quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

A criação

                                          A Criação







Barbearia do centro. Antro perfeito de homens de toda espécie de barbas e idéias.
Um homem com um jornal na mão chama a atenção dos presentes para um fato, escrito ao pé da página de um jornal de terceira categoria. Quando todos estão atentos ele lê a manchete:
“Marido leva mulher à delegacia, desconfiado de traição, e o elemento de prova é um velho papagaio”.

Todos caem as gargalhadas. Apenas um manteve-se quieto e com a navalha na cara do freguês. Depois falou pausadamente:

          -Esse caso é meu!
          -Não acredito, galhofaram todos, pois sabiam que o barbeiro Cici era exímio contador de histórias.
          -Mas conte! Estamos todos ao seu dispor. Ainda mais eu com essa navalha na cara, disse o homem sentado em sua cadeira.
Cici espalhou a espuma, amolou a navalha, e segurando o nariz do freguês foi raspando cuidadosamente, respeitando as verrugas e outros acidentes geográficos que havia naquela cara.

Todo final de ano, por uma semana, Maria Genoveva visitava a mãe.  Essas visitas, nada mais saudáveis para o casal, pois cada um ia buscar energia perdida, com os seus. Eram encontros memoráveis que ambos, eu e ela voltávamos com os olhos brilhando, e que nos dava força para a rotina diária. Esse ano como fiquei órfão resolvi acompanhá-la.  Pegamos a estrada.

Devo apresentar-me:  Meu nome é  Moacir, mais conhecido por Cici.  Fui corretor de imóveis há quarenta anos, sem dúvidas, aprendi a maquiar situações, para que tudo pegue um frescor, a fim de que seduza compradores e inquilinos. Faz parte.  Depois de aposentado montei essa barbearia. Continuo melhorando a cara de muitos brutamontes. Toda profissão tem disso. Os escritores são mestres. Pois bem.

Nosso relacionamento era estável. Uma discussão a cada nove meses, nada imperdoável. Há sempre as implicâncias, por exemplo. Quando íamos tirar fotos ela não pedia para dizer o famoso xis e sim para que eu murchasse a barriga. Não fazia o que ela pedia e mais, tornava-a saliente para importuná-la. Veja só, essa barriga que gastei bastante para tê-la.
Em fim fui visitar a sogra pela primeira vez.
  A casa era um velho bangalô no meio de uma rua comprida. A principal da cidade. Por ali escoava tudo para fora e em direção ao centro.
Eu também tinha criado as minhas quizilas: Dizia para ela, o short está curto, o decote avantajado, a voz está alta e estridente.
Acompanhei-a  subir com as malas, pela longa escadaria. Observo que mesmo com quarenta anos ela estava em forma. Um traseiro de respeito.
Quando atingimos o topo, suspirei, belo sobrado e enquanto largava a mala no assoalho, cheguei a pensar, “O que a sogra pensará a meu respeito?”.  
“Ora! Deve pensar o melhor possível!”.  Afinal eu mantenho a filha dela muito bem, bela, pele igual bunda de nenê e tão jovial. “Jovial até demais, pelo jeito que subiu a longa escadaria de um fôlego só”.
  Chego bufando no último degrau.
A sogra veio nos receber à porta, com um abraço acalorado e vi com esses olhos azuis que a terra há de comer, olhar-me de cima a baixo. Depois de desfazer-se dos abraços, sorriu de viés e pareceu falar algo do tipo “ Eis o pulha”, depois foi batendo o chinelinho no piso verde  de mármore,  abriu a janela para a entrada da brisa e ficou uns segundos olhando para fora.
  Talvez deduzindo o motivo de minha presença, já que Genoveva não teve tempo de avisá-la. Cheguei do trabalho e disse sem meias palavras:

- Vou com você esse ano!
Agora vendo essa cena, outra me veio à mente. Lembro-me que Genoveva fez uma cara de surpresa, abrindo a boca, gaguejou um pouco, mas logo os olhos brilharam, talvez de contentamento e me abraçou longamente.
Conto tudo isso em detalhes, as nuances de olhares, frases não ditas, para que a cena que vem daqui a pouco não os pegue desprevenidos como eu fui pego.

Acumula a espuma num papel.

A janela dava para uma varanda comprida, ramos de um flamboyant entrava, pequenos pássaros vinham cantar nos galhos  e sobre o parapeito  descansava  uma trepadeira chorona. “Pensei logo comigo,” delicioso lugar para se ler um bom livro.
 A sogra chamou-nos a varanda e quando deslizou a porta de correr, eu contagiado, pareceu-me ouvir ainda “Advinha quem está aqui?”. Ela falou com alguém?
Minha sogra chamava-se Helena. Sabe aquelas velhinhas que vemos como fadas?  Era ela. Melenas brancas, finas repartidos ao meio, com um laço de fita rosa completava o penteado. As maçãs do rosto rosadas.   A dentadura com dimensão alterada deixava-a com um sorriso perene. Não era o sorriso de Mona lisa, a Gioconda. Era algo indeterminado.   
No famoso quadro, o autor, usando a técnica de sfumato, pintou  uma mulher com uma expressão introspectiva e um pouco tímida. Uma incógnita.
Incógnita foi quando deparei-me com uma figura, um pássaro, precisamente um papagaio, que começou a gritar quando  Genoveva  aproximou-se.  Gritava a plenos pulmões:
           -Eu te amo Antonio! Eu te amo Antonio!
Enquanto dizia isso abaixava a cabeça para receber carinhos no cocorote.
Assim vi sobressaltado Genoveva coçá-lo enfiando os longos dedos ornado por uma aliança dourada, entre a grade, as unhas compridas e bem feitas, alisá-lo e dizê-lo baixinho:
          -Não fala isso seu chato!
O papagaio era verdadeiro. Vi pelas cores -  verde com cerca de 38 cm de comprimento.  Tinha penas azuis na testa, acima do bico e amarelo na cara e coroa.  A cor da íris era vermelho-laranja. Uma  fêmea.   Devia ser velha, pois o bico era negro. É uma das espécies mais inteligentes de ave do planeta. Sua expectativa de vida é de oitenta anos. Os papagaios-verdadeiros também costumam repetir o que ouvem de seus donos.
Essa última característica é que me sobressaltou.
Assim eu aproximei-me  de Genoveva  e perguntei-lhe baixinho:
         -Amor! Quem é Antônio?
Ela fez um esforço supremo para não ruborizar. E disse entre dentes:
          -Ah! Não! Já vai começar com seus ciúmes infantis? E saiu batendo os pés em direção ao quarto. Sai atrás. Joguei a mala num canto perto do corredor.
Cerquei-a junto ao guarda roupa.  Genoveva tinha aberto a porta e se olhava ao espelho.
Repeti:
          -Quem é An-tô-nio?
Ela enfiou as mãos pelos cabelos, jogou-os para trás e falou pausadamente:
          -Não sei e nem quero saber! Aliás, tenho raiva de quem sabe! Ora essa! Se enxergue homem! Só falta agora ficar com ciúmes de um nome que um animal fala! Só falta essa!
          -Uma ave e muito inteligente por sinal...
Continuei:
          - E essa ave, fique sabendo que repete tudo  que ouve diariamente.
         -E daí? O que é que eu tenho com isso? Ora vá vá...
Genoveva não completou a frase, deixando-a aberta a vários sentidos, por exemplo:
1-Vai tomar no c...
2- Vá pra a pqp
3-Vá pentear macaco!
4-Vá para a baixa da buchuda!
5-Vá para o diabo que o carregue!

Não a deixei terminar. Saltei em cima dela e a beijei ferozmente na boca, no pescoço, os seios, os mamilos. Ajudei-a a tirar a camiseta apressado. A calcinha não deu. Afastamos de lado à passagem. "Foi uma das melhores fodas que demos". Talvez pelo inusitado, com risco da sogra entrar de repente, e a ave gritando sem parar “eu te amo Antonio”. 
Ela me amava eu pensei.

Mas depois á tarde fiquei fulo da vida.

Lembrei de outros detalhes: Flagrei várias vezes Dona Genoveva  suspirando ao telefone. Sabe aquele rosto que fazemos quando estamos degustando algo delicioso? Era o que eu via. Quando eu apontava na porta ela desligava e sempre dizia:
          -Minha mãe, coitada, morta de saudade. Liga todos os dias.
Realmente era sempre o número da sogra. Várias vezes confirmei  na caixa postal. Coloquei a bina, depois que recebi ligações fora de hora e quando eu atendia o “cara” do outro lado da linha não falava.  Era um silêncio aterrador.
Vinha procrastinando há muito tempo uma ação. Pensei em colocar um detetive em sua cola. Segui-la dia e noite. Desisti depois que o detetive falou o preço exorbitante. Complementou ainda algo que me deixou com mil pulgas atrás da orelha: Ele disse sorrindo ao telefone, “cuidado!  quem procura acha!”.
E acha viu! Jogou o resto de espuma junto com o papel no lixo. Prepara outra espuma. Continua:
Um dia desses,  tirei uma semana de férias. Talvez pelo ócio ou pela leitura que dispus nesses dias, pois li toda a obra de Nelson Rodrigues, tinha chagado há um questionamento crível:
“Toda mulher trai?”. Perguntei olhando-me ao espelho:Até a Genô? Era como eu a chamava nos momentos íntimos. Ouvi até um dos personagens de Nelson falar jocosamente: “ A mulher que nunca traiu voa!” “E eu nunca  vi nesses cinqüenta anos uma mulher voando, poxa!”.
Todos riram. Menos o que estava tirando a barba. Era um risco.
De modo que tinha já quase certeza. A certeza aumentou quando ela sonhando uma noite falou um nome estranho, ou na véspera de viajar depilou-se toda, fez as sobrancelhas, unhas, lavou os cabelos, comprou roupas novas, ficou mais carinhosa comigo, de vez em quando eu a via olhando para mim com o olhar vazio ou nada, cantarolava canções, sorria feito criança, exalava um cheiro de rosa doce e fresca.
E a literatura diz que os primeiros sinais são imperceptíveis, como uma negação de  sexo, com a desculpa de dor de cabeça,  uma música cantada no rádio pela manhã, um abrir de janela e exclamar com manhã linda faz lá fora ou mesmo o tempo chuvoso, exprimir felicidade e etc e etc.
E agora surgiu esse nome. Pelo menos o personagem já tem nome.  Já é meio caminho andado quando são denominados. Antônio. Antônio. Eu repetia em minha febre. Pois um homem desconfiado fica febril, o vírus da desconfiança  tira o apetite, passa-se a falar sozinho,  a testa começa a coçar, o pânico de aparecer aquelas duas protuberâncias de ruminantes.
Assim parti para a ação, era necessário descobrir o perfil físico e psicológico, para desenvolver a história, de traição e dor, que se avizinhava.   Todos os detalhes se fundem  na cabeça. As histórias desde as mais simples às memoráveis tomam forma na cabeça. É só ir desenvolvendo calmamente, palavras por palavras, como uma escada, degrau por degrau. A estrutura já existe,  é só ir colocando os fatos, os personagens, na teia. A grande teia. Depois enredar para que fique conciso e  mais fácil a degustação. Mais salutar.  E a voz se faz. Eis o estilo.
Mas isso não se ganha da noite para o dia.
De modo que logo pela manhã calcei o tênis (queria perder a barriga e agradá-la, mais precisamente a mim mesmo) e com a desculpa de uma corrida fui pesquisar pela  vizinhança.
Fiquei sabendo de cinco. Cinco Antônio naquela cidadela.
Logo encontrei o primeiro. Tonhão. Era leiteiro.  Todo o dia, bem cedo deixava um litro fresco na porta de casa. Conversei com ele. Alguns dentes cariados.  Cheirava  a curral. Quando me despedi  com um aperto de mão senti os calos, parecia uma sola de sapato. Pensei:
Este está descartado.  
-Mas como?  Alguém falou. Tem mulher que gosta de homem rústico!
Não! Dona Genoveva nesse quesito era enjoada.  Gostava de pessoas perfumadas, um dia desses quando a perguntei  se por acaso fosse me trair,(brincadeira sádica que todo casal brinca, depois do sexo)com qual pessoa ela me trairia? Com um subserviente, ou com pessoas da alta?
E ela respondeu: “se um dia por acaso me traísse, e deixava bem claro que jamais aconteceria, seria com uma pessoa muito melhor do que eu, fina e de bom gosto”.
Assim cortei-o da lista.
O segundo estava bem ali, na praça. Vestia um terno maior do que o defunto. Suava muito. Marcas no peito, embaixo da gravata e nas axilas. Entregou-me um panfleto prometendo a salvação. Era um pastor da assembléia de Deus. Quando falava, prometia o paraíso, mas eu só prestava atenção num ponto: no canto da sua boca  juntava uma saliva branca que com a ponta da língua, de tempo em tempo puxava para dentro da boca.
-E esse, falou o freguês da barba mais espessa. -Tem mulher que gosta de transar orando!
Não era o caso da Dona Genoveva. Ela, isto sim, adorava transar xingando. Assim descartei-o dizendo-lhe que era católico apostólico e romano.
O terceiro era conhecido por “toinho”. Tinha viajado o mundo todo, pois no passado recente fizera parte do circo de Moscou. Era anão. Escutei-o uma meia hora. Ele contava causos de outros países, de outras nações, falava sete idiomas de modo que o português –brasileiro dele  saía tipo os turistas americanos. Trocando o artigo. Já com intimidade, falei-lhe: “Sabe que nunca vi enterro de anão!” e que ele olhou para mim com uns olhinhos pequenos e escuros e depois colocou a mão na barriga, caiu para trás no gramado  e riu muito, esticando as perninhas no ar. Descartei-o também. Minha mulher um dia dissera: Adoro homem bonito, alto e elegante.
O quarto era um padre. Frei Antonio de Calazans. Um italiano do norte. As faces rosadas, as mãos grandes. Alto como uma árvore frondosa. Quando o vi saindo da paróquia, ele tentava acender o cachimbo a todo custo contra o vento. Eu apressei-me e fiz com as mãos uma concha. Deu certo. Ele agradeceu sorrindo. Os dentes escurecidos pelo uso do vinho e cachimbo. Aliás, eram inseparáveis. Era daqueles à antiga, andava com a bata marrom, e aquela corda amarrando-a a cintura. Ele quis saber se eu pertencia à paróquia. Eu disse que não. Mas que casara com alguém dali, a Genoveva filha da velha Helena. Assim ele disse. Batizei-a aqui. Naquela pequena pia. Uma menina linda. A mãe também Dona Helena  é uma senhora extremamente educada e religiosa, ciente de seus deveres com Deus. A filha a mesma coisa. Por fim convidou-me à missa desse domingo e mandou benção a todos. Descartei-o também. Existe muito filhos de padre, mas não com Dona Genô pensei. Um dia ela me falou entre dentes, Que nunca teve pretensão de ser santa.
O quinto elemento era o que mais correspondia. Um primo distante. Soube que gostava de fazer poesia, bebia sentado na mesma mesa de um bar e enquanto bebia, compunha poesia nos guardanapos, que no final do dia ia limpando a boca com eles, e todos indiscriminadamente iam parar na lata de lixo. Não pelo valor. Achei até que ele tinha futuro. Rimava bem e tinha boa métrica.
No final da tarde acompanhei-o. Íamos falando da vida, do luar da cidade. Subíamos a rua, os paralelepípedos disformes o faziam gangorrear de um lado para o outro, como uma nau no oceano, que o fazia apoiar-se em meu ombro para não cair. A lua estava clara. Lua cheia.
 Ele ia declamando seus versos e eu o ouvindo atentamente, querendo descobrir algo, uma nuance, nas entrelinhas algo que comprometesse Genô, quando demos por si  estávamos eu e ele bem embaixo do flamboyant.  Assustamos ao ouvi, alto e em bom som a frase gritada a plenos pulmões:
          -Eu te Amo Antônio!  Era o papagaio na gaiola.
As flores caídas à tarde coloriam o chão de vermelho escuro.
Despedimos-nos ali.
Seria ele perdidamente apaixonado por Dona Genoveva? 
Segundo alguns, um amor platônico, pois ela nunca o teria lhe dado bola. Além do mais eu soube que  Dona Helena jamais fez gosto. Ele sim pode ter sido usado em diversos objetivos, como,  conhecer um rapaz novo, ir a uma festa acompanhando-a, essas mínimas coisas práticas que servem os primos. E só. Mas sabe-se que os homens ficam sempre por perto, das belas para quem sabe aparar as migalhas.
E também não se  sabe os motivos escusos das mulheres, os pretextos, enfim, só sei que alguém daquela casa, da varanda do bangalô, fazia questão de contemplar esse amor todos os dias quando via um Antônio passar por ali, em direção a casa, e gritar-lhe que o amava.  Isso era fato.
Sadismo? Mau caráter? Inocência? Ser sua musa?
Talvez para ser assunto em suas bebedeiras noturnas, ou mote nos tristes poemas?  
Não cheguei a nenhuma conclusão. Levei o caso à polícia. O delegado escreveu nos autos que não se podia acreditar, em testemunha tão descabida, um simples pássaro. E deu o caso por encerrado.
Não nos separamos. Gostávamos do nosso jeito de fazer amor.
Passei a acompanhá-la nessas visitas todos os anos. Na décima vez, soube que o poeta morreu.   Os versos calaram.
A rua ultimamente ficava completamente deserta. Ou a tarde passava um enterro em silencio, lentamente. O pobre pássaro exaurido, agora  falava mais baixa, em tom rancoroso. “Ele agora vem junto!” “Ele agora vem junto”!
Aos diabos essas falas.
Em todos esses anos tivemos mudanças drásticas. Dona Helena ocupa agora uma cadeira de rodas, a face magra, o olhar perdido. Não fala e não anda. Vegeta. Genoveva pelo seu lado perdeu o frescor. “O estúpido ainda gritava,” te amo Antonio!” E também “Antonio se foi, Antonio se foi”.
Que destino do poeta!  Lembrado por um pássaro estúpido que torra o meu saco.
 Domingo fui à missa.  Trinta anos que o vi pela primeira vez. Frei Antonio fez um belo sermão. Era comentário geral. Sobre a falta de amor entre as pessoas. Subi ao quarto. A árvore de natal piscava suas luzes.  Um corpo numa cadeira. Acenei para Dona Helena.
Chovia lá fora.  A água deixava a paisagem vista pela vidraça semelhante a um quadro expressionista. As cores borradas e vivas. Observei um pássaro verde e amarelo inerte no fundo da gaiola.
Peguei-o com cuidado, e ao choro de Genoveva enterrei-o no quintal. Numa cova rasa. Como os bandidos merecem.

Depois foi Genoveva. Ela foi definhando lentamente. Já não nos falávamos. Nada mais valia a pena. E numa bela manhã, faleceu.
Toda a cidade foi ao velório. Também os quatro Antonio restantes. Ignorei-os. Afinal nunca tive uma prova cabal.
Ultimamente, estou relendo Dom Casmurro. A história é de uma suspeita de traição. Estudo não o fato em si, mas a maneira como foi contado. É o que me interessa hoje. O momento da criação. A estrutura.
Montei essa barbearia faz cinco anos.
A última vez que a acompanhei, lembro mais ou menos dessa cena que vai deteriorando-se com o tempo, um silêncio aterrador na varanda, a gaiola vazia, Dona Helena na cadeira olhando o nada; Dona Genoveva, debruçada, talvez esperando o único amante, que a fizera: feliz, jovem e com a pele maravilhosa.
O velho barbeiro abaixa a cadeira, tira o lençol, dá o retoque final no rosto do estranho e pergunta:
                  -Qual o seu nome?
O homem paga com uma nota, faz uma reverência e diz maliciosamente:
                  - Antônio! A seu dispor!
Risada geral.
21 de Abril de 1964.