quinta-feira, 4 de março de 2010

A Praia


Acordei cedo. Era dia de ir à praia. Férias. Eu, minha mulher e dois filhos adolescentes. Peguei o fusca, pois o carro novo ficaria na garagem protegido da maresia. Bem cedo organizamos a tralha. Entramos no carro e o mais novo foi logo ligando o rádio. O trânsito estava intenso, parecia que todos tiveram a mesma idéia.

Chegamos à orla, coqueiros, areia branca um belo bar ensombrado foi logo o que procurei que tivesse umas cervejas geladas e um bom ambiente. Os garotos não deixaram. “Como assim, vamos ao bar “burburinho” onde ficam as gatinha” eles falaram em coro. A mulher concordou: “Se for para ir numa praia deserta, Osmar, melhor ficar em casa” Sentenciou. Olhei em volta. “Tá certo” e acelerei. Como estava de férias, em paz, relax toquei sem reclamar.

Era numa praia bem mais distante, tinha algo de peculiar: O mar era azul, a areia limpa, pelo menos àquela hora, as ondas quebravam mais perto e as mesas ficavam dispostas como se tivessem em nossos quintais. Aprovei.

A “flanelinha” nos acenou para uma vaga ali, bem próxima. Franzi a testa, não sou de acordo lotearem assim as áreas públicas, afinal é de todos. Mas aceitei, não tinha outro jeito, pois o estacionamento em frente estava cheio e custar-me-ia bem mais caro. Ele desejou-nos um bom dia, falou que olharia o “carango”, que eu ficasse tranqüilo e espetou um papelão sobre o pára-brisa, disse que era para proteger do sol. Torci o nariz, mas aceitei. Estava em paz comigo mesmo.

Abri o porta-malas e peguei a tralha: Uma caixa de isopor com a cerveja gelada, cadeiras, frescobol, sombrinhas, toalhas, chinelos, protetores, bronzeadores, sacos de lixo para guardar as sujeiras e livros, pois sem eles não vivo. Acampamos propriamente dito.

Aproveitamos uma mesa montada, com cadeiras e sombrinhas e quando já estávamos com o pé na areia, aproveitando as delícias da liberdade e do não fazer nada, os garotos olhando as nádegas rígidas, eu lendo o prólogo de um livro à mulher se desfazendo das roupas, veio um garçom com cara de poucos amigos: “Não podem ficar aí sem consumo mínimo, são ordens do patrão.”

Eu não estava para discussão, sabia que aquilo estava errado, que quem era dono do pedaço era a marinha brasileira essas coisas, mas estava de férias, não queria estragá-la com picuinhas do dia a dia, e disse-lhe que ficasse tranqüilo, pois com um sol de “lascar” desses, beberíamos até chumbo derretido.

Eva tava bem bonita com um biquíni colorido. Achei até meio estranho ela ficar ali daquele modo quase pelada, ás investigações dos olhos dos homens. Se olharem para a minha devorarei a deles, pensei vingativo. Peguei do livro e tentei ler. Tentei, pois no primeiro parágrafo, quando o autor dizia para o que veio, um vendedor gritou no meu ouvido, talvez pelos meus cabelos brancos, “ovo de codorna senhor, amendoim torrado, castanha e camarão assado.”

Repeli-o com um aceno. O que pensa esse otário? Sou melhor do que muitos jovens por aí. Não preciso desses “Viagras ditos naturais”. Ri intimamente. Voltei ao parágrafo: “As tatuagens cobriam-lhe o corpo. Foguetes, pessoas, fontes, caminhos, cidades, flores, planícies, montanhas, estrelas – enfim, um universo em miniatura.” Sonhava com os substantivos, quando Eva sussurrou, Amor, espalha no meu corpo o protetor. Ofereceu-me o corpo, despudorada. Espalhei o óleo, extasiado com tão saboroso parágrafo. O contato do líquido com a carne macia quis despertar sentimentos vadios, mas o lugar era impróprio para certas coisas e em volta muito olhares de “cachorro morto”, vidrados no que fazíamos.

Belo escritor, Ray Bradbury, Uma sombra passou por aqui. “Os detalhes e as cores eram tão vívidos que se podia até escutar vozes e sons abafados, meio indistintos, murmurando em meio àquele fantástico emaranhado das mais belas cenas do universo.” Passei o óleo devagar, palmo a palmo só parei quando a pele branca brilhou ao sol de fevereiro. Eva se estirou languida, molhou os lábios, puxou o biquíni para lhe deixar marcas mínimas, fechou os olhos abandonada em devaneios.

Eu por meu lado ficava correndo em volta da sombrinha, fugindo do sol. Mirei o mar. Azul. Na frente um cachorro terminava de fazer cocô na areia. Crianças choravam abandonados pelos pais. Resolvi me banhar, pois estava muito calor, quando me acertaram uma bolinha na testa. Dois brutamontes jogavam e acenaram pedindo desculpas. Como não desocupá-los, aquelas montanhas de músculos.

Chateado joguei o livro em um canto e fui dar um mergulho que ninguém é de ferro. Ah! Como é relaxante, afundei na onda azul. Quando submergia uma prancha quase rachou minha cabeça. Os jet-skis passavam rentes pareciam quererem acertar os banhistas. Saía dali apressado quando ouvi uma voz:

-Tio, faz uma piscina para mim?
Vi um garotinho, com os cabelos cheios de areia até os olhos, sentado a moda japonesa com as pernas cruzadas. Como negar tal pedido? Sorri pensando nos belos tempos de criança. Sentei-me e fui puxando a areia com ímpeto.

-Será que continuando assim, chegaremos ao Japão? Perguntou o garotinho com o dedo na boca. Duvido, é muito chão até lá. Pensei. Expliquei que o Japão realmente ficava do outro lado da terra, mas o jeito melhor de chegar lá seria voando.
-Mas não temos asas ora?
A piscina ficara pronta, agradeci, pois as perguntas eram cada vez mais contundentes. Ele sentou-se e disse:
-Agora só faltam os peixes.
Dali eu via Eva, contorcendo-se no sol em busca da cor do verão, e ficava girando como carne na churrasqueira.
-Agora constrói um castelo com princesa, rainha, rei, príncipe, tudo. Tudo e abria as mãos sorrindo. Peguei outra empreitada. Busquei meus castelos da infância, coloquei fossos com jacarés, escadarias que levavam a torre, monstros amarrados em correntes, pontes elevadiças, anões, gigantes, bruxas, fadas de varinha de condão.

-Uma grande onda derrubou a parede norte. Ele gritou eufórico:
-São os bárbaros querendo roubar a princesa e sorria de ponta a ponta. Manda os espadachins e os arqueiros como faço no meu videogame. Não perco uma. Depois vencemos o chefão, gritou eufórico.
-Amor! Amor! Ouvi entre meio a algazarra. Faz favor. No que o garoto sorrindo falou:

-Game over! Game over! A chefona venceu. Sorri escabreado, coloquei os óculos escuros e deixei o garoto sonhar. Aproximei-me devagar.
-Bonito!
-O que? Respondi inocente.
-A bunda...
-Que bunda? A sua? Todos tão olhando.
-Não se faça de bobo. Aquela sirigaita mãe do pivetinho. Não tirava os olhos dela, seu pilantra!
- Euuuu!
-Canalha! Quase não ficou perto de mim. Você me paga, pode deixar! Já sabia dessas coisas. Ficava dias sem falar comigo.
-Cretino!
-Não faz isso! Não tenho culpa nenhuma olha nossos filhos, o que eles vão pensar?
Os garotos nem estavam aí, pois as sereias passavam por todos os lados.
No final da tarde saímos assados, cansados e com fome. Comemos um prato rápido, uma macarronada, e fomos dormir. Quem disse que eu dormi. Na construção da piscina, queimei a lombar esquerda, já na do castelo, as costas estavam como tomate maduro. À noite sem sono, vou chegando devagar e minha Eva me empurra:
-Vai ficar com a sirigaita! Está de castigo para aprender! E virou-se para o lado. Peguei o livro. “E, se observada por alguns minutos, cada ilustração "contava" uma estória. Estava tudo ali, esperando apenas que alguém olhasse. Mas havia um lugar especial em suas costas que estava vazio. Não havia nenhuma ilustração tatuada lá. Quem olhasse para aquele ponto veria seu futuro e sua morte...” Segundos depois estava roncando.