segunda-feira, 14 de maio de 2018

A criação do jeito que veio





Foto do site http://dofundodacaneca.blogspot.com.br/


          




            Escrevo todos os dias chova ou faça sol.  Tendo assunto ou não. Aliás, hoje nessa cidade, está um céu de brigadeiro e um sol para cada um desses pobres viventes como eu, que perambulam por aí nesse mundão de Deus.
 
         A cidade tem suas particularidades. Algumas ficam bem evidentes, afinal são mais de trinta anos de minha vida por aqui. Uma delas são os carros que parecem loucos e os sons que vem de dentro deles quase estouram meus tímpanos. Mas é compreensível afinal todos fomos jovens um dia.  Para adoçar um pouco, tem a manga ubá que no tempo certo colorem os quintais de amarelos como grãos de ouro sobre o gramado. As ruas são verdadeiros labirintos estreitas e tortuosas como veias e artérias que levam a cidade jovem e promissora o crescimento. Fabrica-se tudo por aqui. É chamada de polo moveleiro da região porém antes disso, plantava-se fumo.  Já o verão é algo particular, pois o calor beira o fogo do inferno. Por isso nessa época toda a população sem exceção largam o diabo desse clima aqui e vão se refrescar no mar, levando a beleza mineira e seu falar franco para o litoral e que ao voltarem, parecem anjos morenos da cor do pecado  transformando a cidade num paraíso. 
Fora isso, ou além disso, a cidade é acolhedora e aprazível.

          Uma coisa deixo claro aqui, escrevo desde criança, mas ultimamente estou mais constante desde que fiz a terrível promessa ao pequeno Buda que fica sobre a mesa do escritório. Dizem que dá sorte e trás felicidade.  Espero.

             E o que escrevo leio em voz alta para ele e principalmente aos mortos. Sim. A maioria dos meus ouvintes são mortos. O que eu recebo de volta é o silêncio sepulcral. 
           Eles são meus ouvintes de toda hora. Leio também poemas. Um dia declamei "o corvo" de Poe. Li para minha amada. Ela deitada na pedra fria e eu lia. Nunca mais, nunca mais eu amarei daquela maneira. Ela morreu dormindo. Foi lindo. Eu a pintei da melhor maneira possível. 

             Os mortos são lindos. São intocáveis. Eles não têm culpa. Os pecados foram perdoados. Disso eu os inocento. Mas que é terrível se mostrar ao espelho diariamente, isso é, ainda mais nu. É.  Quando escrevo eu fico nu. Com eles me abro. Conto todas minha vicissitudes. Estão nas mesmas situações que eu. Já se entregaram a sorte.
            Será que os outros também são assim? Acho que não. Cada um tem seu mundo particular, embora tenha alguns salientes demais.

          Denomino-me como tal, mesmo não tendo nenhum livro publicado, nem pertencer a nenhuma academia. Meu negócio na realidade não tem nada a ver com literatura, mas é uma arte milenar. E é o que coloca o pão em minha mesa.
  
            Tenho uma pequena funerária e sou tanatopraxista.  Sou responsável , modéstia a parte, por deixar os defuntos com a melhor aparência possível para a última despedida entre os vivos. E juro, desejo uma boa morte para todos, mas o meu desejo é enterrar o mais tarde possível meus amigos.  Mas negócio é negócio, se acaso acontecer prestarei o melhor serviço.
Sou metódico. Agora viúvo, acordo às sete da manhã e durmo às sete da noite. Nesse intervalo alimento-me duas vezes ao dia, vou ao banheiro uma e faço sexo depois da janta com mulheres que me visitam no final da tarde.
Não são namoradas. São “ficantes”.  E quando descobrem o que eu faço dão um jeito de escapar o mais depressa possível. Não toleram saber que a mão que toca o morto toca o vivo.

           Trocando em miúdo, sou  enfeitador de defunto. Dou banho, faço todo o preparo, pinto o rosto, deixo-o corado e belo para o velório. Para evitar a língua do povo, e frases do tipo: "ele estava acabado, precisava vê, ou estava pálido como cera!”.
A família agradece. Mandam presente.  Afinal,dou um pouco de vida a morte.

          Academia eu não queria pertencer, juro, Deus me livre! Agora os fardões eu desejaria vestir um.  São impecáveis. O resto não me atrai.  São velhos rabugentos todos com o pé na cova. 

O fardão deveria virar mortalha para todos mortais.

           Aliás eu gostaria de ter enfeitado Machado de Assis, Fernando Pessoa, Jorge Amado e tantos outro. Mas eles são grandes para minha funerária. Minha urna é de fabricação simples, serve para o povo somente.

          Embora não tendo livros publicados sei que esse afazer é denominado assim. Agora mesmo o Buda piscou para mim meio bonachão, as duas covinhas na face ficaram mais profundas, com o zelo em assumir minha opinião. Eu sou um escritor! Eu sou um escritor!

          Ademais, preferiria ser chamado de contador de história. Contador de causos. De lindas histórias inventadas, saídos do grande manancial de sonhos. Mas nem isso eu escrevi ainda. Espero um dia quem sabe, a grande obra. Enquanto espero, vou enfeitando mortos.

          As histórias não vêm prontas. Temos que escrever assim mesmo, quem sabe toma alguma forma, as palavras vão saindo aos borbotões como uma mina que vem dos grotões das serras sem  nunca imaginar o que formarão. Se rios perenes ou não.

          Ou como a semente lançada a terra pelo agricultor que fica a espera da chuva para que ela germine e venha os frutos e a colheita para sua sobrevivência.
          Minha sobrevivência são as palavras. Sem elas sou uma folha em branco fria e fútil. O homem sem emoção é espectro.
          O texto é a palavra plantada no papel, arduamente aradas em eiras de frases e parágrafos que  germinando alimentará  a alma. Depende da semeadura.

          Assim escrevo pensando que um dia, numa boa invernada nasça a grande obra livre das ervas daninhas,  da boa semente jogada no seio da terra.

          -Rá rá rá!  O que foi isso?
          Depois dessa risada, eu peguei o rascunho escrito com caneta esferográfica azul  e comecei a amassar com calma e  força até virarem duas esferas  miúdas e fiz um lance espetacular  acertando de primeira o cesto de lixo.

Olho a agenda. O ano dois mil e dezoito em letra garrafais. Abro na página de segunda- feira . Tem uns rabiscos, umas datas e coraçõezinhos desenhados transpassado por uma flecha. Eu desconfio que um desses corações seja o de Amália. Ontem finalmente sai com ela. Não foi o que eu esperava mas deu pro gasto. Eu observei que quando ela gozou virou os olhinhos e suspirou como quem vai perder o fôlego. Eu não queria me envolver. Estava naquela ainda de guardar o luto, mas ela veio com aqueles decotes, aqueles olhares, que toda mulher sabe dá para seduzir. Mas depois avisei. Não vá se apaixonar! Não quero compromisso por horas! Ela sorriu encabulada. Ficou por isso. 

          -Puts! É a décima hoje! Jogar a bola direto na cesta virou meu esporte predileto.

           Hoje, segunda feira velha, eu olho o relógio da parede, há meses parado as doze e trinta, tenho que comprar pilha, relógio parada dá azar dizia minha mãe e de soslaio vejo Buda e suas bochechas rechonchudas e na tela do computador o cursor piscar ininterruptamente. O relógio do celular marca nove e trinta.
          Pareceu eu ter ouvido algo do tipo “hoje ele não consegue”. Duvidei. “Será que deuses tiram sarro de nossa cara?”.
          Aí lembrei uma cena de um filme que não lembro o nome agora, culpa das generalidades que temos hoje de ler tudo e pouco e sem muita profundidade.  Pois bem.

          Só sei que no filme havia um escritor experiente que dava dicas para um novato e este a certo momento na fita anda pelo meio do quarto puxa a cadeira e diz para o novato:

          -Ok! Agora sentemos e vamos escrever! E começou escrever loucamente sem intervalo. Enquanto o novato olhava para o teto imóvel.

          -Vamos! Vamos, escreva!  Gritou o escritor experiente.
          -Mas estou pensando o que escrever! Disse o novato.

          -O momento não é de pensar disse o escritor experiente – senão perdemos o fio da meada. Depois que escrevermos aí sim será a hora de pensarmos e cortarmos, cortarmos e cortarmos...

          Vi-me no novato. Porque a imagem de escritor que eu tinha no subconsciente era a mesma dele, isto é, de um cara que fumava charuto ou cachimbo, não importava, tinha que ter vício, tinha que ter barba, uns quarenta anos, solitário, que precisava somente da musa para escrever histórias maravilhosas. O seu trabalho era só importunado de hora em hora por uma leve batida na porta, alguém, trazendo-lhe uma xícara de café.

          Os móveis eram uma mesa e uma cadeira e de preferência em frente à janela tendo uma visão ambígua,  podia ser uma planície ou o mar. Uma adega de vinhos também para embriagarem-se depois do ofício.

          Em minha ilusão eu achava que todo escritor era prolixo e profícuo e as idéias vinham como os “médiuns”  fazem hoje, escrevem, sem roteiros, sem estruturas, sem nada as mensagem vem prontas do além.  Imaginava até um espírito o guiando na velocidade da luz.
          Agora sei por experiência própria que um escritor que se preze jamais pára. Tudo em volta é motivo de observação. Um quadro que explicaria bem o ofício do escritor seria uma pessoa numa janela observando o mundo lá fora em todas as perspectivas. Um cheiro, um som, o leve toque do vento no cabelo, uma lua, um sol, o nada, o tudo. Tudo vira anotação.
          Hoje sei que tudo é o contrário que eu os imaginava.  Nem aqueles de longa estrada e que têm vasta obra é assim. Sei agora que o suor, dias em claro e as olheiras fazem parte do processo.
          Eu tinha para comigo que quando o escritor entrava na fase "negra" isto é, o tempo que não consegue escrever nada, devia ser por três motivos essenciais:
         Essas três coisas empacava o escritor como uma mula no meio da ponte.
          O primeiro era o orgulho que não deixa a gente escrever coisas leves somente para se ler sem profundidade no meio das tardes.  Pensamos dessa forma: Não! Tem que ser “o texto”. E tem que causar espanto.
         O outro é o leitor. Esse é como o peixe raro difícil de ser fisgado. É manhoso.  Para fisgá-lo tem que ser bom observador. Entender a temperatura da água, achar o poço onde eles estão comendo, qual o alimento eles estão preferindo, a altura da boia, o tipo de engodo. Tem vez que o clima está ideal, o anzol do tamanho certo a boia na altura e nada. Esse dia eles estão preferindo as iscas pequenas e  outras vezes dependendo da lua não são fisgados senão por algo inusitado e sombrio, um pequeno  inseto que a primavera empurrou-o por ali com o vento. Andamos como louco atrás deles. Como disse Machado de Assis,  se tiver um leitor já me basta! Se ele não disse eu disse agora. Por isso nosso medo.

O terceiro são os críticos. Tirando o orgulho, esse é o pior.  Porque o principal crítico dos escritores somos nós mesmos. Os outros não tem tanta importância, são apenas traças que se alimentam das obras alheias. Não se importando se brochura ou capa dura, vão corroendo em pequenos furos e ai de quem não cair em suas graças, falam como o corvo:

-Prolixo! Enfadonho! Tedioso! Indigesto! Obscuro!

              Por isso tantos escritores só são reconhecidos depois de morto. Isso porque tivemos a sorte do nobre colega ter tido um amigo que contra sua vontade, publicou seu calhamaço. 
          -Tá pronto? Era Amália depois de muito tempo, enfiando a cara na brecha da porta. 
           -O texto?
Ela sorriu.
          -Que texto seu Sebastião! Ninguém quer saber de texto seu. Eu falo do defunto que mandaram há três horas e só falta meia hora para o velório seu Sebastião? Para de sonhar! A família ta ansiosa aqui no telefone perguntando se está pronto!

          -Ah! Ta! Já enfeitei. Ficou um primor. Pede para o Luiz levar.  São duas coroas e dois jarros de cravos.


          Depois de fazer a jogada épica em acertar de primeira as bolas de papel no lixo, resolvi descer para pagar algumas contas. E como tenho conta! Puxa vida!

É Motorista, secretária,Telefone, luz, gás, IPTU, IPVA, TV a cabo, netflix, aluguel, condomínio, INSS, açougue, mercado, água etc.  Isso somente na primeira semana do mês. -Se eu não voltar até meio dia fecha para mim, falei com Amália quando passei pela sala. Ela olhou-me dos pés a cabeça. 

          “Vou à lotérica mais perto e aproveito e faço uma fezinha”, pensei enquanto olhava para a traseira dela. Ela vestia uma calça super apertada.

          A rua estava cheia de jante andando para lá e para cá.. Dou um leve sorriso com os  meus pensamentos e acho que as pessoas também pois enquanto nos cruzamos na rua elas riem de volta. Nós seres humanos somos espelhos. Se sorrimos, sorriem. E viva à vida!

          Todo escritor pensa em viver de seu trabalho. Isso é fato.  Também ser reconhecido. Ser rico até, para não se preocupar com contas a vencer. É meu sonho também. Mas não ta fácil.

             Enquanto a grande obra não chega eu vou enfeitando mortos. E mortos não falta. tem tanta gente morrendo que hoje parcelamos-se até enterro.  Aproveitei o "boom" e lancei ano passado um plano em doze vezes. O maior sucesso. O defunto tem direito a urna ampla com encosto de cabeça e duas coroas. Já o plano melhor, tem direito a duas carpideiras das boas que eu encontrei aqui no interior.  Parecem lobos quando começam a chorar. Um espetáculo. Gritam, fazem o maior escarcéu. Os familiares podem ficar de longe tranquilos, sem culpas apreciando.
           A minha esperança é que um dia uma editora se interesse por algo meu e aí largo tudo, chega de enfeitar defunto, passarei a enfeitar textos, e assim como dizem, matarei três coelhos com uma cajadada só, - meu orgulho, os leitores e os críticos.  
              Eu corro contra o tempo. A esperança está  envelhecendo. Ela deve ser uma senhora de seus milhões de anos luz, pensei.

          A lotérica estava lotada.  Não desanimei. É bom que eu “fuço” o celular, pensei.
          Ando meio “cabreiro” com discussões. Hoje pago para não entrar numa. O momento atual está tão periclitante que se sairmos de vermelho tem algum “cornudo” querendo nos chifrar. E eu sou flamengo e gosto de vermelho. Veja bem.
          E convenhamos que tem certas discussões que não conseguimos sairmos fácil. Outras nem tanto. Exemplo: hoje mesmo no trânsito eu ia levando um jovem que morrera em um acidente, dezoito anos apenas, uma vida inteira que teria pela frente, ia pensando nisso, quando dobrei a esquina um cara gritou comigo, “meia roda”, “barbeiro”, mesmo o sinal estando aberto para mim, eu dei sinal para ele passar. Eu estava num momento bom, ouvindo minha música predileta estava zen e calei-o com educação. Passe, eu disse.
Ele ainda gritou:
          - Não viu o sinal vermelho? Tá morto?
Eu respondi sorrindo:
         -Eu não, o jovem sim, e dobrei a esquina. Ele ficou para trás ainda soltando todo tipo de impropérios. Depois é que entendi. Falei com o jovem atrás: Não chamei ele de morto.

          Outra arena de brigas é grupo de família no Zap Zap! Quando sinto alguma treta eu aprendi ficar calado em assunto periclitantes. Eu não respondo. Nem precisa olhar aqueles dois pauzinhos "dedo duro" que diz  que você visualizou. Não visualizo e nem respondo. Fácil.

         Agora o que aconteceu comigo hoje não teve jeito.

         Te conto. Senta aí e abre os ouvidos.

          Quando eu cheguei à lotérica vi uma rodinha com três caras no final da fila. Um era o Joaquim. Fiquei meio cabreiro e os cumprimentei com um “oi” seco.  Já conhecia o cara. Era um falastrão de marca maior. Sabe esses que diz que conhece a vida dos outro como ninguém?  Que “gaba” que é amigo de fulano e sicrano? Um puxa saco? Pois bem.  Era ele no final da fila.

         Pensei. “Bem feito, seu idiota hoje já não se precisa ficar em fila para pagar contas, usa o APP do banco ou põe tudo em débito automático. Agora aguenta!”.
         
 Todos conhecem como começa a conversa mas como termina...

           -Ta calor hoje hem!. Disse Joaquim. “Não responda, é uma isca seu idiota!”.   
Respondi:
          -É... mudança de tempo, logo vai chover aí fica assim, abafado.  “Repeti o que a garota do tempo falou pela manhã no jornal”.

          Ele chegou mais perto, confabulando: -Mais também o dono dessa lotérica é...Olhou para os lados para falar,  um “mão de vaca” e não liga os ventiladores. Disse ele Saindo da fila para ligá-los.

          Até gostei. “Quando faz calor o povo reclama, quando faz frio também”. Cheguei à conclusão que o povo andava infeliz.

          O cara depois que ligou os ventiladores parou de abanar os papéis.

          Prosseguiu: -O brasileiro paga muito imposto!
          -É.
          -Aí tem que sonegar, é ou não é?
          Não era da mesma opinião, mas eu falei, é...   Casmurro.
          Tem vezes que mesmo sem concordarmos, assentimos, só para a conversa parar por ali. Mas não deu certo. Ele continuou.
         -E nada é revertido em prol da coletividade, é ou não é?
          Concordei com um aceno, olhando os números que iria jogar. Primeiro coloquei meu aniversário, 27, depois 06, e fui concordando novamente deve ser porque sou canceriano. O canceriano finge ser calmo.

          -Esse ano pros negócios foi uma mer....cadoria!

          Ele completou com a palavra trocada deixando subentendido. É que tinha acabado de entrar duas mocinhas no recinto e ,menos mal, pensei, ele respeitou-as.

          Todos entenderam o que ele quis dizer inclusive às mocinhas que riram. Pelo menos isso. Joaquim saiu com essa:

          -Mas a sua empresa não tem crise! Tem morto adoidado todo dia, é ou não é?
Falei sério:
         -O número de sempre!

Ele chegou perto do meu ouvido.
        -E se ficar ruim é só você mandar matar alguns!  Rá! Rá! Rá! Rá!

Não ri.

          “Ele empresta dinheiro a juros, “agiota” como se diz. Vive da usura!”.

          -Eu mesmo se o cara não quitar comigo  vira presunto!  E assim até ajudo você, é ou não é?

          -Se tiver o nosso plano  “vida longa no além” prestarei o serviço sim! Digo sério. Faço minha propaganda. Ninguém sabe o dia de amanhã.

          “Agora vou marcar meu telefone, cpf,  quem sabe não acerto a sorte grande.

          Quando chega minha vez um velhinho se postou a nossa frente com uma pilha de papel.  Eu ia falar que também tinha prioridade pela idade e tal, eu também sou sexagenário, mas o senhor pareceu ter mais idade do que eu e além de tudo parecia com meu pai, o mesmo modo de caminhar, de parar em pé com as mãos cruzadas para trás e de se vestir com a camisa por dentro da calça, mangas comprida, chapéu de palha, olhar cansado, de quem já deu duro  e querendo ou não são essas lembranças que nos fazem ter empatia por outro.  Antipatia também. E esse Joaquim parecia por demais com um menino que eu tive inúmeras brigas na infância, o mesmo topete para falar gritando entre dentes.
          Fiquei na minha.
O Joaquim  não:

          -Conheço esse velhote! É aposentado, não faz nada o dia inteiro e logo na hora do almoço vêm aqui atrapalhar a vida de quem trabalha!Tem que acabar com isso, esses privilégios!

          Deu vontade de sair dali, mas convenhamos depois de meia hora em pé seria burrice. Aliás, essa frase é assunto para uma próxima crônica. Chamar as pessoas que não tem inteligência de burro. O asno é um animal super inteligente e trabalhador. É um absurdo comparar o burro com certas pessoas, isso sim.
          Anotei no verso da conta: Escrever sobre a inteligência dos Asnos. Guardei a caneta e falei pausadamente:
         -Nós temos que ter esses privilégios sim, e digo mais. Não eram necessárias nem essas placas não! Deveria isto sim, está na cabeça de todos: E frisei: Idosos, grávidas e crianças têm prioridades sim.
          -Eu não acho, Joaquim disse, secamente.
          Eu ia dizer azar o seu, mas a garota do caixa me chamou. Ele foi atrás. Não tive como fugir.
          Essas pessoas não te larga fácil, tem os braços longos, fala bem perto, te cospe na cara, te segura pelos cotovelos, impossível safar-se facilmente. E falam alto. Parecem que estão num comício de interior. Sabe aqueles coronéis de antigamente? O próprio.
          -Falam que a morte iguala todo mundo! Uma asneira só.
         -Eu mexo com isso ha trinta anos e acho que sim!

        -Uma pinoia, ele disse. Aqui ó esse é irmão desse! É só olhar o enterro dos ricaços. Vão de limusine e continuam morando em palacetes. Suas tumbas parecem palacetes!

          -Mas apodrecem do mesmo jeito! As larvas darão cabo em poucos dias!

          -Quer um bolão, a garota do caixa interrompeu o papo.
          -Não! Obrigado! Quero fugir!
          -Q-quê?
          -Ah! Desculpe! Saiu sem querer! Quero fugir desse “besta”, cochichei.
          -Por essas e outras que nosso país ta essa bandalheira. O Joaquim continuou falando.
          -É, eu disse, saindo da fila. Tentando dá fim a conversa.
         -Senhor! Seu bolão! A garota do caixa me chamou.
         -Mas eu não pedi bolão! Disse.
          -O roubo começa de cima! Ele continuou.
          -Pediu sim moço! Disse a caixa.
Aceitei. Vai que dá!
       -A violência ta demais! Ele continuou. –E a culpa é de quem? Ele falou aos brados: Do PT e toda essa raça de ladrões.

          Conta paga, sorte lançada eu cheguei mais para perto do Joaquim, ele vai ter que me ouvir, e comecei colocando meu ponto de vista, que o problema da insegurança não era exclusividade do Brasil que era mundial, mas que o cerne da questão era principalmente a grande diferença social  que há aqui e principalmente falta de investimento do estado na educação e dei exemplos de países que deram certo investindo no povo em geral e na educação.  Que a culpa não era só do PT, que todos os partidos tem as mãos sujas, que o PT  foi fundado em 1980, portanto tem 38 anos e a roubalheira no Brasil tem séculos e séculos e que toda a sociedade está implicada uns por atos outros por omissão, mas que teríamos que arregaçar as mangas e sair para a luta, uma luta, não de armas e balas mais de educação, mais livros e povo precisa escolher melhor seu governantes etc etc.
Vocês pensam que ele ficou me ouvindo?
-Respeite minha opinião! Ele gritou com o dedo em riste.
E começou me xingar de comunista, de  vermelho e de mais algumas coisa que não quero falar aqui.
 E foi falando um discurso de puro “decoreba”, com ódio, e gritando que bandido bom é bandido morto, essas coisas banais, e que temos que acabar com “esse tal dos direitos humanos”.

          -Seu nome senhor? A garota do caixa me interpelou?

          -Não vou dá nome coisíssima nenhuma, eu falei.

          -Mas senhor, é se por acaso der a sorte grande a gente lhe avisar, falou educadamente a moça do caixa.

          -Sebastião da Silva! Eu disse. Eu era mais conhecido por “Bastião”, mas não era legal eu falar meu nome íntimo.

          Desculpei-me com a moça. Mas quando ele falou aquilo o efeito foi igual, sabe àquela hora quando estamos quase no clímax e o telefone toca. Foi a mesma coisa. Perdi o tesão na hora. Aí recuei. Quando recuei Joaquim acrescentou:

          -Não me diga que o  “amigo” aqui é um daqueles comunistas Fi-la-da-puta, que defende bandido, o MST e o “escambau”? Tem que voltar os militares, aí essa cambada toda vai ver!
         -Meu caro, você esta querendo a volta da ditadura? É isso?  Disse, tirando a mão dele do meu ombro.

          -É isso mesmo! E isso de ditadura quem inventou foi essa esquerda assassina e medonha! O governo militar foi a melhor coisa. E não matou ninguém não! Isso tudo é invenção desses guerrilheiros vermelhos!

Aí já falávamos cara a cara.

          -Ditadura sim senhor! Num país democrático se eleva ao poder através das urnas, qualquer outro jeito é golpe! E a ditadura brasileira matou sim! Pessoas sumiram sim! Existiu sim!

          Contei até dez, contemporizei que era claro que bandido tem que está na cadeia. Isso é óbvio. Todo mundo quer. E que eu nunca fui comunista, mas admiro quem é, pela perseverança em acreditar em utopias e tal e blá –blá- blá. Até aí tudo bem. Agora acabar com os direitos humanos que foram conquistados a duras penas  para melhoria da sociedade, aí não.

          -E fique sabendo meu caro Joaquim, que opinião, não deve ser respeitada coisíssima nenhuma e sim discutida! Respeitada deve ser a pessoa, mas pelo que eu estou vendo você não merece respeito algum! Não respeita os outros!
             -Respeite minha opinião! Ele gritou novamente.
Pensei numa frase que Albert Einstein disse:
             "Duas coisas são infinitas:  O universo e a estupidez humana, e eu não tenho certeza sobre o universo".

          Saí dali contrafeito com aquele cidadão.
Mas chegando a casa acalmei. Ninguém é obrigado a ter a mesma opinião.
Lutar por direitos é concernente ao ser humano. Segundo o site: http://www.fundodireitoshumanos.org.br/direitos-humanos,  tais direitos foram adotados  pela ONU em 1948, constitui documento fundamental por instituir um patamar de direitos e deveres a serem respeitados por todos. Entretanto, apesar de todos os cidadãos serem titulares desses direitos, verifica-se que a simples condição humana, do ponto de vista biológico, não tem sido suficiente para garantir o acesso a tais direitos.
Direitos são conquistados e essa conquista tem percorrido um caminho cheio de avanços e retrocessos.
Ainda hoje, no Brasil, certas pessoas são vistas como “mais humanas” ou ”mais cidadãs” do que outras. Critérios como sexo, raça, orientação sexual e pobreza têm concorrido para a configuração de um contingente de cidadãos de segunda categoria.
Você já imaginou seu “cara pálida” que sua mãe,  irmã ou  namorada no passado não podiam votar? Pois para acontecer isso foram anos de luta.
Você já viu mulheres serem espancadas, estupradas e não ter nenhuma lei para ampará-las. Agora tem. Graças a Maria da Penha.
São tantos direitos conquistados  que ficaria aqui citando por horas.
Ainda segundo o site: A arquitetura dos direitos humanos foi profundamente modificada no século XX. Uma série de tratados e planos de ação das Nações Unidas ampliaram suas fronteiras, antes centradas nos direitos civis, políticos e sociais, passando a reconhecer novos sujeitos de direitos – mulheres, crianças, povos indígenas – e a incluir dimensões como o racismo, a saúde, os direitos reprodutivos, o meio ambiente, a violência doméstica.
          Na hora nem ouvia mais ele. Eu gritei “que acreditava que temos muito ainda para avançar.
          Perante esses fatos ele ficou xingando, e aí destilou ódio pelas classes mais desfavorecidas, falou que nas favelas só moravam bandidos, que era só soltar uma bomba ali que se acabava os problemas, que os direitos humanos só defendiam bandidos.
          E no final chegou ao cúmulo de fazer campanha para um candidato que prometia acabar com essas regalias, tipo direitos humanos, bolsa família, que bandido bom é bandido morto, e que por incrível que pareça  tem seguidores e diz que quem pensa o contrário tem que comer capim, que mulher tem que ganhar menos que o homem e que homossexual não é gente, não merece respeito.
          Depois contou, lembro bem dessa passagem.
          Ele rindo debochado, fingindo humanidade, disse com as palavras lá dele,que quando criança seu pai deu-lhe uma espingarda de chumbo grosso e que aprendera a atirar  muito bem e que dali por diante ia resolver seus causos no tiro.
          Uma comédia, pensei.  Acabar a violência com a violência.
          Lembro que calei por completo. Mas quem cala não consente e fiquei pensando como seria esse cidadão no dia- dia.  Pesquisei. Quase caí para trás com o perfil deles.
          Geralmente são de classe média alta, ou são empresários ou possui curso superior completo, vai a missa aos domingos, gosta de dá esmolas, sonega imposto, fala sempre em família, gosta de receber propinas, adora emprego público, dá “carteirada”, já foi a Disneylândia, é contra o aborto e a favor da pena de morte (São da premissa de que todos tem direito de nascer, mas se não der certo  matam, simples assim) e por último, defendem a volta do militar ao poder.
          Aí fiquei num beco sem saída. Como compreender tais pessoas? Aí lembrei do velho e atual  Saramago que escreveu:
“Os fascistas do futuro não vão ter aquele estereótipo do Hitler ou Mussolini. Não vão ter aquele jeito de militar durão. Vão ser homens falando tudo aquilo que a maioria quer ouvir. Sobre bondade, família, bons costumes, religião e ética. Nessa hora vai surgir o novo demônio, e tão pouco vão perceber a história se repetindo”.
           A ditadura existiu, sim, pessoas sumiram sim, houve mortes sim, até hoje, famílias tem esperanças, não desdenhe deles, quem busca ossada não é cachorro, são pais  querendo enterrar seus mortos e terminar suas vidas em paz, já que não tiveram justiça, respeite o ser humano, der-lhes direitos, não tire jamais.
          Porque como disse  Ray Bradbury “Não é preciso queimar livros para destruir uma cultura. Basta fazer com que as pessoas deixem de lê-los!”.
          Olhei para o Buda. O sorriso dele fazia duas covinhas generosas. Em cima da mesa um bilhete:

“ Senhor Sebastião, chegou outro paciente agora. Vou almoçar na casa de minha mãe. Ele tem o plano completo “vida longa no além”. O velório é para as cinco.O senhor terá que fazer o serviço”.  Volto logo! Obrigada!

Mania de esse povo colocar exclamação em tudo, pensei.

            Olhei o defunto. Tomei um susto. E que susto. Conversei com ele ainda agorinha mesmo na lotérica. 

           “Ah! Seu Joaquim...Seu Joaquim... Eu não disse que tudo é efêmero. Depois desse pensamento filosófico, coloquei mão na massa.
Olhei o relógio parada na parede. tenho que comprar pilha. Dá azar.

          Fiz primeiro um relatório dos objetos pessoais. Uma aliança fina, vinte e cinco centavos, uma nota de cinqüenta e três  de dois reais  totalizando cinqüenta e seis reais e vinte e cinco centavos em moeda corrente, carteira de motorista vencida, três fotos três por quatro, um preservativo sabor morango, duas notas promissórias vencidas, vários elásticos de prender dinheiro, uma caneta azul, um óculos de grau, um cachimbo, um pedaço de fumo de rolo e um isqueiro bic.

            A condição física era de hematomas generalizados, corte profundo na testa, fratura no crânio. Dois cateter, e vário curativos. “Tentaram a todo custo salvá-lo hem seu Joaquim”. Ficou bem avariado. Vou ter trabalho.
            Soube mais tarde por terceiro que foi atropelado na esquina do banco do Brasil.

            Depois desinfetei todo corpo e orifícios. Desinfetante forte. Barbeei por completo. Para que o olho não afunde, coloquei o cone de plástico atrás das pálpebras e colei as bordas, isso para  que ele por força dos gazes, não abra os olhos na hora do velório.  Seria um susto e tanto. Costurei seus dentes um a um com fio metálico, para manter a boca fechada.
Depois injetei as soluções mais ou menos sete litros e meio. Coloquei tubos plásticos para drenar  gases mal cheirosos e fluidos. Observei que o fígado estava ruim do álcool que ele ingeria. O pulmão tava bem acabado.  Por último vedei seu ânus e o vesti com um terno azul que a família escolhera. 

            Trabalho acabado, olhei minunciosamente, sem pelos, corado, parecia dormindo. Sereno.  Isso é arte.

           Deu fome. Liguei para o restaurante e pedi uma marmita de feijoada, e comi ali, junto dele. Ao fechar a tampa disse-lhe “Todos são iguais Joaquim, indiscutivelmente iguais.

           Peguei o texto, já não tinha tanta importância e joguei na gaveta. Anotei na capa: Para edições futuras.  

           Hoje vi publicado.  Foi minha secretária. Uma pequena vingança.  Do jeito que veio.
E assim foi.  Mais um texto. Promessa cumprida.
Ubá, 09 de junho 2018.