sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Só os violinos sofrem








                                   
                                Só os violinos sofrem



          Na noite em que completava dez anos de casados, um buquê de flores vermelhas enfeitava a mesa da sala, Luíza recebera um telefonema que dizia peremptoriamente: “Seu marido é um monstro. Eu o reconheci hoje na televisão”. Ainda dizia que seu Fran querido não passava de “um torturador frio e sórdido!” e desligou. 

           Luíza sentou-se para não cair. Abaixou o fogo das trempes e colocou as mãos na cabeça. Justo agora que Franklin recebera a medalha de honra ao mérito e estavam bem. Parecem coisas de invejosos, pensou.

          Foi até a mesa de centro e releu o cartão:

Parabéns para nós e para nosso casamento! Você é a esposa mais querida, fofa e amorosa que algum dia poderia imaginar ter na vida. Sou feliz ao seu lado e tenho certeza que sempre serei. Te amo, meu bem.
              Assinado: Franklin Moura Scarpa

          Luíza é uma mulher bela de trinta e três anos, arquiteta e dona de casa exemplar. Conheceu Franklin quando ele apareceu no escritório dela em busca de um projeto. Foi amor a primeira vista. Desses de novela das seis ou contos de fadas.

          Conheceram-se em janeiro e casaram no mês das noivas, escolha dela, numa capela simples de um povoado. Só amigos mais chegados escreveram no convite.

          Voltou à cozinha a tempo de evitar um acidente iminente.  A filha de três anos que deixara sozinha para atender ao telefone. Estava atarantada.

          Gritou:

          - Camila!  Já te falei mil vezes para não fazer isso! A filha assustou-se. Continuou:

          -Não pode fazer isso entendeu? Entendeu? Segurava-a pelos ombros.

Justo na hora que Franklin chegou da corrida  e a viu chacoalhando a filha daquele jeito.

          -O que aconteceu?

          -Essa maluca quase se queimou no fogão! Por um triz!

           Acontece que ele sabia das artimanhas, conquistava qualquer um, principalmente a filhinha dele. E a vendo triste dissera:

          -Monta aqui no papai vai!

          Camila de primeira não quis.

         -Vem senão o “vavalo” dá um coice!  Fingiu acertar a ponta do pé na filha. Uma loirinha encantadora de três anos.

         Ela abriu o sorriso e montou nele. Brincou um tempão. Enquanto a filha o cavalgava ele pensava:

           “Que diacho deu nessa mulher? Ela nunca tratou a filha dessa maneira!”. Depois que a filha se acalmou,  subiu ao quarto.

         Luíza foi atrás. Os passos ficaram no tapete vermelho. Fechou a porta. Ligou a televisão. Chamou a sua atenção.

          -Você ainda não viu?  Só se fala nisso. Veja você mesmo.         Luíza havia gravado.

          No vídeo uma mulher falava para um jornalista, o quanto sofrera na mão de um torturador. Contava em detalhes como fora torturada, dias a fio, e se encontrava arruinada física e psicologicamente pelo homem chamado “Chacal”. Tinha a foto do homem.  Um retrato falado. Seu querido Franklin, amor da sua vida, seu marido, o chacal.

          Nesse ponto Franklin desligou a TV. Não falou nada, pegou a toalha, entrou no banheiro, pediu que Luíza colocasse um vinho na mesa e preparasse algo saboroso para comerem. Do chuveiro dissera simplesmente:

         -Sou inocente. Vou provar.

          Luíza desceu para a cozinha e preparou algo. Um espaguete à Matriciana. Numa frigideira, em fogo médio, colocou um pouco de azeite e pancetta de porco cortada em cubos médios. Juntou tomate pelado. 

         O conhecia realmente? A resposta não veio assim de pronto, verdade sejam ditas, existem pessoas que não se deixam conhecer. Quando conheceu Franklin ele era um  sonhador como  todos jovem recém formado, gostava de romances policiais, a biblioteca estava cheia, colecionava chaveiros e moedas antigas, que as mantinha super limpas e organizadas, em gavetas numeradas, ele as mostrou com zelo para ela, e que era um “fofo” por se lembrar de todas as datas de aniversários segundo os amigos e datas importantes e que abria a porta do carro, que dava bom dia aos transeuntes, os vizinhos o adoravam, mas se surpreendeu com ela quando pegou uma colher de sopa de tranquilizante e pensou em colocar no espaguete.  Não, não o conhecia. Seu Franklin era uma incógnita. Ele um lago. Ela uma libélula. Que o tocava apenas na superfície, mas como toda libélula sabe, embaixo da água, existe monstros que podem devorá-la. E esse medo a mantinha distante e as noites que ele levantava chorando com pesadelos, ela fingiam dormir. São as águas profundas  que guardam os segredos em seu leito. Que segredos? Com isso em mente talvez foi o que fez jogar no lixo a colher com o tranquilizante. Seria talvez sua única salvação. Mesmo por que não podia fazer muito, estava na casa da praia um chalé construído sobre uma rocha sólida. Franklin comparou-a ao casamento deles. Como disse ele orgulhoso na época: longe de tudo e de todos, firme como uma rocha e principalmente o quintal abre-se para o mar.

         Realmente uma vastidão azul de solidão. Sim. Ela sentia-se só.
          No diário ela escrevera: “Esse mar tão lindo e de sol brilhante e eu tão triste, tão cinza!”. O resto folhas em branco. 
          O silêncio é próprio desses casais.

          Preparou a mesa para dois. Dois pratos dois talheres um vinho tinto suave e duas taças de cristal.
          Esperou na cabeceira da mesa talvez arrependida de não ter colocado um sonífero no vinho. Ele pegaria no sono e ela e a filha escaparia incólume.
          Mas por outro lado, precisava acreditar nele, ouvir ao menos a história dele, dá um voto de confiança, afinal todos são inocentes até se provar o contrário. Isso a confortou momentaneamente.

         Porém não restava dúvida que uma noite de amor não teria nenhum sentido. Não havia clima. Assim não colocou nada diferente, por exemplo, nos anos anteriores tinha comprado lingerie vermelha e cremes massageadores. Estavam todos na gaveta do criado mudo. Vestia um vestido preto mais apropriado para a hora.

          Franklin desceu de roupão. Colocou uma música ambiente para não acordar a filha que dormia lá em cima. Escolheu “Sinfonia da despedida” de Joseph Haydn.

          Encheu as taças de vinho e brindaram a saúde, à vida ao amor, enquanto  a sinfonia dava os primeiros estribilhos. Luíza  conhecia a história dessa música.
           Franklin sempre quando escutava, fazia questão de contá-la para as pessoas: Ele se orgulhava de conhecer a maioria das obras clássicas. Ele sempre contava com os olhos baixos, a voz embargada.

“Havia uma lei no império húngaro para que os músicos fossem ao palácio de Esterhaza no início do verão, sozinhos sem famílias para várias apresentações.
 Eles ficavam o verão inteiro sem vê-los e morriam de saudades dos seus. Inconformados um dia, pediram que Haydn intercedesse de alguma forma ao príncipe.
Então Haydn fez essa obra prima como protesto político. Se apresenta para príncipe e durante a obra os músicos foram saindo um a um e quase no final Haydn deixa o palco e ficam somente dois violinos quase inaudíveis.

          Assim o príncipe entendendo o recado diz:

Meu caro Haydn, entendi a mensagem! Os músicos têm saudades de casa... Muito bem! Amanhã fazemos as malas...” e liberou os músicos.
A música assim se eternizou pelos séculos.

Franklin bebeu toda a taça.

          Agora é tarde para arrependimento pensou Elisa. Franklin já havia tomado várias.

          Súbito veio em sua direção. Ela ficou em pé esperando-o. Ele a agarrou pelo queixo e a beijou com violência na boca e nos seios.

          Ouviam a volúpia dos violinos na música.

          Depois ele ajoelhou-se e colocou a cara no meio de suas coxas. 

          Mordeu, lambeu,beliscou e babou. 

Num impulso arrancou a calcinha dela.

          Luíza estava seca. Fria. Seca de sentimentos. A flor não acolhe, encolhe.

          Franklin como tivesse o arco de violino na mão; um exímio violinista que antes de tocar, passa o breu para produzir o atrito entre as cerdas e as cordas, gerando o som,  passou o lubrificante e a penetrou com força. 
          Os violinos estavam alucinantes. O breu fez o efeito desejado. Ele gozou. Gozou dentro da ferida. A vagina era uma ferida ardente. Ele a feriu por gosto.

          Depois ele separou-se rispidamente. 

          Ficou de costa para Luíza enquanto ela se encolheu na posição fetal e chorou. Se a pessoa chorou, sobre o cadáver as  lágrimas se cristalizam.Ficam na pele.

          Os instrumentos vão parando um por um. Uma bela sinfonia. 
         
          Como fora bom o sexo outrora, Luíza pensou. Agora só sentiu asco. Nojo de si mesma. E de Franklin.
          Ele vestiu-se e entornou na boca o resto do cálice.
          Subiu as escadas, lento, ouvindo os últimos acordes.
         Depois desceu transtornado. Descabelado.

         -Onde ela... O que houve?

          Luíza perguntou pela filha.

          Tudo terminado, ele talvez dissera para feri-la mais. A última sinfonia. Podemos dormir agora. 

A filha na hora se encontrava dormindo. Morreu assim. Inocente.

          Luíza fez menção de correr, de salvar-se a ela e a filha, mas sabia que era tarde. As marcas na janela contam a história. Mostram toda a luta que teve. Ela quis pular. Encontraram madeira e pele em suas unhas.
          Franklin veio em sua direção. Colocou as mãos em seu pescoço e apertou... Apertou. Ela desfaleceu. Aqui na poltrona ele sentou-se e apertou o gatilho. Mancha de pólvoras nas mãos.
        Finalmente quando a perícia chegou, ouviram só a voz dos violinos em uníssono. Bem triste.