sábado, 20 de março de 2010

Pindorama



Irerê quando saiu da floresta para a praia, achou que era o único morador daquele mundo. Saiu assim mesmo pelado, foi banhar-se na manhã fria, sentindo os peixes beliscarem seu sexo, e ficou ali deitado, curtindo a imagem exuberante das matas, o azul do céu, o horizonte liso. Olhou para trás de si e viu a floresta densa, escondendo sua morada, toda sua família achava-se protegida, pela mãe terra, e sorriu de tanta felicidade.

Nesse momento, olhou estupefato, duas vezes para o horizonte agora enrugado. O que seria aquilo Tupã, deus misericordioso, pensou, levando às mãos a boca. Algo grande boiava, nas águas e se dirigiam em sua direção. Pensou nos filhos e mulher na oca, inocentes em seu descanso. Desconfiado notou, que do grande bicho, saíram dois filhotes que pareciam taturanas com as pernas nadando ao seu encontro.

Saiu da água de um pulo só. Sem roupas pegou uma folha de bananeira e cobriu as suas safadezas. Os seres estranhos, “branquelos”, pararam as margens e desceram com grandes artes na cabeça, olharam para ele e pensaram: “São simples andam nus e facilmente ludibriáveis.” Andaram na praia, olhou as matas, o céu... Viu que um deles tomava nota de tudo, escrevendo.

-Caminha! Caminha! Veja que aves tão lindas. Duas araras namoravam numa árvore. Irerê não perdia nada, observava que os brancos pisavam em utensílios de couro, não andavam descalços, e cobriam suas vergonhas completamente.
-Que calmaria. Depois vieram as correntes marítimas, por sorte descobrimos esse paraíso, mais riquezas para nosso rei.
-Muito bem, desfraldem a bandeira. Declaro por Deus e pelo rei sermos donos de toda essa ilha, e de tudo que nela exista.
-Cabral: dou ordem para baixarem as velas da “Pinta” e “Nina”?
-Claro! Claro! Vamos pernoitar aqui. Montem as barracas.
Homens cortavam paus aplainava o chão e Irerê os observava quietos, no canto. Três homens que pareciam serem chefes adiantaram em sua direção.
-Raios! Falou um deles, já vi esse filme antes.
-Parece que foi ontem, hehehehehe!
-Ofereçam presentes para ele. Coloquem ali para ver se ele se aproxima.
Irerê aprofundou-se na mata e em meia hora voltou com toda a tribo. Olhavam extasiados para os objetos, espelhos principalmente, e fitavam-se olhando seus espíritos.
-Uns ignorantes. Vejam como são vaidosos, olham-se sem parar.
-Você acha que nossa civilização tem muito que ensinar para eles?
-Sem dúvidas sem dúvidas!
-Senhores: Aqui estou pensando com meus botões, se pudéssemos levar para a corte, um espécime desses, que sucesso faria.
Oh! -Oh!-Oh!-Oh! –A nossa rainha ficaria louca!
-É pena, mas não viemos para isso? Queríamos descobrir o caminho para as Índias. Deixemos para os futuros colonizadores.

Era um belo dia de abril. As araras voavam em algazarras, como crianças a brincar, gaivotas paravam no vento e mergulhavam nas águas azuis trazendo pequenos peixes no bico, as ondas quebrava em estrondos, o vento ricocheteava nas árvores cantando uma estranha melodia. Irerê pensava: “Tupã finalmente ouviu minhas preces. Será minha salvação e de todo o meu povo. Com a amizade desse povo e todo o seu poder nos protegerá de nossos inimigos.”

Foram convidados para subirem nas caravelas. Eram construções grandiosas, jamais vista pelo seu povo, sonhava conseguir todo aquele poder, toda a fortuna que a vida dá.
Nessa noite e nas subseqüentes o Pajé e toda a tribo rezaram agradecendo á benção conseguida.
Na manhã do sétimo dia as caravelas zarparam levando ouro, a casca de uma árvore com tinta rubra e presentes, prometendo logo voltarem para ensinarem toda uma cultura, mostrarem um novo Deus, e a salvação eterna.
Irerê ficara só, na praia, olhando o horizonte, até que ficasse liso e sentiu um aperto no peito, uma grande solidão lhe abatera no meio da mata, sonhava sem saber quão perigoso são os sonhos.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Sonhar é preciso




Desde criança todos os dias ele fazia a mesma coisa. À noite, orava para Deus, pedindo proteção,e depois que a mulher dormia, procurava um lugar sem luz onde pudesse contemplar o firmamento e o brilho das estrelas. Nesse momento o coração ficava pequeno ante a grandeza das coisas. Em sua fé havia muita esperança e amor; ansiava por dias melhores. Sentia-se um solitário.

Fizera noventa anos, recebera os presentes, fora um dia tranqüilo, sem sobressalto, mas havia em seu olhar algo como uma névoa sombria. Os filhos todos foram morar longe, alguns até em outros países, “tocando” a vida como dizia. Com os nós dos dedos repuxou as rugas envoltas dos olhos para enxergar melhor. Quem algum dia chegará a conhecer o coração humano? Debruçado a janela, olhos no alto, o cabelo como cachos de algodão, sacudia ao vento.

Súbito ouviu sons as suas costas, e viu a mulher arrastando os chinelos no cimento, com a cara de assombro.
-Ah! Meu bem, não conseguiu dormir também? Ora, ora, esse calor.
- Não se preocupe. Vim tomar um pouco d água.
-Porque não me pediu?
-Não queria acordá-la.
A mulher cordão de ouro no pescoço, brincos dourados, vaidosa não obstante ao tempo. As rugas eram como um terreno recém arado. Nas mãos, o terço em constante oração.
O mar jogava-se todo sobre a areia. Entrava no outono, e ao longe se ouvia o tombar das ondas.
-Veja José, as três Maria, apontava com o indicador.
-Não as aponte com o dedo, nascem verrugas horrendas, dizia em criança. É, e além o cruzeiro do sul. Baixou os olhos por momento. -Alguém mandou notícias?
-Não! Sonhei com eles hoje. Todos reunidos em volta da mesa, como no tempo de crianças.

-Tempo que não volta mais...

Sentiu-se cansado, os dias passavam, olhava na caixa de correspondência por notícias que nunca vinham. Acordava, orava, calçava os chinelos, ia escovar os dentes e ouvia o eco dos passos de Maria em direção ao portão. Se houvesse uma carta, uma sequer, ouviria os passos apressados em sua direção, e na pequena sala protegidos da claridade, bebiam juntos as palavras tão escassas. A voz saia embargada. Sem cartas, não havia ecos, só o marulhar da água, sobre as flores do jardim. Aguava-as.

Uma estrela cadente iluminou o céu. “Venha, vamos façamos um pedido juntos, quem sabe não se realiza?”

Olhou para fora e o silêncio era mortal. Nem atrás das longínquas montanhas sibilava sequer o vento. Só o barulho das ondas como o ressoar do tempo. Cabrum... Cabrum... Cabrum...

“Se ela soubesse, que fiquei todos esses dias, aqui quase a noite inteira, ah! acharia estranho e talvez quisesse mandar-me ao médico para mais uma consulta, diacho sei que não preciso de médico”.

Outro dia outra noite.

-Ann! Estava longe em pensamento, desculpe. O que você disse?
-Que chegou carta de Osvaldo ontem. Ele está bem, para não se preocupar, que um dia ele volta para tomar conta de nós.

“Não soube responder como chegara ali. Mentalmente revia as imagens do roteiro que fizera. Passara por vielas escuras e más cheirosas, ouviu suspiros que outrora o faria gelar, mas que ali pelo contrário, enrubescera somente, deslumbrado de felicidade. Sentiu cheiros e sons da infância. Vida que se apresentava aos seus olhos jamais imaginados. Sentiu tanto fulgor e felicidade como quando lera seu primeiro livro. Em ambos, os momentos, um clarão iluminara-lhe sua mente, acordando-lhes os sentidos que até ali se encontravam embotados.

-Estava lembrando-se da minha juventude. Como toda a vida fui um tímido.
-Não! Achei você até bem ousado. Lembra que me roubou da casa dos meus pais. Foi a maior prova de amor.

“Olhares convergiam para ele, sorrisos, dentes, línguas, gengivas vermelhas, pernas e seios fartos. Mulheres em trajes mínimos andavam de um lado para outro. Ah! Paraíso! Parou sob um poste. Olhou as estrelas. Cálidas brilhavam na imensidão. Porque tanto solidão meu Deus! Porque o homem é tão só, perguntava a si mesmo. Penumbras sobre os olhos tristes.

Uma mulher desprendeu-se do grupo e atirou-se sobre ele. Chegou com intimidade e perguntou de chofre se queria divertir-se. O cheiro de perfume ordinário penetrou-lhe pelas narinas deixando-o tonto, talvez pela emoção da proximidade, das carnes fáceis. “Coitado, tão tímido o menino.”

-Toda sua família era contra nosso namoro.
-Quando te vi chegando à igreja me apaixonei.

“Das janelas saia um halo divino. Foi puxado pelas mãos. Seguiu-a sem fitá-la. “Para onde meu Deus, se nem sei quem sou?”O medo o atormentava. As pernas, peraltas, foram adiante, ouvindo no beco o eco dos seus passos, distante, como se fossem de um espectro. No ar tenebroso o cheiro de perfume e fumaça. hipnotizado.”

- Tive insônia todos esses dias.
-Por que se preocupa demais com as coisas.
- Vim aqui para tomar um ar, estava muito abafado.

“Bem perto, ouvia gemidos, gargalhadas pérfidas, e esse ambiente de perdição davam-lhe arrepios e uma grande liberdade. Entrou numa casa e foi levada a um quarto, idêntico ao da mãe. No canto um pequeno guarda roupa, uma cama larga e lençóis amarrotados. Atrás da porta, quase escondido, um pequeno oratório, a bíblia com a página marcada, no chão uma vasilha com água. Orai por nós, mãe. As mãos frias, tanta ingenuidade. Um corredor escuro, no fundo lamparinas com luz mortiça. Na cabeceira um grande crucifixo feito de madeira escura. Ouviu o canto da mãe, onde as lágrimas molharam. Santo anjo do senhor iniciou uma oração.”

-Em que pensa agora?
-Nada. Coisas sem importância. Ele vem quando?
-Não falou. Talvez no fim do ano, não sei. Sinto tanta saudade.

“Orou em silêncio, soletrando as palavras lentamente. A pele tomou a cor do pecado. Rubro. Era como uma serpente num corpo de anjo. Ela estava ali nua e eu só na minha solidão. Uma névoa pairava sobre aquele lugar soturno e mágico. O coração apertado as mãos suadas e frias. Ouvia frases como ecos. “Seja homem! Passamos todos, “por isso”.”

-Ah! Ele não liga pra gente. Nem me lembro do seu cheiro e de sua voz.
-Criamos os filhos para o mundo. Maria alisou com as mãos o vestido enrugado-Como não vi estas coisas! Poderia te fazer companhia, relembrar nosso passado, tão lindo...

-Não quis importunar, dormias como uma criança. Olhou os pés naquela noite abafada.
“-Sente aí que já volto! A mulher saiu cantarolando alguma coisa imperceptível. A nudez era fria. Volveu os olhos para o alto além da janela e nos morros para além das casas soavam tambores e cantavam-se canções. Estava imóvel, petrificado. Voltou. Ela olhou-o com olhar evidente. ”Deite-se filho! Dito isso o puxou de encontro a suas carnes tenras. Amoldamos a melhor posição e conforto.” Riu consigo mesmo.

-Que tens?
-Recordações... Recordações...
-Pelo menos estou nessas cenas?

“Beije-me querido! Os corpos se procuraram. Corações batiam. Abraçaram-se. Os tambores calaram, e no momento em que as carnes cederam, um sentimento de posse e volúpia os atingiu tão violentamente que parecera ouvirem sussurrarem palavras de amor, e em segundos ele sentiu uma força, uma liberdade abrindo-lhe as portas para a vida. E foi, como o lampejo dos poetas em plena criação.”

-Maria me dê à mão. E puxou-a para fora. Saíram de mãos dadas pela areia.
-isso é loucura! Estamos velhos, sorria indecorosa.
-Venha! Venha! Olhe o luar, que coisa mais linda! Não deixemos para amanhã...
-Tanto tempo não fazemos isso. O sereno vai nos fazer mal, ai meu Deus que loucura!
O vento batia forte na palma dos coqueiros.

-Olhe as ondas, veja, entre, a água está morna. Crianças. Jogaram água para cima, viam as marcas feitas pelos pés na areia. Marcas! Marcas! Em tudo e todos ficam marcas. Exaustos sentaram–se na areia. Um clarão já deixava avermelhadas as ondas, viam o sol nascer. Uma luz brilhava no horizonte deixando as águas da cor de prata. Ela deitou-se no seu ombro, ardente.

- Esses últimos dias estão nebulosos, fico todas as noites me perguntando... Olhando para o universo.
-Pobre homem, deitou-o em seu colo. –Tolo! Sozinho todos esses anos.
-Veja Maria aquele navio. Sim. Aquele quase sumindo no horizonte.
-O que tem?
- Vai ele, em sua rota na certeza que um dia chegará, em seu destino...
-Sim! S-sim! Com certeza!
-A mesma coisa aquela estrada ali, ta vendo? Depois da ponte sabemos que tem outra estrada e outra e mais outra entende.
-sim.
-Mas há muito tempo, depois que nossos filhos se foram, meu coração é só um buraco aqui no meio que não tem fundo de dor.
-Deus meu, como não notei antes.
-E... Coçou o olho para não chorar – Você sabe que a maior tristeza dos pais é o esquecimento dos filhos não sabe?
-Bobo! Bobo! Os nossos não nos esqueceu. Eles são ocupados, nada mais.
-E nesses dias, que fiquei sem dormir cheguei a uma conclusão: Se queres matar alguém, não precisa de violência, de nada a não ser deixá-los na solidão...
- Mas temos um ao outro.
-Leio esses romances cheios de promessas, e que no final nada acaba bem e a mocinha fica sabendo que fora enganada, que tudo, tudo mesmo, fora um engodo.
-isso não passa de ficção.
-Viu aquele barco? E se ele jamais encontrar terra! Navegar, navegar... A esperança vidrada nos olhos dos marinheiros. Dias após dia. Pergunto: Seriam mais infelizes conhecendo a verdade? Hem! E Se todo esse tempo eles tiverem enganados, séculos e séculos sem fim, e que a terra for somente uma miragem, no único propósito de manter- nos calados a respeito das grandes aflições da humanidade? Se tudo fora urdido pelos poderosos, para que fiquemos como cordeiros sem grandes revoluções, sem atrapalhá-los em seus tronos e suas riquezas. Hem!

-Homem, tenha fé.
-Foi tudo que eu fiz todo esse tempo. Acreditar! Acreditar! Acreditar! E se acaso, for só um grande sonho. O homem sempre foi propenso a sonhar...
-Não se martirize assim.
-Deus... Agora sei, não vivemos sem sonhos...
-Calma! Homem, esse frio vai-lhe fazer mal. Tão quente tua mão.
O olhar sombrio. Levantou a cabeça como que febril.
-Que banalidade, seguir um sonho...
-Vamos para casa, vou fazer um chá e tudo vai melhorar.
- Seria tudo um sonho louco que o homem inventou, com medo da solidão das guerras, do seu extermínio? -E... Se no final nada acontecer. O que será de nós? Se depois da ponte só encontrarmos o vazio? Pobre de mim, pobres de nós...
Se a verdade fosse outra, não a de nossos sonhos...

-Esta é a fé. Nada além nem aquém.
-Ah! Como sofro com essa incerteza. É como chorar nossos mortos sem corpo presente. Sempre o vazio. O cadáver pelo menos nos dá consolo, mesmo na tristeza. Abandonaríamos os sonhos, a ficção, não seríamos ludibriados pelos escritores, esses criadores do engodo. Existirá alento?
-Creio e só.
- Acho que perdi a fé em tudo, e isso esta me trazendo uma grande tristeza. Passou a mão na barba por fazer. E você francamente acredita?
-Quem sou eu para duvidar? Não penso nisso. Veja a natureza, que esplendor! Alguém muito poderoso a criou.

-E... Se for apenas um sonho... Um lindo sonho... Minha grande tristeza é que a partir daí veríamos as estrelas... somente como pontos reluzentes. Teríamos nossa única certeza inexorável. O fim... E dormiu exausto no colo da amada.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Estorvo


“Meu nome é Rita, mais conhecida por “Ritinha do sinal”. Vendo balas e chicletes para sobreviver. Sou filha de “ninguém”. Sou órfã de pai e mãe. Pareço forte mais por dentro sou frágil e necessito de carinho. Tem dias que me sinto tão só que pareço que não existo. Nem minha sombra costuma me acompanhar. Agora tenho dez anos mais ou menos, não tenho certeza, pois não tenho certidão de nascimento. Às vezes tenho fome que me dói o estômago, mas o que me dói mesmo é quando vejo famílias, cruzarem meu caminho, dentro de carro com os vidros fechados, que inveja me dar, dói-me aqui moço aponta o peito, e começa a chorar.

No dia que me senti assim, tudo doía dentro de mim. Minha pele queimada pelo sol ardia. Minhas pernas trêmulas me arrastavam sem vontade de ir a lugar nenhum. Os transeuntes me olhavam talvez com dó e seguiam seus caminhos. Ninguém pára para ajudar.

Chegava perto de uma lanchonete e logo o dono sinalizava para afastar-me. Não queria assustar os clientes, moço. Uma criança sorria ás vezes e eu devolvia o sorriso cariado. Um senhor de bigode me deu um pacote de biscoito-nunca tinha comido algo tão saboroso. Como foi bom. As dores passaram e eu já conseguia sorrir.
Saí dali e fui para o sinal. Tenho que ganhar meus trocados, moço, pois logo estarei com fome novamente. Muitos carros quando me vêem, sobem seus vidros, com medo de mim, como se eu pudesse feri-los. Eles é que estão me ferindo. Abaixo os olhos. Já estou acostumada. Agradeço aqueles que me compram as balas com gritos de alegria. Sei que a vida está feroz. Vi muita gente morrer neste sinal, mas não tive escolha ou a vida me escolheu, não sei.

Um dia encontrei meu anjo ou demônio. Usava óculos escuros, sapato de couro fino, depois vim saber que era pelica, ele mesmo que falou camisa de linho, cabelo bem cortado e uma bonita mala preta. Parou no sinal pedindo informação, e do interior do carro veio uma música baixinha, uma brisa fria e um cheiro gostoso de conforto. Ajudei com informação ele perguntou meu nome, me deu biscoito e prometeu um dia voltar, quando tivesse mais tempo.

Enquanto ele não voltava sofri muito, usei droga, passei fome, vi a vida passar com incrível rapidez. Envelhecemos mais rápido na rua sabe. Talvez por falta de afeto. Chorei e como. Depois vi que lágrimas não regam flores.
Mas o homem do carro preto voltou e, todo dia passava ali e me deixava comida. Conversava comigo, dizia que qualquer dia me levaria para conhecer a praia. É meu sonho, sabe moço. Já vi na televisão. É água que não acaba mais. Quando cheiro cola, tenho esses sonhos. O sonho de ver o mar, de ter uma família esses sonhos impossíveis. Tenho amigos que já morreram. Hoje as drogas são muito misturadas, faz muito mal, mal mesmo. Acordei quantas vezes , tremendo, suando frio, parecia que ia morrer.

Volto a falar do meu anjo. Foi num dia assim que o vi pela primeira vez. O carro preto sempre reluzente parou e me comprou balas. Nesse dia estava com febre, e quando ele abriu os vidros saiu um ventinho frio de dentro. O ar era perfumado. Que cheiro bom. Perguntou pelos meus pais, onde eu morava, se preocupou comigo. Deu-me biscoito e ficou me observando. Eu gostei até. O seu olhar parecia atravessar-me. Lembro que ouvi muitas buzinas. Os moralistas eu sei. Comi devagar me deliciando.
Às vezes sumia meses e nesse tempo era ruim doutor. Tinha dia que chovia e fazia um baita frio, e não conseguia vender nada. Tinha que cheirar para enganar a fome. Dormia em cima de papelão. Um belo dia ele reapareceu. Tinha bebido, vi pelos seus olhos. Estavam tristes por incrível que pareça moço, tinha tudo e tava triste. Foi nesse dia que ele me levou. Feliz, fiquei olhando as nuvens.

Deixei o vento entrar pela janela, soprar meus cabelos, aquilo me dava uma impressão de liberdade. As nuvens tinham formas variadas. Vi bonecas, ovelhas, casas, muitas casas. Queria ter uma com tudo dentro. Um Pai, uma mãe e muuuuitos irmãos. Sim, uma família grande. Cachorro também. Um jardim na frente. Cheio de rosas vermelhas, Eu amo rosa vermelha. Os postes passavam rápido.

Quando olho ele esta sorrindo para mim, com aqueles dentes branquinhos, pareciam fileiras de coelhinhos. Olhei envergonhada para o chão. Senti um calor estranho e a face esquentou, parecia desejo. Quem mora na rua sabe dessas coisas. Não há como fugir. O ar é convidativo. Toca uma música lenta, peço para colocar um funk. Ele acelera. Um poste dois postes, três postes... Levanto o vidro. A película negra escurece o interior. Sinto o poder. Quando estamos confortados, protegidos, o medo some. Vi meninas como eu no sinal. Abri o vidro para que me reconhecessem em vão. Queria mostrar-lhes que eu não era a mesma de outrora.

Vi ele ficar sério. Era um homem bonito, destes que aparece na televisão, usava relógio, celular, camisas de mangas compridas, e os braços peludos e o peito também. Vi tudo de relance, pois o que me importava era os postes passando rápido lá fora, as pernas pelas calçadas nos passeios de final de tarde, o movimento calmo do carro.
Foi aí que senti a sua mão fria passar sobre minhas pernas e sorri. Sabia que nada nesse mundo era de graça. O que eu dava a ele era o que ele não tinha: amor, atenção, em troca teria comida e o brilho que o dinheiro dar. Aquele passeio poderia sair caro. Cruzei as pernas fugindo das carícias.

Lembro a primeira vez que tentaram comigo. Foi um garoto lá da rua. Tive medo. Ele não veio com carinho, era só aquele pinto duro encostando-se a mim naquele momento o cheiro de sexo me aborreceu. Empurrei-o e saí em disparada. Depois ri muito dele. Ele ficava me rodeando como cachorro.

Esse ricaço agora era diferente. Tinha estilo. Bala na agulha. A primeira vez que fui ao motel com ele, ele teve que dar grana para o porteiro. Sei que existem essas coisas. Eu sou “de menor”. O dinheiro abre portas, abre pernas, abre cabeças, talvez abra até o céu se existir. Subimos pro quarto, um quarto maneiro, com espelhos no teto. Eles gostam de ver suas safadezas. Filmam, tiram fotos. Eu ficava só rindo.
É estranho o que eles nos pedem. Teve um que pediu para eu fazer xixi nele. Não vacilei, dei a maior cagada no puto, era minha vingança, com esses ladrões. Só saio com grã-finos, eles gosta de meninas novas, virgindade, essas coisas. Teve um há muito tempo que me ofereceu uma boa grana pela minha, mas na época era boba, tive medo essas coisas. Depois dei para um carinha comum que soube me pedir. Nesse tempo acreditava no amor.

Depois fui pegando as maldades. Sei que não há amor, só sexo. Teve um deputado, cheio de influência, sei por que ouvi falar no celular, e fiquei quietinha escutando o safado. Ele falava em suborno numa tal de empreiteira, essas coisas que não entendo bem. Esse tal me pediu para penetrá-lo com o dedo, fiquei com nojo, peguei um pau, dos maiores e enfiei sem dó no cu do puto. Ele gemia e eu enfiava mais. Faço isso para me vingar dessa bandidagem. São os maiores culpados de tudo isso que acontece por aí. As cidades enchem de favelas, as favelas têm gente como nós, e só queremos viver em paz, mas eles não deixam, tomam tudo de nós, nossas casas, nossos alimentos, nossas almas.

Acho que já perdi a minha quando nasci. Se houve um sopro de esperança passou longe de mim. Nasci órfã como já falei. Comi o que o diabo amassou. Teve um que queria me comer, falava o tempo todo quando lhe vendia bala no sinal. Um dia saí com ele. Ele queria cheirar a branquinha, peguei com um amigo do morro, misturei pimenta para ver o desgraçado gritar. Queimou toda sua narina. Quis me bater, falei que era “de menor” e o puto ficou com medo da polícia.

Sei que essa vida não me levará para lugar algum, mas quem disse que tenho rumo? O que eu quero é mostrar a cara da sociedade, tirar sua roupa, mostrá-la em pelo. Também não ligo felicidade só em novela, mesmo assim só no final quando o mal é descoberto, mas aqui na real não é assim como na ficção, as coisas demoram, tem vagabundo que vive a vida inteira sem castigo.

E se existe Deus ele só observa. Foi como vi na televisão, adultos estuprando crianças, pela tela minha emoção veio embotada, largada. Não fiz nada. Se eu visse ao vivo e a cores, tomava minhas resoluções, não deixaria barato para eles, jogava pedra na cara, furava o bicho na faca, pois esses não merecem perdão nem minha nem de ninguém a não ser Deus que dizem perdoa tudo, e aí não creio, como pode desculpar esses bárbaros, puros animais. Pensando bem compreendo Ele. Visto de longe, as coisas perdem sua importância além do mais deve ter muito problema para resolver.
De onde vim, vou te contar se tiver tempo de ouvir. Puxa a cadeira e escuta.
Imagine o sertão, o sol a pino, meio dia a sombra embaixo dos pés. O calor molha a camisa e a alma. Assim sempre. Calor, suor e as cigarras cantarolando ininterruptas, deixando nas pessoas uma moleza só. O jumento procura a sombra de algum juazeiro, contrastando com os galhos secos e esquálidos da caatinga. No céu o farfalhar das asas pretas dos urubus a procura de carniça.

Bem ali atrás do morro a casa de pau a pique, coberta de palha como manto de retalhos. Às paredes, deixam a mostra galhos entrelaçados, cheios de rugosidades, como chagas abertas. Há duas janelas, uma para a cozinha, onde sai uma lufada de fumaça escura, outra do único quarto, no parapeito manchas nodosas de corpos que se recostaram ali a ver o horizonte cinza e vazio. Foi aí que dizem que nasci.

O piso de terra batida, no interior, um fogão de lenha ardia, requentando a pouca comida, uma mistura de feijão e água, alimento para aquele dia. Na sala uma rede onde dormia uma criança, mosquitos acordavam-na de minuto em minuto o semblante triste. Todo o sofrimento do mundo. Na curta vida já deixaram grandes marcas. Dois olhos profundos em três anos apenas. São os mesmos que olham para vocês agora estupefatos. Mãos longas e finas jaziam sobre o ventre flácido essas mesmas que não se cansa de pedir. Novamente os mosquitos passeiam sobre a testa estreita. Acorda-a. Chora. Um choro pequeno, sem grandes aflições. Como um grunhido de um pequeno cão.

Meus pais já sabem, morreram na grande seca. Sobrevivi por milagre, talvez por eu ainda for obrigada a pagar todos os meus pecados. Ou vingar todas as minhas dores, eu não sei. Como e porque o matei foi assim de repente. Estávamos nos amando como diz, ele me penetrara por trás, e fungava que nem cachorro foi quando veio com essa idéia que me enlouqueceu. Disse no meu ouvido o depravado: “Me chama de pai, vai minha filha”. Fiquei zonza com aquilo. Ele tinha bebido, estava meio grogue e aí não conseguiu se desviar das estocadas que lhe dei com uma faca. Piquei todo como se mata um porco. Jamais pensei em ser sua filha. Filho da puta era o que ele era. Acho que somos como gado no pasto, soltos na vida.”