mão. Ele rosna.
          -Tímido imbecil!
Pagou a cerveja. Na fila.
          -Quatro pães moreninhos!
A balconista lhe sorri.
          -Gosto de moreninhos também!
Ele a olha. Os seios meios fora do uniforme. A calcinha marcando por baixo, entrando, pequena, numa bunda enorme. Pega os pães.
          -Próximo! A balconista grita.
A fila anda.
Ele sai.

                               O amigo

Quando retornava para casa uma voz o chama.
          -Otávio! Está fugindo de mim? Era Ricardo. Com roupas e tênis para malhar. Estava suado.
          -Depois de tudo que me falou! Não era para menos.
          -Podemos conversar? Vamos sentar ali naquele bar. Ele reluta, a mulher está esperando, não tem tempo agora, fica para outra vez mas...
Sentaram-se.
          -Uma cerveja, por favor!
          -Já tomei uma ali!
         -Mais uma não vai fazer diferença!
 Tomaram várias. Saíram abraçados até no final da rua. Por fim ele disse ainda:
          -Ela é uma santa e vou provar!
 Otávio seguiu em frente e Ricardo subiu ao sobrado onde morava.
Chegou à varanda. Talvez pensasse assim. “Ali vai um bobo, um corno manso!” Ou “O marido é o último, a saber”. Ou “Tem gente que é cego”.
Mas a verdade é que não pensou nada disso. A mente estava vazia olhando o outro, o amigo, trocando passos tortos pela rua até sumir de vista.

                              Em casa

Quando ele colocou o pé dentro de casa escutou:
          -Mas isso são horas de chegar, para quem foi só comprar o pão? Você está louco?
          -Eu encontrei o Ricardo, e ficamos batendo papo até agora!
          -Quanta coisa para se falarem! Está doido?
          -Você que está maluca mulher! Ora essa! Vá se daná!
Helena nunca vira o marido assim. Arregalou os olhos.
          -É culpa da bebida! Eu sei! Quando bebe perde o juízo, a noção! Amanhã quando passar o pileque, conversaremos!
          -Isso! Amanhã colocaremos os pingos nos is! Nos is, viu?
Ela ainda falou antes de entrar no quarto:
          -É! É bom mesmo! Chega dessa vida dupla!
Ele ficou pasmo no meio da sala, ela bateu a porta.
As discussões eram sempre assim. Não ia a lugar algum.



                                            O caso

Na segunda feira Otávio fez o de costume. De manhã bem cedo, tomou um banho, escovou os dentes beijou Leninha no rosto e no que ela retribuiu com sofreguidão eles fizeram amor pela primeira vez depois que o amigo contara aquelas coisas. Era para aplacar a discussão do dia anterior.
Não se sabe se por sadismo ou cólera, talvez Freud explique, mas  ele finalmente conseguiu penetrá-la por trás. Ela falava que sentia dores e ele mais tesão. E esse jogo foi longe, levando-o a um gozo jamais sentido.
Assim deixa a mulher, toma um banho rápido e corre para o serviço. Até o trabalho foi assoviando. Era seu plano. Senta uns cinco segundos olha uns papéis e pede ao patrão para sair, coisa de vida ou morte diz. “Hoje pego com a boca na botija!”.
 Chega à esquina e espera.
Não muito. Leninha, sua Leninha, sai toda arrumada, olha para os lados e pega um taxi. Ele pega outro. Diz a frase célebre: “Segue aquele táxi!” Muitos filmes têm essa cena. Sendo assim não vou narrá-la. Passam direto pelo centro e toda área comercial. Nada de compras ele pensa. Depois entra no giratório passa o viaduto para o lado das praias. Em frente ao shopping. O estacionamento lotado. O maior palco do capitalismo. Tudo ali é feito para tomar seu mísero dinheiro. Passam direto. Entram num bairro conhecido como dos estudantes. São casas menores para os gastos apertados de quem está estudando forte para crescer na vida. O taxi para. Ela sai. Uma casinha isolada de frente a um precipício. As ondas, lá embaixo quebram-se na encosta. Ela desaparece pela porta e a fecha com cuidado.
Já vira essa cena noutro filme. Não se recorda agora. O traído consegue entrar na casa e escutar todo o diálogo. Não lembra as palavras. Deve ser a raiva. O ódio. No filme há uma tempestade. Relâmpagos clareiam o cômodo escuro. Trovões roncam no céu.
Ele entra. Fica pasmo.


                         No botequim

 Depois de virar o décimo copo Otávio continua:
          -Então meu amigo, eu me esgueirei pelo muro, pelos quintais, e vi. Vi com meus próprios olhos. Tinha levado aquele revólver vinte dois, e o apertava contra a mão, Ela me traia sim, descaradamente. Recebia carinho de outra pessoa, dizia que amava, que adorava, essas coisas bobas que dizemos. Aí não agüentando mais ouvir, joguei meu corpo sobre a porta.
          -E o que aconteceu?
          -O que eu não imaginava!
         -O quê, conta!
          -Calma! Vou contar!
Otávio vira mais um copo.
Continua:
-Leninha, minha Leninha, estava na cama do jeito que sempre sonhei!
Ricardo de boca aberta:
          -Como?! Como!
          -Ela estava nua, como veio ao mundo, abraçada e beijando-se loucamente uma  loira, uma estudante, vinda do interior, com as pernas entrelaçadas...
          -E ... O que você fez? Matou-as?
          - O que eu fiz? Ora bolas! Convidei-me à festa!
          -O que? Que??
          - Isso mesmo que você está demorando a entender! Agora moramos juntos! Precisa ver amigo, que pitéu! São carne e unha!  E eu que não sou bobo nada, formamos o trio mais feliz do mundo.
O amigo diz:
          -Mas e.... E a traição?
          -Que traição amigo? Foi a coisa mais legal que aconteceu comigo nesses trinta anos!
O amigo ficou rindo. Por fim pergunta:
          -E nosso dominó de domingo?
          -Sem falta! Mantemos a tradição, claro!
E brindaram sorrindo.
-Viva a La vida!