sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Assim e assado

 



                       



                     Assim e assado




      Já fazia um tempão que eu vinha matutando o assunto. Aliás, foi desde que me entendo por gente. A cidade que eu nasci foi propícia para isso.

Era uma cidadezinha pacata, interiorana, as duas praças viviam lotadas principalmente de crianças jogando o pião, a bola ou a barra bandeira e os maiores rodando o coreto atrás de namoradas.

Isso tudo claro, aos olhos das mães que ficavam sentadas nas calçadas e dos pais a maioria pitando o cigarro de palha.


Lembro quando dei meu primeiro trago. Estava saindo do cinema, tinha passada um filme com Gregóry peck um bang bang dos bons e aí deu vontade de fumar igual ele. Do outro lado da rua, bem em frente da sorveteria,meu pai me  olhava . Rápido eu joguei a binga no chão e pisei com o sapato de bico fino. Quando cheguei em casa ele falou uma vez só: 

-Se eu te pego  com aquela porcaria de novo na boca eu faço você engolir a brasa!

Foi a primeira e última vez.


Isso tudo era motivo de contentamento. Mas o sino da torre da igreja era meu pesadelo. Naquela hora morta que o sol estava  à pino vinha as doze badaladas. Os sinos vieram da Holanda com os dois padres. Tocava nas datas festivas e nas mortes.

Quando ouvíamos um toque solene vinha a pergunta: Por quem os sinos dobram?

Foi o filho de fulano que morreu!

Foi o pai de sicrano! Diziam.

O toque de bronze tocou toda a minha infância.

O que eu mais via era o cortejo  lento com os homens suados de chapéu na mão e as mulheres se abanando com o leque e na frente  o morto carregado para o cemitério municipal ao som das badaladas.

As andorinhas aproveitavam o voo e sobre o cortejo despejavam uma saraivada de fezes.


                       ****


No meu aniversário de seis anos ganhei um relógio. "O ponteiro menor marca as horas o grande os minutos!" Disse minha mãe colocando no meu pulso. Diacho! Ficou folgado! Tem que tirar um elo disse minha mãe!

Meu pai providenciou na hora e assim saí todo orgulhoso pela cidade, esperando o primeiro me perguntar as horas.

Foi com esse relógio que marquei quatro minutos cravados debaixo d’água. Era uma aposta. Quase morri sem fôlego.

Gostávamos de ficar  no limiar entre a vida e a morte.


                     *****

 

Mudamos para a capital.

          Aqui fiquei mais escravo do tempo. Um despertador tocava todo dia as cinco horas, para eu pegar dois ônibus para a faculdade. 

Formei. Continuei escravo do tempo. Tudo era agendado. De Segunda a domingo, de janeiro a dezembro.


                    ######

Agora resolvi cortar o tempo pela raiz. A primeira coisa que fiz foi jogar todos os relógios fora. O da sala foi o primeiro. Um carrilhão de madeira escura. Depois os de pulso.

Sem relógio mudei drasticamente. Agora sou acordado pelo canto do galo, levantava-me ao canto dos bentevis, tomo o  café quando os canários descem  para catarem as pedrinhas e durmo com as galinhas.

Sobre o clima aprendi a observar os sinais: Uma brisa gelada, um vento constante, umas  nuvens pesadas, uma chuva de molhar bobo, um frio de enrijecer o costado do cachorro, um calor sufocante, um  céu de brigadeiro. Tudo diz algo. A natureza comunica o que vai fazer.

No inverno a chuva, no verão o calor no outono o vento, na primavera as flores.

Ano após ano sem começo nem fim.

E se por acaso perguntarem a minha idade eu respondo: depende do curioso.

E vou vivendo. Mais leve.

Afinal o que  vale é o que nos resta para viver. 

Como Mário Quintana bem disse:

"Se me fosse dado um dia,outra oportunidade, eu nem olhava o relógio."

Estou assim e assado.