segunda-feira, 23 de outubro de 2017

O Anúncio

                                       

                                                   O anúncio








          Vende-se romance escrito no século passado. O mesmo abarrotado de fatos e mitos relevantes sobre a humanidade: paixões, intrigas, guerras e principalmente desamores.
Odiar é nossa especialidade. Li e gostei muito.

           O romance em si é sobre a vida de personagens que trombamos nas esquinas do dia a dia, das vizinhanças e que acaso passaria despercebidos se não fosse o olhar atento do poeta que anotou e cantou suas poesias e o fixou em folhas de pergaminho diariamente.

           Inédito e único. Pronto para ser publicado. A não ser que o felizardo comprador queira mudar personagens e título. O título está bem ao gosto do público atual.  “ A pobre vida rica do Sr. Y”.

 Saliento que em tempos normais eu mesmo a publicaria. Mas estamos passando tempos difíceis onde a direita escoiceia e a esquerda rumina. E como a ideia da obra é instigante e alem do seu tempo, temo ser perseguido pelos fins do meu dia. 
Então o comprador terá de ter duas virtudes essenciais: Coragem e poder.

Além disso, sou avesso a fama, por mim o jogaria no fundo de uma gaveta da cômoda velha que ocupa o lado esquerdo do meu quarto, bem perto da janela onde todo dia vejo o sol morrer.  Mas eu acho um descalabro deixar a arte assim presa, arte tem que ser livre como o vento, que às vezes sopra mansinho e ameno outras vezes vem como um furacão levantando o mofo e a poeira escondidos.

 Por isso estou pondo a venda essa relíquia citado em várias  obras como uma lenda. Os títulos foram diversos, por exemplo: A relíquia, O grande romance, O abutre e tantos outros  se pesquisarem com afinco as escritas do tempo de Hamurabi lll na  coleção de Alalaque ou nas literaturas indiana, chechena  e russa.

O único ser vivo que folheou essa escritura foi a senhora  X  que era esposa do senhor Y. E Se ela foi personagem, penso que sua vida foi um escândalo feliz.  
 Dizem que ao ler o primeiro parágrafo ela olhou fixamente para um canto, deu um gemido e em seguida lágrimas transbordaram em borbotões pela face pálida.  Depois leu dia após dia até o ponto final, quando por fim o escritor deu o trabalho por terminado. Isso levou justos oitenta e seis mil e quatrocentas  horas, que foram marcadas na lateral de cada página com um traço de sangue . Quando chegou ao fim, ela olhou pela janela, e viu que já entrava o outono o cheiro da primavera já se esvaíra e o vento sacudia  a copa das árvores  as folhas caindo murchas pelo chão. 

Quanto tempo se passou  ali, perguntou-se. Não houve resposta. Assim ficou mais dez  anos em transe pensando na morte da bezerra.   Nesse dia fazia um calor descomunal  ventava muito. Seus gemidos foram abafados pelo barulho das cigarras de outono. Desconfio que romance tocou-lhe  n´alma.
Penso até em suas digressões:

“Como pode alguém se perder assim na vida sem uma obra construída, cega as coisas que aconteceram ao redor, onde andava o grande amor, os filhos os netos,  as guerra? 
O  que fazer com essa dor, essa solidão que a devorava e que fazia olhar insistentemente por uma janela talvez a ver a luz surgindo todo dia no horizonte?”.

Não tenho certeza se os lamentos de X , foram esses,  se mesmo as lágrimas enfim, foram provocados pelo romance. Sei que o primeiro parágrafo o mestre usou a técnica que para mim soa perfeito, a métrica, o ritmo e cita algo vago como a eternidade, o amor, esse tipo de coisa que foge entre nossos dedos, mas, que é forte chamariz dos que virão, e sem ao menos avisar, preparar, escreve o último parágrafo, como um êxtase e  nos planta um soco no estômago  e quando a dor vem e ficamos tontos nos fala de coisas reais e indescritíveis como a morte,  para no parágrafo seguinte falar de sonhos, sonhos e sonhos.  Ah como sonhamos! A vida só vale pelos sonhos que tivemos. Os realizados ou não, não importa. O que importa  a estrada.

Se tirarmos os sonhos de nossas vidas o que restaria?

Somado isso ele nos leva pela mão com segurança e até certa volúpia e desdém nós, os pobres e comandados leitores. Somos uma corja de apaixonados. Ovelhas nas mãos de lobos. O uivo do poeta nos chama de longe, como um encanto. E caímos em suas garras. Gostamos até de sermos devorados, estrangulado, até a última gota de sangue.

Há de se imaginar também que tais lágrimas poderiam ser devido ao açoite do vento na vidraça ou a imagem das folhas caindo murchas ao chão ou o ciclos interminável da natureza, inverno, outono, primavera e verão, dia e noite, noite e dia,  ou pelos cabelos brancos em desalinhos do velho escritor sentado de costas  trabalhando arduamente em vão como as estrelas que não aparecem de dia,  abafadas pela luz do sol   e ele no limbo a espera de uma rima que não vinha ou pela crise existencial, esse lobo que uiva sem parar nas noites de lua cheia ou o trote do tempo que lá vai rápido como um potro negro.

Isso tudo são algumas imagens fúteis que ela nos traz com seu olhar condescendente. O importante está na alma. As imagens são construídas pela alma. Quem dá cor à cena é o sentimento. A felicidade é colorida e as imagens são grandes e próximas. A tristeza é cinza. Sentimos tão pequenos quando cinza.
Encontrei esse calhamaço de papel numa viagem ao Egito. Numa pirâmide ainda desconhecida pelo grande público. Trouxe escondido numa mochila correndo todos os riscos. O fiscal da alfândega olhou para mim e falou algo, eu fiquei em silêncio e parado como um soldado em posição de sentido. Pois sei que a fala nos corrompe e a escrita nos entrega.

Assim foi.

Fiquei um ano sem saber o que fazer com aquela obra original.
Escrevo algumas crônicas em jornais e tenho o meu blog na internet, mas juro por deus, jamais, digo jamais escreveria uma obra dessas. E as também hoje  pessoas preferem as redes sociais às convivências reais.  É fato. Tudo parece está dominado. Na rua não se cumprimentam. Andam como robôs ouvindo coisas nos fones de ouvidos. E o tempo cavalga em galope rápido e constante como um jovem potro negro.
E arte meus amigos, ela olha-se para dentro, e busca no seu interior sua própria mensagem. Se uma criança sorrir é por que é o que ela tem de expor. Se alguém chora é que foram tocadas em suas feriadas. Arte é espelho que reflete sua alma.
Assim, em virtude disso exposto, ofereço a quem der mais, as mil e uma laudas escritas por grande mestre,  vaticinando o futuro, que essa obra, sem sombra de dúvidas, será o maior  sucesso de público.

Ofereço total segredo para que o comprador possa mudar personagens, título e assinar da forma que quiser como sendo sua a obra e usufruir os louros da fama.
Tenho a absoluta certeza que esses personagens  ganharão o mundo. E eles que em suas vidas normais não foram citados em colunas sociais( notas que só alcança o ego das bestas) em conhecendo-se suas desventuras, amores, paixões e morte, serão  de grande relevância na história.

E o dono do título com certeza  o levará ao tão cobiçado premio Nobel de literatura, ficando ainda com a parte que a maioria deseja(  improfícuo em minha opinião ), terá direito ao  fardão na academia, o chá das tardes com os iguais, notas em jornais, mulheres fáceis e dinheiro.

Podem até acharem que é utopia vendê-la dessa forma, uma resma escrita à mão.  Escrito muitas vezes á luz de velas como já disse o escritor, “ouvindo estrondos de bombas caindo ao redor quando participei da primeira guerra mundial como soldado raso,  guerras que eu não arranjei, mas combati com afinco e escrevi algumas linhas dessas com o coração disparado  à espera da  hora correta de subir as trincheiras e estripar o inimigo. Não é glória estripar alguém como  a um porco. Mas fazemos assim mesmo,com sangue frio.

Outras vezes escrevi no lombo de um camelo em caravanas pelo deserto do Saara. Participei até de uma viajem com  “El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha” e ouvi de sua boca, “Senhor, uma andorinha só não faz verão.” Por um mês andei assim o seguindo em suas batalhas. Por fim quando cansei de sonhar ele me falou com sua figura triste: “Cada um é como Deus o fez e ainda pior muitas vezes”.

A partir desse ponto seguimos calados uns duzentos quilômetros. Foi quando ele parou no cimo de um monte e soltou essa: “Esse meu mestre, por mil sinais, foi visto como um lunático, e também eu não fiquei para trás, pois sou mais pateta que ele, já que o sigo e o sirvo, se é verdadeiro o refrão que diz: ‘diga-me com quem anda e te direi quem és’ e o outro de ‘não com quem nasce, mas com quem passa’.” 

Eu já não pensava direito, via imagens nas planícies. Então para não enlouquecer decidi seguir sozinho. Ele ainda disse:  “A liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que os homens receberam dos céus. Com ela não podem igualar-se os tesouros que a terra encerra nem que o mar cobre; pela liberdade, assim como pela honra, se pode e deve aventurar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pôde vir aos homens.”  Sancho ouvia tudo calado.

A imagem deles que ficou comigo foi de dois pobres diabos ricos em sonhos. Nunca mais nos cruzamos novamente.
 Outras vezes escrevi na cabine de um navio, singrando mares com um capitão louco para matar uma baleia. Quase morremos sendo comido por canibais.
O Conto de Genji  é considerado o primeiro romance literário do mundo, de autoria atribuída a fidalga Murasaki Shikibu, escrito no começo do século XI, durante o Período Heian da história do Japão. Mas com essa descoberta tudo cairá por terra. E isso, só isso trará muitas confusões, abalará estruturas, egos e etc.

Faço tais citações para saberem o quanto é grandiosa a obra.

Para que vocês fiquem certo que esse negócio é certo pois nessas  páginas encontrarão sangue, suor e  lágrimas.  São muitas noite solitárias.   E o comprador terá livre arbítrio de colocar os capítulos na maneira que lhe aprouver. Assim ficará livre do ônus da obra. Principalmente das críticas. Terá o nome cantado em canções e operetas. Até Camões, não sei como como, escreveu certas coisas que confrontados hoje, parecerá plágio.
Fernando pessoa, veja bem, na criação de suas personalidades teve com certeza influências.

E pop fim o comprador fundamentalmente não terá obrigação nenhuma com a arte, pois será mera mercadoria, - um produto comercial, -um escambo e assim como disse o escritor no prefácio, “Cedo-vos o alimento da alma, cedes-me o alimento do corpo.

E ficamos quites.

Está aberto o leilão.


terça-feira, 12 de setembro de 2017

Bruxas, fadas e outros demônios

                                   Bruxas, fadas e outros demônios



         


          “Lendo conto de Rubem Alves de título: Bruxas e vassouras, eu perdi o pudor de contar aqui também a minha descoberta sobre elas, as mulheres, bruxas e fadas de minha vida, só agora, após seis décadas, largando o medo de uma praga, um feitiço ou coisa qualquer”.  
           Esse era o início de uma crônica do escritor  Odlarniram Etiel Atsitab, Afegão da província de Sameroc,  ainda pouco lido por aqui,  prolixo,  escreve nas folgas, entre uma explosão  e outra pois seu principal afazer é a montagens de artefatos explosivos para dilacerar seres humanos.
          Na crônica ele fala de seus medos e segundo entrevista dada a um jornal de segunda categoria, disse o repórter na época, que nunca vira alguém tão engajado em seus planos de destruir o mundo.
         Ele conta do medo horrendo que tinha das bruxas na infância, e sua escrita tem um peso enorme quando fala das coisas mais banais, devido talvez ao desapego pela vida, afinal, qualquer hora pode receber uma missão de se infiltrar entre os inimigos e voar junto com a maior quantidade de pessoas em pedaços.

         Sobre as bruxas o caso ocorreu nos idos de mil novecentos e sessenta e quatro mais ou menos segundo texto, ele tinha oito para nove anos, tinha medo de tudo e segunda as próprias palavras  “as bruxas andavam soltas”.
         Além disso, a internet andava somente pelas universidades, a tecnologia capengava e o Google não havia sido criado ainda, fato esse de sua total ignorância. “Eu era tão “cru” disse ele, que achava que o sol girava em torno da terra, que o paraíso estava no céu e o inferno  no fundo da terra, que a mulher era um ser perigosíssimo, que as vacinas vinham para dizimar as crianças,e que vimos trazidos pelas cegonhas. Veja só”.
        Diz também que transcreveu, sem edição alguma, a escritura feita do próprio punho naquela época. Segue dizendo que todos irão notar que é texto sem influência de qualquer natureza, pois até ali só havia lido gibis, “portanto hão de desculpar não pertencer nenhuma categoria ou escola, é texto de iniciação”.  
Feito todos os rapapés vamos aos fatos.


         “Sameroc, província do Afeganistão, 26 de agosto, de 1964. Manhã de segunda feira:

          A casa estava silenciosa e lúgubre. Gosto da palavra lúgubre. Tirei de uma revista de terror.  O desenho mostrava um cemitério esparramado num pequeno morro cheio de cruzinhas de madeira. Todas as vezes que eu sinto solidão lembro-me dessa gravura.  
           Eu acabava de tomar o leite e olhava o resto de Nescau escorrer no fundo do copo esmaltado quando mulheres da vizinhança invadiram a casa pela porta dos fundos, levando toalhas, bacias e colheres enormes, encheram-nas de água e ficaram esperando a fervura. Depois entraram no quarto grande, perto do corredor que ultimamente andava sempre com a porta encostada. Eu sentia que minha mãe escondia algo, mas não sabia o que era.  Vi muitas vezes minha mãe ajoelhada pedindo proteção.
          A casa era uma construção antiga, toda coberta por telhas nuas, o que deixavam passar a luz do sol e as estrelas pelas goteiras abertas.
          Todo esse movimento aguçou a minha curiosidade e assim fingia não ter terminado ainda de beber todo o leite, quando uma delas pegou do copo, lavou-o antes de eu ter degustado o chocolate do fundo e ainda pediu encarecidamente para que eu fosse brincar segundo as palavras dela: “ com os amiguinhos no terreiro”.  Só se fosse os imaginários, pensei, pois eu era de poucos amigos. Já os imaginários pululavam em toda esquina.
           Tentei escapar correndo pelo corredor, mas ela era forte e quase me empurrou para fora, dizendo que ali não era lugar para criança. Tentei usar meus super poderes, mas nessas horas eu ficava lerdo como uma lesma. Aí o que me restou foi pegar minhas bolas de gude e ficar embaixo da mangueira, até tudo terminar, tentando a todo custo acertar os buracos, mas minhas mãos estavam trêmulas.  
          O silencio era quebrado pelo tilintar de panelas e portas rangendo. Portas rangendo e panelas batendo, a noite, o medo é maior.
          Olhei pelas frestas da janela, mas só vi uma nesga de sol que ia até a parede carcomida e fiquei contemplando a dança do pó no facho de luz.
          Voltei aos buracos e acertei da primeira jogada. Foi quando ouvi gritos vindos do quarto e fiquei apavorado. Corri para a janela e subi no muro por cima dos cacos de vidro, onde o gato andava tranqüilo sem se cortar e o que vi deixou-me em pânico.
          A mulher que me empurrou para o terreiro pedia agora quase gritando para que minha mãe fizesse força, como defecasse e ela fez, gemendo alto, sua fronte suava em bicas e segundos depois que para mim demorou uma eternidade, deu um grito medonho. Foi aí que a mulher puxou de uma vez só de entre as suas pernas abertas, um ser enrugado, sujo e feio. 
          Nesse instante eu saltei da janela correndo e só parei ante a fossa cavada no chão com ânsia de vômito. Tinha cortado o dedo e não senti, tenho uma cicatriz que carrego comigo. Dali, escutei comovido o choro de uma criança. 
Só entrei no quarto, chamado pela minha mãe uma eternidade depois. Ela estava pálida, em volta de lençóis brancos, apoiada em dois travesseiros e um leve sorriso no rosto. Uma das mulheres tinha feito um curativo em meu dedo que fiz de tudo para ficar maior e causar impacto. Ninguém notou.
O que me restou foi aproximar-me  no canto da cama desconfiado.
                A bruxa sorria descaradamente e pegou um embrulho pequeno e trouxe bem perto de mim.

          -Sua irmãzinha! Disse comovida.

         Não sei o que me aconteceu. Só sei que algo subiu pelo peito, fechou minha garganta, e caí em prantos. A bruxa ainda falou assim:
          -Ai coitadinho! Está com ciúme!

          Eu tentei esmurrá-la e dar-lhes um bom chute nas canelas, mas ela dava gargalhada.
Pegou do embrulho e colocou novamente no colo de minha mãe. Foi quando ouvi algo sugando os seus seios como tivesse ali um bezerro. Aí foi que eu gritei com ódio. Minha mãe perguntou por que eu chorava tanto e eu respondi debatendo-me no chão e puxando os cabelos e gritando alto:

          -Não estou com ciúme! Estou desesperado porque não me chamaram para ver a cegonha! Porque não me chamaram?
Todos caíram na gargalhada. Eu saí gritando e bati a porta atrás de mim.

          -Bruxas! Bruxas! Bruxas!

“Assim foi a primeira bruxaria que eu vi”.  Escreveu ele com letra de forma.

          Dois anos se passaram. Como os da casa só tinham olhos para o bebê, eu passava a maior parte do tempo no quarto dos fundos, quarto de despejos onde ficavam todas as traquitanas imprestáveis da casa que um dia teve uso e agora estava ali por defeito ou por antiguidade. Tinha de tudo.  Ferro de passar roupas à carvão, uma máquina de costura daquelas movidas a pedaladas, vários dedais, um rádio á válvulas, uma TV preto e branco,  vários discos de vinil, camas desmontadas, bonecas quebradas e livros. Muitos livros. De todos os tipo e grossuras. Romances, contos, científicos.   Tinha um que nessa época era o mais folheado por mim. Era um  atlas a cores de medicina deixado pelo meu tio que foi cortar as pessoas no hospital. Ele era médico.   Minha maior curiosidade nessa época era saber as diferenças entre homem e mulher.  Anotava num caderno de rascunho. As figuras não ajudavam muito. Geralmente eram ossos e órgão separados. Tinha também um esqueleto que ele tinha mandado o coveiro limpar as carnes e músculos e agora ficava ali em pé atrás da porta sorrindo.
         
Um desenho é que mostrou a primeira diferença que eu anotei como “essencial”. O homem tem algo como uma lingüiça e a mulher uma pequena fenda.
Nessa época eu já colecionava gibis. E uma coisa que gostava de fazer era trocá-las.
 Estava eu na casa de um amigo e tinha levado um saco lotado de revistas. Ele espalhara as suas no tapete e eu notei que elas ainda não haviam perdido o cheiro de nova.  O pai dele era dona da única banca de revistas da cidade. Tinha coloridas, preto e branco, encadernações em brochuras, álbuns grossos, todo tipo de papel. Eu estava extasiado. Uma coisa que eu não sabia fazer naquele tempo era fingir e logo que vi uma que era de meu total interesse meus olhos brilharam.
Eu estava folheando uma, lembro bem, era uma brochura, Moby Dick a baleia assassina.
 O tempo na infância são séculos demasiadamente lentos.  Foi o que talvez eu pensasse quando Anita entrou na sala com os longos cabelos em duas tranças amarrada as costas.  Era a irmã de Ronaldo. Seu vestidinho florido assustou-me demasiadamente. Minhas experiências com as mulheres eram por demais receosas.
          -Como você chama? Ela disse.
          -Oldlaniram  eu disse.
          -Ai! Que nome porreta ela gritou, sentando-se no tapete. Eu corei.
Ronaldo empurrou-a para um canto e disse:
         -Fica quieta aí! Não está vendo que estou fazendo negócio?
Engraçado que ele trata a irmã de um jeito particular.
Ela ficou ali observando.
Eu logo vi o interesse dele. As duas revistas de zorro a número 6 e 7. Vi seus olhos não sair da capa.
         -Eu quero esta!   Mostrei a grande baleia.
Anita se intrometeu novamente:
          -Vamos brincar?
Ele a empurrou de novo.
         -Mãinha! Ronaldo está me batendo! Uma voz lá da cozinha gritou:
Parem com isso se não ponho ambos de castigo!

          “Troco as duas aqui do zorro nessa da baleia eu disse”.
         -Vamos brincar? Anita falou novamente.
         -Tá feito ele disse.
        -Nã-nã-nã –nã-nã-nã! Disse Anita balançando a cabeça. Esta aí é minha, painho que trouxe e só troco depois que brincarmos. Ela falou assim mesmo, a conjugação verbal. Elas sabem liderar uma situação.
E aí não teve outro jeito. Brincamos de policia e ladrão, passa anel, dominó, baralho, xadrez, e agora corríamos para os esconderijos eu e ela enquanto Ronaldo contava até trinta.
Corremos quase aos trombos e quando chegava ao vinte e oito eu ainda não tinha escolhido um local quando  ela puxou-me para dentro de um guarda roupa. Bem providencial, pois ouvimos Ronaldo passar por ali correndo.  Ficamos um tempão quase colado a respiração dela soprava meus olhos cegos pela escuridão. Jamais esqueci o cheiro de naftalina.  Ali dentro a escuridão não era total , por um orifício entrava um pouco de luz.  Nós estávamos bem assustados. Eu principalmente. Agora sei por que tive tanto medo na época. Aquela proximidade era alarmante para mim. Foi quando ela pegou minha e colocou sobre seu peito dizendo:
          -Olha como está batendo forte!

Realmente batia igual o coração de um animalzinho assustado. Aí ela fez uma coisa que eu nunca mais esqueci. Chegou mais perto e beijou-me molhando minha boca com sua saliva. Eu não tive dúvidas. Sussurrei no seu ouvido:

         -Bruxinha linda!

Nosso negócio floresceu bastante. Eu te dou essa revista se você me deixar eu vê isso. Ou, se você tocar aqui dou toda minha coleção. Também trocávamos constantemente de revistas. Algumas coisas anotadas.
Mais uma diferença essencial:

  -A mulher aumenta os seios com o passar do tempo, e são macios e fofos e quando tem nenê sai leite por ali.
  -A saliva é gosmenta, mas quando acostumamos vicia.
  -A mulher é algo extraordinário e tem muito mais para se descobrir.
  -Por último e mais importante: Alice não era bruxa!  Pois segundo Rubem Alves em sua crônica, “As Bruxas verdadeiras usavam a vassourinha de pelos macios  para umedecer as mucosas das regiões entre as pernas, genitais. Assim, vinham-lhes deliciosas alucinações e elas voavam, montadas na vassourinha...
  -Alice não tinha vassoura.

Esse comércio durou uns dois anos ainda.  Até ela me dizer chorando um dia que os pais iam mudar para longe, para o sul e queria por que queria entre  juras de amor eterno que usasse minha chave na fechadura. Ela explicou tudo tim- tim -por tim-tim  mas na hora não aconteceu nada.
Quando ela se foi tornei-me um  solitária, vivia enfiado no quarto dos fundos. Por isso eu tinha a pressa de ser gente grande, crescer e viajar pelo mundo. Aí voltou novamente a total imersão nas histórias em quadrinhos.  Horas a fio em companhia de heróis e vilões de toda espécie.
E por falar em vilão, essa tarde eu me senti um, quando passei pela sala, escondendo no meio dos gibis uma revista proibida chamada de "catecismos" de Carlos Zéfiro. Essas revistas vinham do Brasil, cruzava mares e montanhas e chegava em minhas mãos através de moleques de rua.
Tendo uma, eu corria ao quarto e lia deliciando-me com as gravuras.  Um homem abraçado a uma mulher e o texto dizia: “Muito afobado, beijando-me descobriu-me um seio, e suas mãos ansiosas, repuxavam a minha calcinha e seus dedos esfregavam a minha fenda. Eu estava muito nervosa e lhe pedi para deixar-me tirar a roupa. Ele consentiu e dirigi-me ao banheiro”.
Alucinado pela gravura e as frases intensas dita pelos personagens eu estava apalpando a varinha de condão, quando  a terceira bruxa em minha vida apareceu subitamente, parada na soleira da porta do quartinho, com um sorriso no rosto, sem comentar o que eu estava prestes a fazer:
          -Prazer! Eu sou a nova empregada! Já me apresentei a todos na sala só faltava você meu rapazinho! Ela dava a mão para eu pegar. Assustado retirei a mão do calção e apertei a dela timidamente.
Lembro bem desse dia, pois a Rússia tinha acabado de nos atacar com muitos tanques e aviões. Ela disse muito tempo depois que viera com os soldados.
Eu fechei rápida a revista e levantei da cama num pulo.
Minha mãe entrou logo atrás, estava dizendo que agora aquele quartinho seria de Margarida dali por diante e que eu tirasse meus pertences.
Para encurtar a história, depois que Margarida entrou em minha vida conheci à última bruxa da infância.
Um belo dia acordei com ela em frente ao espelho e comprovei que mulher, especialmente as russas, são bruxas e fadas.
Bruxa, pois levam uma vassoura de pelos macios no meio das pernas e quando as usa voam alto no firmamento.  E Fadas, pois quando tem uma vara de condão nas mãos fazem mágicas miraculosas.

         Enceto retirado do caderno “ultra secreto” de Odlarniram Etiel Atsitab, o pequeno Afegão.


segunda-feira, 24 de julho de 2017

Brasil-O quinto dos infernos



                  Brasil-O quinto dos infernos







           O título é uma expressão portuguesa. Depois eu explico.
          

            Primeiro vamos ao que interessa.  E o que interessa aqui nesta crônica é tentar compreender, por que o ser humano mente tanto, mesmo sabendo que  mentir é contra os padrões morais de muitas pessoas e é tido como um “pecado” em muitas religiões.
           As tradições éticas e filósofos estão divididos quanto a se uma mentira é razoável em alguma situação  – Platão disse sim, enquanto Aristóteles, Santo Agostinho e Kant disseram não.
         Assim pergunto aos meus botões.
          A mentira é inerente ao ser humano? 
         Segundo biólogos e antropólogos, o chimpanzé é o animal que mais se assemelha a nós, assim sendo nosso primo mais próximo, afinal anda quase ereto. Comprovado que o mesmo não é capaz de, digamos, oferecer um cacho de banana a uma macaca para levá-la ao matel ou oferecer propina para segurar um lugar melhor numa árvore. A não ser em raros casos na ficção como no filme King Kong, onde ouve uma paixão avassaladora que o levou a morte. Ou no planeta dos macacos onde impingiram aos primos nossos  defeitos. Mas não. Eles não mentem. O homem é o único mamífero que sorri e mente.
        A relação da mentira com o homem é diretamente proporcional a técnica de oratória. Quanto mais aprendem a falar maiores as chances de mentir. Quanto mais o homem evolui sua capacidade de negociar, vender,  chega mais rápido ao ápice.
       O Que é uma mentira?
       Segundo a enciclopédia livre Wikipédia, mentira é o nome dado às afirmações ou negações falsas ditas por alguém que sabe (ou suspeita) de tal falsidade, e na maioria das vezes espera que seus ouvintes acreditem nos dizeres. Dizeres falsos quando não se sabe de tal falsidade e/ou se acredita que sejam verdade, não são considerados mentira, mas sim erros.
     Ávido de curiosidade e sem tempo de uma profunda pesquisa nos anais das enciclopédias busquei no Google.  
    Digitei: Quem mente mais, o homem ou a mulher?
Aproximadamente 1.800.000 resultados (0,54 segundos) . Que velocidade hem! E acreditem! Fiquei boquiaberto!
Um site tentou dissimular...  Mas depois dizia:
 Segundo uma pesquisa inglesa com 1,2 mil pessoas, encomendada por uma marca de chás, as mulheres mentem mais do que os homens. E é por uma boa razão: empatia. EMPATIA viu! Não fiquem raivosas.
      Digitei: Qual profissão mente mais?
Aproximadamente 699.000 resultados (0,50 segundos) .
       Indicava a melhor “resposta.” A profissão que mente mais é indiscutivelmente todas que começam com a consoante P em ordem crescente: político, padre, pastor e prostituta. Outro internauta embaixo brincou: E Advogados e juízes?Ficam fora?  Não comento respostas subjetivas, sem bases científicas.
      Mais curioso digitei: Porque as pessoas mentem?
Aproximadamente 388.000 resultados (2,17 segundos).
      Site de psicologia. Explicava: O mentiroso acredita em sua própria mentira. O que geralmente se ouve no consultório: “eu não minto nunca”, ou “me senti muito triste por perceber que esta pessoa que eu confiava tanto mentiu”. Isso é muito mais comum do que imaginamos. As pessoas não confessam que mentem. Tente olhar no espelho e confessar.
     Uma grande maioria mente para agradar. Isso mesmo. As pessoas mais agradáveis e cuidadosas com os outros mentem mais.
      Agora mesmo, enquanto você lê esse texto, milhões de pessoas estão mentindo. Imagine o mentirômetro.
       A coisa estava ficando engraçada. Digitei: Quais os maiores mentirosos do mundo?
       Apareceu um punhado.  O primeiro da lista vejam só, vendeu  duas vezes, a torre Eiffel. Sim. Acreditem! O nome do espertalhão é o francês, Víctor Lustig.
       Depois vem Frank Abagnale,  inspirou o filme ‘Prenda-me se for capaz’ começou  a saga, passando cheque sem fundos.
       Em seguida Christophe Rocancourt, o Rockefeller francês. Passava-se por outras pessoas.
       Na lista tem um brasileiro sim senhor(a).
       Marcelo Nascimento da Rocha, o maior golpista brasileiro. Passou a perna em muitos artistas.
       Aí bateu uma preocupação.
      Mas, e como defender-se desses mentirosos?
      Lembrei-me quando em criança minha mãe, que Deus a tenha em bom lugar, quando desconfiava de algo, segurava-me pelos braços, aproximava-se olhando nos meus olhos, e falava a frase capital: “ Conta a verdade meu filho!” “Era batata”. Dizia ela.
       E de tanto ela dizer “Batata” o louro “Chico” vive repetindo a mesma coisa.
        Esse louro é o melhor detector de mentiras que eu conheço.
       Nos dias atuais tentou-se inventar alguma geringonça (Um detector de mentiras) que fizesse o que as mães sabem muito bem. Por sinal, as mães, dariam grande ajuda na operação “lava a jato”. Mas, infelizmente as mães não são eternas.
      Então para detectar a mentira, passaram a usar o Polígrafo, máquina que mede o estresse fisiológico do entrevistado. “Tipo o coração acelerado, sudorese, mãos frias”. Afirma-se que picos do estresse indicam comportamento mentiroso. A precisão desse método é amplamente contestada, e em vários casos bem-conhecidos provou-se que ele foi ludibriado.  Os homens aprenderam a esconder isso.
      Testaram os soros da verdade durante depoimentos, embora nenhum seja considerado muito confiável. A CIA tentou descobrir um "soro da verdade" no projeto MK-ULTRA, mas foi na maior parte um fiasco.
      O álcool, por exemplo, é um ótimo soro. Tenho amigos que quando  bêbados, falam pelos cotovelos. Quem já não ouviu essas frases? O “bêbado não tem papas na língua”. Ou “cu de bêbado não tem dono”. Infelizmente  os grandes mentirosos, a maioria permanecem sóbrios.
       Depois passaram a estudar as micros expressões faciais que se  mostraram como um método confiável, de acordo com o Diógenes Project de Paul Ekman e do Psy7Faces de Armindo Freitas-Magalhães e logicamente as mães. Sim. Fique frio. Todas as mães sabem quando seus filhos mentem. A não ser aqueles, “filhos das putas”. Parecem que engessam os músculos do rosto, as chamadas caras- de- paus.
      Em outras palavras, um lampejo minúsculo da expressão facial de "perturbação", embora difícil de ser vista para o olho destreinado, pode indicar quando a pessoa está mentindo.
      Eu particularmente quando mentia os principais sintomas era, suor frio, mão gelada e dor de barriga.
      Sabendo dessas expressões, que a mente manda ao físico, nuances  quase imperceptíveis no rosto, gestos, palpitações, hoje posso dizer com certeza que ninguém me engana. Juro!  Digo isso, sem medo, sem cruzar os dedos atrás, fazendo figa.  Era o que fazíamos quando jurávamos, lembram?
      Uma pequena explicação de como conhecer um mentiroso.  Converse sempre olhando nos olhos. Nunca ouviu falar que os olhos são o espelho da alma?Também assista a série  Lie To Me(Engana-me se puder) no netflix. Eu vi   zilhões de vezes, só  para ficar craque no assunto.
         Agora uma pequena consideração.  Falar só a verdade é um saco. Já pensou você não poder mais falar para os amigos, que comeu aquela gostosa do prédio, ou que nunca falhou no sexo, ou que seu pênis tem vinte e cinco centímetros em repouso ou que sempre na cama tira duas sem tirar de dentro, essas coisas machistas que adoramos falar.
      Ou as mulheres ao se encontrarem dizer realmente o que pensam. Pense num desastre. Duas amigas se encontrando depois de anos. “Você está igual uma piriguete!”, “Nossa como você engordou! Menina do céu engoliste uma baleia!”. “Nossa teu cabelo esta parecendo uma vassoura”. Era briga na certa.
         E cá entre nós,ter que ficar o tempo todo desmentindo os outros, ninguém quer ver você por perto.  Uma pessoa assim acaba sendo descartado(a) dos encontros, dos churrascos, das pelada, das saunas até do Swing se por acaso for adepto.  
        O cara que só fala a verdade é considerado um chato, ranzinza e comete o sincericídio.  Todo mundo foge daquelas pessoas que se dizem franca, não é mesmo? A pessoa franca será condenada a solitária, afinal quando alguém se olha no espelho não quer se ver na real, mas o que seus olhos e ego anseia.
        Veja as redes sociais. É um grande exemplo. O brilho que reluz ali não é ouro. Imagine na sua foto predileta, um amigo franco destilar toda a franqueza e escrever um comentário:
      -Nossa! Esse teu sorriso é mais falso do que nota de três reais!
Ou:
      -Esse carro é lindo! Já pagaste as sessenta parcelas do financiamento?
Mesmo sendo a pura verdade, você o deletaria na hora. Ou no mínimo, o bloqueava.
E foto de família. É lógico que quando amamos não vemos pelo lado da estética, pois como dizem , o amor é cego.
        Mas sempre tem aquelas” tiazonas” as que dizem batendo no peito, “eu sou franca sim” sem olharem-se no espelho, - Nossa! Aquela teu namorado(a) é um horror!
        Imagine alguém dizendo de sua melhor foto: Não! Aquilo não é felicidade, aquela sua foto. Felicidade não se mede com sorriso. O sorriso, isto sim, dissimula o sofrimento.
Apenas nesses casos sou da mesma opinião do velho Platão.  Sou a favor sim de uma mentirinha leve.
Agora quem não perdoa mesmo é o louro Chico. Ele ver TV comigo, no seu poleiro, todos os dias.
     Estou na iminência de ligar para a polícia federal para oferecer o melhor detector de mentiras da atualidade. Ele só precisa ver os vídeos das pessoas falando.
Chega de acordo de leniência ou delações premiadas.  E ele é barato e um barato. Só precisa dá para ele de vez em quando um punhado de milho e algumas frutas silvestres. Ajudaria bastante a “lava a jato”.
       Veja os vídeos que confrontei com ele. Todos foram upados da internet, e cá para nós, o  material é farto. É bastante olhar a televisão umas duas horas, principalmente nesse novo país sul americano, chamado de Pindorama, ilha de santa Cruz, terra de santa Cruz e finalmente Brasil.
       Quando começa o jornal ele levanta as penas do cocuruto, e esbugalha os olhinhos.  Se falam  mentira, ele grita  “Batata!” Ainda bem que ele não fala pelos cotovelos, pois poderiam surgir alguns processos de injúrias e difamação e cá para nós ele é um “duro”. Alem do mais, tornaria nossa justiça ainda mais morosa.
        Enquanto eu procurava os vídeos no celular  ele tomava um banho, abrindo as asinhas.
        Porque meu papagaio repete “é batata”?
        A culpa é da minha mãe.  Na adolescência somos cheios de segredos. Nessa época ela dizia as amigas: “Quando quero pegá-lo na mentira, olho dentro da pupila dele. É batata!
       Aí voltei ao Google. Digitei: É batata! Aproximadamente 16.300.000 resultados (0,48 segundos) .
        O termo batata,se originou durante a era feudal, onde era muito comum a troca de mercadorias. Um produtor de trigo trocava seu produto por carne de um caçador, este por sua vez trocava o que excedia do trigo por algo de sua necessidade, muitas vezes sua caça, não interessava a ninguém, sendo obrigado a trocá-la por algo que não necessitasse.
 
         A batata era a mercadoria mais cobiçada, pois além de suas atribuições nutritivas, havia várias formas de ser consumida e de fácil aceitação.
Desta forma quando alguém tinha batata para troca, ao oferecer sempre tinha vantagem na negociação. Daí  o termo É BATATA, a facilidade de realizar a troca por um coelho, trigo, azeite, tecido e etc.  Era certo que aconteceria.
É Batata = é certo que vai acontecer.


        Nos dias de hoje o "É batata", facilmente seria substituído por "É propina!".
Mas deixa pra lá.
         
       Aí vão os vídeos:

       Quando o primeiro rodou, chico, segurava um grão com a pata direita, e levava ao bico, e ficou roendo com estalidos. O milho caiu.  Paciente, ele desceu e fez tudo novamente.
 As expressões dos personagens estão anexas:
Vídeo 1-  Fala: “Muitos votaram porque eu era o candidato a vice”. O orador encontra-se em pé e quando as consoantes vibram, parece vir da garganta de um cadáver, comprime a mão esquerda esquelética  sobre a direita varias vezes, os olhos giram da direita para a esquerda lentamente, e o lábio superior, morde o inferior. Repete sempre o que diz com o dedo em riste.
Chico logo gritou:
        - Batata! Batata!
Vídeo 2- Fala: “O Brasil agora entrou nos trilhos” Da mesma forma da anterior, acrescentando um pequeno espasmo de cansaço, uns olhos lacrimosos e o dedo em riste. Repete sempre as falas.
        -Batata! –Batata!
Vídeo 3- Fala:  “Esses dois milhões é um empréstimo para pagar advogados”. Esse personagem, fala sorrindo, apóia as duas mãos na bancada, as bochechas ficam salientes, as narinas inflam buscando oxigênio.
        -Batata!  Batata!
Vídeo 4- Fala: “Não foi golpe!” ,  “Caixa dois é diferente de propina” ,  “Essa lei foi tão mal feita que parecia ter sido feita por bêbados”,  “E depois os bêbados protestaram dizendo que não fazem leis tão ruins”, “Vossa Excelência hoje é relator e está brilhando na televisão do Brasil todo, nesse caso me deve”.   Esse personagem  quando fala sempre usa alusão, O lábio superior permanece como um sinal de parênteses deitado e faz pausa e olha de um lado para o outro,  meneia a cabeça como um cavalo que tenta se soltar do cabresto. De vez em quando levanta a nádega para solta pum”. 
           -Batata!  Batata!
Vídeo 5-Fala: “Eu voto pelo  impeachment pela minha família, pelo meus filhos!”  Esses personagens subiram na tribuna, a maioria levavam uma bandeira, as sobrancelhas, quando no momento da fala, arqueavam para cima, tal pequenos urubus depois de saciados da carniça.
          -Batata!
Vídeo 6-Fala: “O ex-presidente, não está sendo julgado por sua opinião política e também não se encontra em avaliação as políticas por ele adotadas durante o período de seu Governo”. Esse personagem, a voz nasalizada, os pequenos olhos pretos bailam como gemas na clara, e os lábios ficam finos e em forma de gaivota. Olha como em câmera lenta ou slow motion.

          -Batata!
Vídeo 7-Fala: “O Bolsa Família é uma estratégia do PT para vandalizar a família”. Personagens de rua, eles gritavam com bandeirinhas, os olhos faiscavam, a testa sempre enrugada, muita sudorese.
        -Batata!
Vídeo 8 –Fala: “ Nesse dia de glória para o povo tem um homem que entrará para a história. Parabéns presidente Eduardo Cunha. Perderam em 1964 e agora em 2016. Pela família e inocência das crianças que o PT nunca respeitou, contra o comunismo, o Foro de São Paulo, e em memória do Coronel Brilhante Ustra, o meu voto é sim!”. Esse personagem morde o lábio inferior, as sobrancelhas ficam arqueadas, tenta um sorriso que mais parece uma máscara. Propenso a loucura ou demência. Quando fala cospe gotículas raivosas.
        .-Batata!
Vídeo 9 – Fala: “ O valor médio dos benefícios da previdência social cresceu e tem que ser mantido. Para isso é preciso fazer a reforma, para que aqueles que se locupletam da previdência não se locupletem mais, não se aposentem com menos de cinqüenta anos, não seja vagabundos, num país de pobres e miseráveis.” Esse personagem fala fazendo um barulho estranho nas cordas vocais, parecendo cantor de bordel da década de 30, repete hã hã hã,, e nervoso a papada tapa o nó da gravata. Parece que vive com azia e má digestão. Peida bastante.
        -Batata!   
Vídeo 10- Fala: “Eu tenho conhecimento integral das 190 páginas da peça  para dizer que é uma peça teatral. Ali não tem fatos, só atos teatral”, "Não tem nenhum motivo para sermos presos porque não cometemos nenhum delito" O personagem quando fala parece que está sempre comendo biscoito polvilho. Tem um sorriso sarcástico.  A sobrancelha esquerda sobe e desce vigorosamente. Sorri feito uma hiena.
          -Batata!
Explicando o  título:
Na época das grandes navegações, quando em Portugal vinha chegando uma embarcação proveniente do Brasil, o povo dizia: “Lá vem a nau dos quintos do inferno”.
“Inferno” era como os portugueses chamavam o Brasil. Os “quintos” se referiam ao imposto de 20% (um quinto) do ouro aqui extraído, cujo produto arrecadado (ouro mesmo) era levado para Portugal pelo mar.
Então, que todos os mentirosos, vão ao quinto do inferno!
        




quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

A criação

                                          A Criação







Barbearia do centro. Antro perfeito de homens de toda espécie de barbas e idéias.
Um homem com um jornal na mão chama a atenção dos presentes para um fato, escrito ao pé da página de um jornal de terceira categoria. Quando todos estão atentos ele lê a manchete:
“Marido leva mulher à delegacia, desconfiado de traição, e o elemento de prova é um velho papagaio”.

Todos caem as gargalhadas. Apenas um manteve-se quieto e com a navalha na cara do freguês. Depois falou pausadamente:

          -Esse caso é meu!
          -Não acredito, galhofaram todos, pois sabiam que o barbeiro Cici era exímio contador de histórias.
          -Mas conte! Estamos todos ao seu dispor. Ainda mais eu com essa navalha na cara, disse o homem sentado em sua cadeira.
Cici espalhou a espuma, amolou a navalha, e segurando o nariz do freguês foi raspando cuidadosamente, respeitando as verrugas e outros acidentes geográficos que havia naquela cara.

Todo final de ano, por uma semana, Maria Genoveva visitava a mãe.  Essas visitas, nada mais saudáveis para o casal, pois cada um ia buscar energia perdida, com os seus. Eram encontros memoráveis que ambos, eu e ela voltávamos com os olhos brilhando, e que nos dava força para a rotina diária. Esse ano como fiquei órfão resolvi acompanhá-la.  Pegamos a estrada.

Devo apresentar-me:  Meu nome é  Moacir, mais conhecido por Cici.  Fui corretor de imóveis há quarenta anos, sem dúvidas, aprendi a maquiar situações, para que tudo pegue um frescor, a fim de que seduza compradores e inquilinos. Faz parte.  Depois de aposentado montei essa barbearia. Continuo melhorando a cara de muitos brutamontes. Toda profissão tem disso. Os escritores são mestres. Pois bem.

Nosso relacionamento era estável. Uma discussão a cada nove meses, nada imperdoável. Há sempre as implicâncias, por exemplo. Quando íamos tirar fotos ela não pedia para dizer o famoso xis e sim para que eu murchasse a barriga. Não fazia o que ela pedia e mais, tornava-a saliente para importuná-la. Veja só, essa barriga que gastei bastante para tê-la.
Em fim fui visitar a sogra pela primeira vez.
  A casa era um velho bangalô no meio de uma rua comprida. A principal da cidade. Por ali escoava tudo para fora e em direção ao centro.
Eu também tinha criado as minhas quizilas: Dizia para ela, o short está curto, o decote avantajado, a voz está alta e estridente.
Acompanhei-a  subir com as malas, pela longa escadaria. Observo que mesmo com quarenta anos ela estava em forma. Um traseiro de respeito.
Quando atingimos o topo, suspirei, belo sobrado e enquanto largava a mala no assoalho, cheguei a pensar, “O que a sogra pensará a meu respeito?”.  
“Ora! Deve pensar o melhor possível!”.  Afinal eu mantenho a filha dela muito bem, bela, pele igual bunda de nenê e tão jovial. “Jovial até demais, pelo jeito que subiu a longa escadaria de um fôlego só”.
  Chego bufando no último degrau.
A sogra veio nos receber à porta, com um abraço acalorado e vi com esses olhos azuis que a terra há de comer, olhar-me de cima a baixo. Depois de desfazer-se dos abraços, sorriu de viés e pareceu falar algo do tipo “ Eis o pulha”, depois foi batendo o chinelinho no piso verde  de mármore,  abriu a janela para a entrada da brisa e ficou uns segundos olhando para fora.
  Talvez deduzindo o motivo de minha presença, já que Genoveva não teve tempo de avisá-la. Cheguei do trabalho e disse sem meias palavras:

- Vou com você esse ano!
Agora vendo essa cena, outra me veio à mente. Lembro-me que Genoveva fez uma cara de surpresa, abrindo a boca, gaguejou um pouco, mas logo os olhos brilharam, talvez de contentamento e me abraçou longamente.
Conto tudo isso em detalhes, as nuances de olhares, frases não ditas, para que a cena que vem daqui a pouco não os pegue desprevenidos como eu fui pego.

Acumula a espuma num papel.

A janela dava para uma varanda comprida, ramos de um flamboyant entrava, pequenos pássaros vinham cantar nos galhos  e sobre o parapeito  descansava  uma trepadeira chorona. “Pensei logo comigo,” delicioso lugar para se ler um bom livro.
 A sogra chamou-nos a varanda e quando deslizou a porta de correr, eu contagiado, pareceu-me ouvir ainda “Advinha quem está aqui?”. Ela falou com alguém?
Minha sogra chamava-se Helena. Sabe aquelas velhinhas que vemos como fadas?  Era ela. Melenas brancas, finas repartidos ao meio, com um laço de fita rosa completava o penteado. As maçãs do rosto rosadas.   A dentadura com dimensão alterada deixava-a com um sorriso perene. Não era o sorriso de Mona lisa, a Gioconda. Era algo indeterminado.   
No famoso quadro, o autor, usando a técnica de sfumato, pintou  uma mulher com uma expressão introspectiva e um pouco tímida. Uma incógnita.
Incógnita foi quando deparei-me com uma figura, um pássaro, precisamente um papagaio, que começou a gritar quando  Genoveva  aproximou-se.  Gritava a plenos pulmões:
           -Eu te amo Antonio! Eu te amo Antonio!
Enquanto dizia isso abaixava a cabeça para receber carinhos no cocorote.
Assim vi sobressaltado Genoveva coçá-lo enfiando os longos dedos ornado por uma aliança dourada, entre a grade, as unhas compridas e bem feitas, alisá-lo e dizê-lo baixinho:
          -Não fala isso seu chato!
O papagaio era verdadeiro. Vi pelas cores -  verde com cerca de 38 cm de comprimento.  Tinha penas azuis na testa, acima do bico e amarelo na cara e coroa.  A cor da íris era vermelho-laranja. Uma  fêmea.   Devia ser velha, pois o bico era negro. É uma das espécies mais inteligentes de ave do planeta. Sua expectativa de vida é de oitenta anos. Os papagaios-verdadeiros também costumam repetir o que ouvem de seus donos.
Essa última característica é que me sobressaltou.
Assim eu aproximei-me  de Genoveva  e perguntei-lhe baixinho:
         -Amor! Quem é Antônio?
Ela fez um esforço supremo para não ruborizar. E disse entre dentes:
          -Ah! Não! Já vai começar com seus ciúmes infantis? E saiu batendo os pés em direção ao quarto. Sai atrás. Joguei a mala num canto perto do corredor.
Cerquei-a junto ao guarda roupa.  Genoveva tinha aberto a porta e se olhava ao espelho.
Repeti:
          -Quem é An-tô-nio?
Ela enfiou as mãos pelos cabelos, jogou-os para trás e falou pausadamente:
          -Não sei e nem quero saber! Aliás, tenho raiva de quem sabe! Ora essa! Se enxergue homem! Só falta agora ficar com ciúmes de um nome que um animal fala! Só falta essa!
          -Uma ave e muito inteligente por sinal...
Continuei:
          - E essa ave, fique sabendo que repete tudo  que ouve diariamente.
         -E daí? O que é que eu tenho com isso? Ora vá vá...
Genoveva não completou a frase, deixando-a aberta a vários sentidos, por exemplo:
1-Vai tomar no c...
2- Vá pra a pqp
3-Vá pentear macaco!
4-Vá para a baixa da buchuda!
5-Vá para o diabo que o carregue!

Não a deixei terminar. Saltei em cima dela e a beijei ferozmente na boca, no pescoço, os seios, os mamilos. Ajudei-a a tirar a camiseta apressado. A calcinha não deu. Afastamos de lado à passagem. "Foi uma das melhores fodas que demos". Talvez pelo inusitado, com risco da sogra entrar de repente, e a ave gritando sem parar “eu te amo Antonio”. 
Ela me amava eu pensei.

Mas depois á tarde fiquei fulo da vida.

Lembrei de outros detalhes: Flagrei várias vezes Dona Genoveva  suspirando ao telefone. Sabe aquele rosto que fazemos quando estamos degustando algo delicioso? Era o que eu via. Quando eu apontava na porta ela desligava e sempre dizia:
          -Minha mãe, coitada, morta de saudade. Liga todos os dias.
Realmente era sempre o número da sogra. Várias vezes confirmei  na caixa postal. Coloquei a bina, depois que recebi ligações fora de hora e quando eu atendia o “cara” do outro lado da linha não falava.  Era um silêncio aterrador.
Vinha procrastinando há muito tempo uma ação. Pensei em colocar um detetive em sua cola. Segui-la dia e noite. Desisti depois que o detetive falou o preço exorbitante. Complementou ainda algo que me deixou com mil pulgas atrás da orelha: Ele disse sorrindo ao telefone, “cuidado!  quem procura acha!”.
E acha viu! Jogou o resto de espuma junto com o papel no lixo. Prepara outra espuma. Continua:
Um dia desses,  tirei uma semana de férias. Talvez pelo ócio ou pela leitura que dispus nesses dias, pois li toda a obra de Nelson Rodrigues, tinha chagado há um questionamento crível:
“Toda mulher trai?”. Perguntei olhando-me ao espelho:Até a Genô? Era como eu a chamava nos momentos íntimos. Ouvi até um dos personagens de Nelson falar jocosamente: “ A mulher que nunca traiu voa!” “E eu nunca  vi nesses cinqüenta anos uma mulher voando, poxa!”.
Todos riram. Menos o que estava tirando a barba. Era um risco.
De modo que tinha já quase certeza. A certeza aumentou quando ela sonhando uma noite falou um nome estranho, ou na véspera de viajar depilou-se toda, fez as sobrancelhas, unhas, lavou os cabelos, comprou roupas novas, ficou mais carinhosa comigo, de vez em quando eu a via olhando para mim com o olhar vazio ou nada, cantarolava canções, sorria feito criança, exalava um cheiro de rosa doce e fresca.
E a literatura diz que os primeiros sinais são imperceptíveis, como uma negação de  sexo, com a desculpa de dor de cabeça,  uma música cantada no rádio pela manhã, um abrir de janela e exclamar com manhã linda faz lá fora ou mesmo o tempo chuvoso, exprimir felicidade e etc e etc.
E agora surgiu esse nome. Pelo menos o personagem já tem nome.  Já é meio caminho andado quando são denominados. Antônio. Antônio. Eu repetia em minha febre. Pois um homem desconfiado fica febril, o vírus da desconfiança  tira o apetite, passa-se a falar sozinho,  a testa começa a coçar, o pânico de aparecer aquelas duas protuberâncias de ruminantes.
Assim parti para a ação, era necessário descobrir o perfil físico e psicológico, para desenvolver a história, de traição e dor, que se avizinhava.   Todos os detalhes se fundem  na cabeça. As histórias desde as mais simples às memoráveis tomam forma na cabeça. É só ir desenvolvendo calmamente, palavras por palavras, como uma escada, degrau por degrau. A estrutura já existe,  é só ir colocando os fatos, os personagens, na teia. A grande teia. Depois enredar para que fique conciso e  mais fácil a degustação. Mais salutar.  E a voz se faz. Eis o estilo.
Mas isso não se ganha da noite para o dia.
De modo que logo pela manhã calcei o tênis (queria perder a barriga e agradá-la, mais precisamente a mim mesmo) e com a desculpa de uma corrida fui pesquisar pela  vizinhança.
Fiquei sabendo de cinco. Cinco Antônio naquela cidadela.
Logo encontrei o primeiro. Tonhão. Era leiteiro.  Todo o dia, bem cedo deixava um litro fresco na porta de casa. Conversei com ele. Alguns dentes cariados.  Cheirava  a curral. Quando me despedi  com um aperto de mão senti os calos, parecia uma sola de sapato. Pensei:
Este está descartado.  
-Mas como?  Alguém falou. Tem mulher que gosta de homem rústico!
Não! Dona Genoveva nesse quesito era enjoada.  Gostava de pessoas perfumadas, um dia desses quando a perguntei  se por acaso fosse me trair,(brincadeira sádica que todo casal brinca, depois do sexo)com qual pessoa ela me trairia? Com um subserviente, ou com pessoas da alta?
E ela respondeu: “se um dia por acaso me traísse, e deixava bem claro que jamais aconteceria, seria com uma pessoa muito melhor do que eu, fina e de bom gosto”.
Assim cortei-o da lista.
O segundo estava bem ali, na praça. Vestia um terno maior do que o defunto. Suava muito. Marcas no peito, embaixo da gravata e nas axilas. Entregou-me um panfleto prometendo a salvação. Era um pastor da assembléia de Deus. Quando falava, prometia o paraíso, mas eu só prestava atenção num ponto: no canto da sua boca  juntava uma saliva branca que com a ponta da língua, de tempo em tempo puxava para dentro da boca.
-E esse, falou o freguês da barba mais espessa. -Tem mulher que gosta de transar orando!
Não era o caso da Dona Genoveva. Ela, isto sim, adorava transar xingando. Assim descartei-o dizendo-lhe que era católico apostólico e romano.
O terceiro era conhecido por “toinho”. Tinha viajado o mundo todo, pois no passado recente fizera parte do circo de Moscou. Era anão. Escutei-o uma meia hora. Ele contava causos de outros países, de outras nações, falava sete idiomas de modo que o português –brasileiro dele  saía tipo os turistas americanos. Trocando o artigo. Já com intimidade, falei-lhe: “Sabe que nunca vi enterro de anão!” e que ele olhou para mim com uns olhinhos pequenos e escuros e depois colocou a mão na barriga, caiu para trás no gramado  e riu muito, esticando as perninhas no ar. Descartei-o também. Minha mulher um dia dissera: Adoro homem bonito, alto e elegante.
O quarto era um padre. Frei Antonio de Calazans. Um italiano do norte. As faces rosadas, as mãos grandes. Alto como uma árvore frondosa. Quando o vi saindo da paróquia, ele tentava acender o cachimbo a todo custo contra o vento. Eu apressei-me e fiz com as mãos uma concha. Deu certo. Ele agradeceu sorrindo. Os dentes escurecidos pelo uso do vinho e cachimbo. Aliás, eram inseparáveis. Era daqueles à antiga, andava com a bata marrom, e aquela corda amarrando-a a cintura. Ele quis saber se eu pertencia à paróquia. Eu disse que não. Mas que casara com alguém dali, a Genoveva filha da velha Helena. Assim ele disse. Batizei-a aqui. Naquela pequena pia. Uma menina linda. A mãe também Dona Helena  é uma senhora extremamente educada e religiosa, ciente de seus deveres com Deus. A filha a mesma coisa. Por fim convidou-me à missa desse domingo e mandou benção a todos. Descartei-o também. Existe muito filhos de padre, mas não com Dona Genô pensei. Um dia ela me falou entre dentes, Que nunca teve pretensão de ser santa.
O quinto elemento era o que mais correspondia. Um primo distante. Soube que gostava de fazer poesia, bebia sentado na mesma mesa de um bar e enquanto bebia, compunha poesia nos guardanapos, que no final do dia ia limpando a boca com eles, e todos indiscriminadamente iam parar na lata de lixo. Não pelo valor. Achei até que ele tinha futuro. Rimava bem e tinha boa métrica.
No final da tarde acompanhei-o. Íamos falando da vida, do luar da cidade. Subíamos a rua, os paralelepípedos disformes o faziam gangorrear de um lado para o outro, como uma nau no oceano, que o fazia apoiar-se em meu ombro para não cair. A lua estava clara. Lua cheia.
 Ele ia declamando seus versos e eu o ouvindo atentamente, querendo descobrir algo, uma nuance, nas entrelinhas algo que comprometesse Genô, quando demos por si  estávamos eu e ele bem embaixo do flamboyant.  Assustamos ao ouvi, alto e em bom som a frase gritada a plenos pulmões:
          -Eu te Amo Antônio!  Era o papagaio na gaiola.
As flores caídas à tarde coloriam o chão de vermelho escuro.
Despedimos-nos ali.
Seria ele perdidamente apaixonado por Dona Genoveva? 
Segundo alguns, um amor platônico, pois ela nunca o teria lhe dado bola. Além do mais eu soube que  Dona Helena jamais fez gosto. Ele sim pode ter sido usado em diversos objetivos, como,  conhecer um rapaz novo, ir a uma festa acompanhando-a, essas mínimas coisas práticas que servem os primos. E só. Mas sabe-se que os homens ficam sempre por perto, das belas para quem sabe aparar as migalhas.
E também não se  sabe os motivos escusos das mulheres, os pretextos, enfim, só sei que alguém daquela casa, da varanda do bangalô, fazia questão de contemplar esse amor todos os dias quando via um Antônio passar por ali, em direção a casa, e gritar-lhe que o amava.  Isso era fato.
Sadismo? Mau caráter? Inocência? Ser sua musa?
Talvez para ser assunto em suas bebedeiras noturnas, ou mote nos tristes poemas?  
Não cheguei a nenhuma conclusão. Levei o caso à polícia. O delegado escreveu nos autos que não se podia acreditar, em testemunha tão descabida, um simples pássaro. E deu o caso por encerrado.
Não nos separamos. Gostávamos do nosso jeito de fazer amor.
Passei a acompanhá-la nessas visitas todos os anos. Na décima vez, soube que o poeta morreu.   Os versos calaram.
A rua ultimamente ficava completamente deserta. Ou a tarde passava um enterro em silencio, lentamente. O pobre pássaro exaurido, agora  falava mais baixa, em tom rancoroso. “Ele agora vem junto!” “Ele agora vem junto”!
Aos diabos essas falas.
Em todos esses anos tivemos mudanças drásticas. Dona Helena ocupa agora uma cadeira de rodas, a face magra, o olhar perdido. Não fala e não anda. Vegeta. Genoveva pelo seu lado perdeu o frescor. “O estúpido ainda gritava,” te amo Antonio!” E também “Antonio se foi, Antonio se foi”.
Que destino do poeta!  Lembrado por um pássaro estúpido que torra o meu saco.
 Domingo fui à missa.  Trinta anos que o vi pela primeira vez. Frei Antonio fez um belo sermão. Era comentário geral. Sobre a falta de amor entre as pessoas. Subi ao quarto. A árvore de natal piscava suas luzes.  Um corpo numa cadeira. Acenei para Dona Helena.
Chovia lá fora.  A água deixava a paisagem vista pela vidraça semelhante a um quadro expressionista. As cores borradas e vivas. Observei um pássaro verde e amarelo inerte no fundo da gaiola.
Peguei-o com cuidado, e ao choro de Genoveva enterrei-o no quintal. Numa cova rasa. Como os bandidos merecem.

Depois foi Genoveva. Ela foi definhando lentamente. Já não nos falávamos. Nada mais valia a pena. E numa bela manhã, faleceu.
Toda a cidade foi ao velório. Também os quatro Antonio restantes. Ignorei-os. Afinal nunca tive uma prova cabal.
Ultimamente, estou relendo Dom Casmurro. A história é de uma suspeita de traição. Estudo não o fato em si, mas a maneira como foi contado. É o que me interessa hoje. O momento da criação. A estrutura.
Montei essa barbearia faz cinco anos.
A última vez que a acompanhei, lembro mais ou menos dessa cena que vai deteriorando-se com o tempo, um silêncio aterrador na varanda, a gaiola vazia, Dona Helena na cadeira olhando o nada; Dona Genoveva, debruçada, talvez esperando o único amante, que a fizera: feliz, jovem e com a pele maravilhosa.
O velho barbeiro abaixa a cadeira, tira o lençol, dá o retoque final no rosto do estranho e pergunta:
                  -Qual o seu nome?
O homem paga com uma nota, faz uma reverência e diz maliciosamente:
                  - Antônio! A seu dispor!
Risada geral.
21 de Abril de 1964.